1 de outubro de 2016

Do remanso da lagoa ao amarelo estonteante da florada dos paus-d'arco: o Parque Sólon de Lucena em impressões de ontem e de hoje

Por Clênio Sierra de Alcântara





Fotos: Arquivo do Autor
  Em pleno centro comercial da capital paraibana, o Parque Sólon de Lucena é um refúgio a convidar a todos para nele passar uns bons momentos de tranquilidade


Com um casario antigo que testemunhou o que fora a cidade nos períodos Colonial e Imperial, a capital paraibana adentrou no século XX sendo preparada para participar do amplo cenário de transformações urbanas que viriam a ser a marca principal de um tempo que foi, no Brasil, para alguns, glorioso, e que o estudioso norte-americano Jeffrey Needell chamou de “belle époque tropical”. Período de acentuada movimentação – grosso modo podemos delimitá-lo entre 1880 e 1914; no entanto, seríamos ingênuos se pensássemos que tendências, correntes filosóficas e até modismos ficam presos apenas a determinadas datações – em todas as esferas sociais – lembremos, por exemplo, da abolição da escravatura, da proclamação da República e de invenções como o cinematógrafo -, a belle époque, nestas plagas, foi muito marcada pelo empenho dos nossos burgomestres em modificar, por vezes de maneira drástica, os espaços citadinos a fim de efetivamente livrá-los dos aspectos que os ligavam ao passado da colonização portuguesa. A ideia de progresso que os administradores das nossas principais urbes tinham em mente dizia que “prédios velhos” e “ruas tortuosas” deveriam desaparecer e dar lugar a construções suntuosas e artérias retilíneas que nos conduzissem, de fato, para um auspicioso futuro, nos afastando cada vez mais de um passado que era motivo de vergonha e sinônimo de atraso. Nesse, digamos, "projeto nacional" de reabilitação das principais cidades, políticas higienistas, com saneamento e sanitarização, entraram também no rol das demandas dos administradores dos centros urbanos.









Quando Francisco Pereira Passos assumiu com plenos poderes a administração municipal do Rio de Janeiro, então capital da nação, durante o governo do presidente Rodrigues Alves (1902-1906) e principiou a promover um verdadeiro “bota-abaixo”, esse, digamos, movimento progressista não tardou a chegar a outras partes do país, principalmente, às capitais, como o Recife e, claro, a Paraíba do Norte.

Podemos situar o início da transformação da área que compreende o atual Parque Sólon de Lucena, outrora – precisamente no século XVIII – pertencente aos jesuítas, como um dos símbolos da belle époque paraibana, porque sua urbanização foi inserida num processo que deixará marcas profundas na memória urbana da capital, porque destruidora de parte significativa do conjunto arquitetônico que preenchia os logradouros da cidade de antigamente.






Os primeiros passos de transformação que se verificaram na cidade ocorreram durante o governo de João Machado (1908-1912), que instalou o serviço de abastecimento de água e de energia elétrica; e substituiu os bondes de burro pelo serviço de carris. Diz-se que o governador Castro Pinto (1912-1915), que sucedeu Machado, não promoveu mudanças significativas nas feições da capital, algo bem diferente do que ocorreu durante a administração de Camilo de Holanda (1916-1920), na qual se verificou “uma pequena revolução urbanística” que “começou a modificar o aspecto colonial da cidade”, como disse Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello – Oswaldo que foi prefeito da cidade – em seu estudo A Paraíba na Primeira República, numa edição de 1982, do qual excertos foram publicados por Wellington Aguiar e José Octávio em Uma cidade de quatro séculos: evolução e roteiro (João Pessoa: Governo do Estado da Paraíba, 1985, p. 135). Durante o período do governo de Camilo de Holanda ruas foram pavimentadas; ergueram-se os prédios da Escola Normal (depois transformado em Palácio da Justiça) e o da Imprensa Oficial e a Balaustrada das Trincheiras; criou-se a Praça Venâncio Neiva (sem o Pavilhão do Chá, que foi obra do governo de João Pessoa); efetuou-se o prolongamento da Av. General Osório até a da República; e foi a aberta a Av. Epitácio Pessoa.








