24 de setembro de 2016

Sargento Ivanildo

Por Clênio Sierra de Alcântara


A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre [...]
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
   
                                                         Preparação para a morte. Manuel Bandeira









A consciência que temos da nossa finitude física não tira de nós o pesar incomensurável da morte. Imersos numa rotina que nos toma por completo com trabalho, estudos, lazer e enfrentamento das maiores e/ou menores adversidades, nós temos, de fato, pouco tempo para refletirmos acerca da inevitabilidade da morte.

A morte é inevitável – assim como a dor – e, por isso, nossa existência é um exercício precário e incerto; mas, ainda assim, vivemos acreditando que teremos longos anos de vida pela frente; e, para os que creem, religiosamente falando, isso aqui que atravessamos é apenas um plano que os conduzirá para uma vivência prazerosa e infinita. Concepções de fé e mesmo as desprovidas desse sentido nos levam a manter um apego com relação à vida por vezes com uma gana de quem se julga ser realmente imortal. Daí por que nos lançamos em tantos desafios: construímos edifícios altíssimos; desenvolvemos máquinas incríveis; saímos da órbita do planeta buscando vida em outras esferas; promovemos guerras; instituímos ditaduras... Tudo nós fazemos para nos impor sobre a face da Terra. E por que assim agimos fundamentalmente não sabemos responder. Falta-nos – e isso apesar do grau de inteligência que alcançamos – a compreensão inteira da matéria mesma de nossas vontades, de nossos impulsos criadores e destruidores, de nossos desejos de perpetuação, de nossas ânsias de vingança... Falta-nos um completo entendimento sobre tudo o que nos engrandece e também a respeito do que nos amesquinha.

Essas simplórias reflexões sobre a precariedade da vida e a inevitabilidade da morte me chegaram num instante de grande tristeza e consternação, em virtude do assassinato do sargento Ivanildo, do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco, ocorrido no bairro de Rio Doce, em Olinda, na noite da última quinta-feira. Ivanildo era uma das pessoas mais respeitosas e comprometidas com a sua profissão que eu conheci; alguém que não se deixava abater pelas frustrações cotidianas – fossem elas de ordem laboral, fossem elas advindas da vida prática -; e quer fosse com uma narrativa, quer fosse com um sorriso de satisfação, ele deixava sempre evidente para os seus interlocutores o quanto que era apegado à vida, à vida que para ele tinha em sua família o centro de tudo. Ivanildo era um pai - e igualmente um avô - zeloso, carinhoso e feliz. Religioso, mantinha uma rotina de estudos bíblicos que visivelmente lhe enchia de entusiasmo. O sargento Ivanildo vai deixar certamente uma saudade imensa entre os seus companheiros de farda que o conheciam bem de perto.

Recebi a notícia da morte do Ivanildo através de um programa de televisão, bem na hora do almoço. Assassinado com tiros de revólver de maneira estúpida e covarde na porta de sua casa, o sargento do Corpo de Bombeiros foi mais uma entre as centenas de pessoas que perderam suas vidas apenas neste ano, neste Pernambuco onde a violência protagonizada pelos foras da lei expõe diariamente a face impiedosa de uma realidade na qual a suposta rede de proteção social da dita segurança pública não se mostra eficiente e não passa, na verdade, de um campo minado no qual o Estado caminha com dificuldade deixando à mostra não somente a ineficácia de suas ações de combate à criminalidade de um modo geral, como também a incapacidade de garantir o direito de ir e vir aos cidadãos de bem, demonstrando, ao fim e ao cabo, que nós estamos entregues à própria sorte.

A morte brutal de um ser humano deveria ser vista como um ataque à própria dignidade existencial de toda a sociedade. Ocorre que a banalidade da morte se impôs de tal maneira entre nós que o sentimento da perda, que se alinhava com a tristeza, não demora a ser tragado e absorvido pela indiferença e pelo esquecimento.

Meus pêsames à família do sargento Ivanildo.

(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 4, novembro de 2016, Opinião, p. 2).


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