No acervo fotográfico reunido por Walfredo Rodríguez – curiosamente em seu Roteiro sentimental de uma cidade, publicado em São Paulo, em 1962, pela Editora Brasiliense, no qual ele nos conduz por vários cenários do velho burgo, desde o bairro do Varadouro até as praias, o Parque Sólon de Lucena não mereceu mais do que duas simples citações nas páginas 11 e 40 – que integrou a obra Dois Séculos da cidade – Passeio retrospectivo (1870-1930, editada por seu filho José de Nazareth Rodríguez, aparecem duas fotografias – uma de 1928 e outra de 1930, tendo sido a primeira captada a voo de pássaro – que podem ser consideradas documentos importantíssimos para o estudo da história do desenvolvimento urbano dessa cidade atualmente chamada de João Pessoa e, ao mesmo tempo, para a compreensão e o conhecimento de como era e/ou se encontrava o sítio e todo o espaço ao redor da lagoa que constituiria o Parque Sólon de Lucena.







Muito mais expressiva e, claro, abrangente que o registro fotográfico realizado em 1930 – nesta o mato está alto e parece até que a lagoa se encontrava seca -, a imagem aérea de 1928 é deveras impressionante e reveladora  - quando comparada com uma dos dias atuais - do quanto o amplo terreno que constitui hoje o centro fervilhante da cidade passou por uma transformação consideravelmente intensa e ampla. Nela a antiga Lagoa dos Irerês – irerê é um tipo de marreco, uma ave que primitivamente, diz-nos o diligente Wellington Aguiar no seu Cidade de João Pessoa: a memória do tempo  (3ª ed. João Pessoa: Ideia, 2002, p. 265), abundava ali para certamente, imagino, se refrescar e encontrar comida – já se mostra como algo a dominar inteiramente a paisagem de então, como se para ela tudo o mais devesse confluir. A cidade ou a ideia de cidade, o mundo urbano que se observa na fotografia, ainda está muito marcado pelo mundo rural. Celso Mariz nos diz em seu Evolução econômica da Paraíba que nos primeiros anos da República "pouco houve de molde a alterar a fisionomia" da cidade; e que num ambiente urbano ainda tão sem incremento material "Tinha-se desejo de caçar veado" no atual Parque Sólon de Lucena (Celso Mariz. "A nova arquitetura". In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 138). De acordo com o testemunho do médico, ex-deputado estadual e prefeito Luiz Gonzaga de Miranda Freire (1959-1963), "A capital terminava, nos anos 20, na Rua Diogo Velho. Após a Lagoa, existiam duas casas residenciais, apenas" (Luiz Gonzaga de Miranda Freire. "Um tempo da cidade". In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 243).Em que pese os inúmeros imóveis que aparecem principalmente no lado esquerdo e o traçado de ruas, vemos predominar a mataria, os descampados, algumas lavouras e veredas que denunciam que por essa época a capital da Paraíba apresentava uma fisionomia que conjugava a volúpia e a enorme vontade de ser de fato uma cidade-capital às delícias de uma realidade onde a presença de árvores e plantações tão próximos aos prédios, se enquadrava, podemos dizer, no conceito de rurbano” que Gilberto Freyre esmiuçou no livro Rurbanização: que é?, lançado em 1982.










A Paraíba do Norte também teve o seu George-Eugène Haussmann, o seu Francisco Pereira Passos e ele se chamava Walfredo Guedes Pereira. Paraibano de Bananeiras, Guedes Pereira estudou Medicina no Rio de Janeiro justamente durante a administração do impávido prefeito da capital federal. De volta à Paraíba, em 1908, ele logo se pôs a clinicar e angariou grande prestígio social. Convidado pelo então governador do estado Sólon de Lucena para assumir a chefia do executivo municipal com inteira liberdade de ação, Guedes Pereira, imbuído da mesma haussmannização que impregnara Pereira Passos, assumiu a Prefeitura da Cidade em outubro de 1920 e começou, a seu modo, a “modernizar” e inserir o “progresso” na capital, o que significou, entre outras coisas, como abrir novas ruas e avenidas e organizar a planta da cidade, promover a demolição de edificações históricas, como a Igreja do Rosário dos Homens Pretos. E foi ainda durante a operosa primeira administração de Guedes Pereira – ele foi prefeito em duas ocasiões: de outubro de 1920 a outubro de 1924; e de janeiro de 1935 a setembro do mesmo ano – que foi urbanizada a área circunvizinha da lagoa, com a abertura das seguintes artérias: Diogo Velho, Alberto de Brito, Montepio, Camilo de Holanda, Princesa Isabel, Pedro II, Coremas, Tabajara e Pedro I.







Com essa iniciativa Guedes Pereira traçou as “linhas mestras” daquele que seria denominado de Parque Sólon de Lucena e que o povo até hoje insiste em chamar tão somente de Parque da Lagoa ou simplesmente Lagoa – e lembremos que foi por iniciativa desse mesmo administrador que foi construído o Parque Arruda Câmara -, cuja constituição efetiva só seria verificada sob a administração dos prefeitos: Guedes Pereira novamente (25/01/35 a 13/09/35), Antônio Pereira Diniz (13/09/35 a 08/05/36), Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Melllo (16/06/36 a 11/01/38), Fernando Carneiro da Cunha Nóbrega (11/01/38 a 09/07/40), Ernani Ayres Sátiro e Souza (09/07/40 a 29/07/40) e Francisco Cícero de Melo Filho (17/08/40 a 04/04/45), período esse que em grande parte corresponde ao tempo da governança e depois interventoria de Argemiro de Figueiredo (1935-1940) – recordemos que com a decretação do Estado Novo, governo ditatorial de Getulio Vargas iniciado em 1937, a chefia dos executivos estaduais coube a interventores federais -; foi durante esse lustro que o parque viu ser nele construído um cassino, que atualmente funciona como restaurante, uma vez que esse tipo de estabelecimento entrou para  a ilegalidade no país; o terreno recebeu o plantio de diversas árvores, como palmeiras imperiais; e na lagoa se instalou uma fonte luminosa.




No artigo intitulado “Lagoa dos Irerês”, que escreveu para o número 148 do Jornal de Letras do Rio de Janeiro, publicado em 1961, Waldemar Duarte fez, à sua maneira, a descrição da paisagem que se fixara em suas lembranças:

Nossa memória se transporta ainda à velha Lagoa. Anterior mesmo à administração de Argemiro de Figueiredo palmilhamos, no verão, a bacia da Lagoa, contornando touceiras de mussambês, comendo frutos de araçás e perseguindo passarinhos com aguerrida baladeira ou balieira, conforme os garotos de minha infância. Seu porão era mais fundo, escondendo não somente passarinhos em sua flora, bem como preás e outros animais pequenos. Era o paraíso da criançada de meu tempo. Não havia calçamento, palmeiras imperiais e residências em profusão. Tudo era deserto, entregue aos desmandos e ao vandalismo da meninada. Onde hoje se localiza o Cassino existia uma plantação de eucaliptos, entre os quais o “banheiro dos soldados”. Era na lagoa onde os soldados da polícia militar faziam seus exercícios, tocando bombo e cornetas, o que atraía a meninada que fazia coro em roda dos milicianos [...] (Apud. Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 131-132).







Duarte recordou ainda do tempo em que vivia um jacaré na lagoa que acabou sendo morto com tiro de revólver por um guarda que alegou que o animal quis atacá-lo.

Complementando o que foi dito por Waldemar Duarte, leiamos o registro que nos foi deixado pelo engenheiro químico Raul Ferreira de Aguiar em 1985:

A nossa bela Lagoa (parque Solon de Lucena) no meu tempo de menino [ele nasceu em janeiro de 1908] jazia abandonada e feia. Só vendo. Era pantanosa e triste. Servia como fundo de quintal, apenas. Aqui e ali via-se porém uma casinha humilde, relegada. Alguns meninos lá tomavam banho, arriscando-se.

Embora a sua urbanização tenha começado no Governo de Solon de Lucena, foi a administração de Argemiro de Figueiredo que lhe mudou a face, no meu entender (Raul Ferreira de Aguiar. "A cidade pequena e quieta". In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 210).







Inserido no cotidiano das pessoas que frequentavam aquela parte da cidade, o Parque Sólon de Lucena foi palco de inúmeros acontecimentos que marcaram a vida de vários personagens que constituíram a vida intelectual do burgo amado. Wellington Aguiar registrou - nas páginas daquela obra de 2002 que eu já citei - a época – década de 40 – quando no tal cassino homens trajando terno e gravata e mulheres envergando elegantes vestidos dançavam foxtrotes, blues, boleros e valsas. Por volta de 1949, seu amigo Hélio Pedrosa junto com os irmãos Paulo e José Mario criaram o bloco carnavalesco Marrecos da Lagoa que só desfilou em 1951:

A grande maioria da meninada residente nas imediações participava do bloco, que era somente masculino. Nos dias de Carnaval, todos fantasiados, saíam os Marrecos da Lagoa pelas ruas da cidade e visitando as casas de famílias amigas. Nesse tempo a velha Lagoa ainda era povoada por dezenas de marrecos, também chamados irerês. Daí é que se tirou o nome do bloco (Op. cit. p. 267-268).





Busto de Augusto dos Anjos

Retiro também das crianças, um trecho do parque, sob a sombra de um bambual – essa vegetação serviu de nome para um estabelecimento muito concorrido que se instalou no local, a Churrascaria Bambu -, servia de campinho para partidas de futebol. Ao que parece foi por esse tempo que um vigia, funcionário da Prefeitura, conhecido por Rabo de Galo, passou a proibir a pesca na lagoa.

Este e os três cartões-postais seguintes eu encontrei num catálogo de leilão na internet. Não perdi tempo e salvei as imagens










O historiador José Octávio fez também ele um passeio no tempo a fim de registrar algumas de suas vivências havidas no aprazível lugar. Focalizando aspectos da “velha sociedade patriarcal”, em dado momento de sua narrativa ele nos diz da proliferação de bordéis ocupando “quase toda extensão da Maciel Pinheiro” para deleite das classes média e alta; e mais adiante destaca:

Como não dispúnhamos de dinheiro para “essas coisas”, também rigorosamente vedadas aos mais jovens, tínhamos de nos contentar com as domésticas, que os mais afoitos faturavam em casa mesmo, e os menos temerários nos bambus da Lagoa. Enraizadamente machista, a velha João Pessoa idealizava as mulheres para subjugá-las e desprezava os homossexuais, dois dos quais passavam quase diariamente pelo Parque Solon de Lucena onde nossa “reca” tinha seu quartel-general: chamavam-se Zinho e João Bom-Bom, o primeiro tendo fama de saber bastante inglês (José Octávio. “João Pessoa – Uma cidade do patriarcalismo à urbanização [1946-1955]”. In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 261).








Com perdão do lugar-comum e da frase feita, a Churrascaria Bambu, desaparecida na década de 70, foi um dos principais redutos da boemia intelectualizada que abundava na capital paraibana que marcou época. Em novembro de 1977 o jornalista Anco Márcio publicou no noticioso A União um artigo em que esmiuçou alguns dos points por ele frequentados; e da Bambu nos legou este apanhado repleto de vivacidade:

Meninos, eu vi. Vi a noite nascer na minha cidade, e os homens silenciosos se encaminharam para a Bambu ou o Cassino. Meninos, eu vi. A noite surgir cheia de promessas mágicas, e extrair de dentro de seu seio um monte de atrações, entre as quais se sobressaía a Bambu, com suas mesas de toalhas remendadas, seus garçons que atendiam pelo primeiro nome, suas cervejas estupidamente geladas circulando como “sputniks” de alegria em minha frente.

Meninos eu devorei tudo aquilo com meus olhos de quase criança, vendo o menestrel Virginius da Gama e Melo, bebendo cerveja numa mesa onde todos eram bem recebidos, todos bebiam muito e somente o bom menestrel pagava. Vi Mané Caixa D’água [o poeta José Manoel de Lima], paletó branco solto ao vento do leste, ser abraçado e cumprimentado pelo menestrel. Vi Chambá, Zé Paulo, Carioca, Assis e tantos outros alimentando nossa noite e nossos sonhos.

Meninos, eu provei dos galetos da Bambu, experimentei da sua saborosa “língua ao molho madeira” cujo sabor ainda me enche a boca d’água ao lembrar. Vi as brigas acontecidas na Bambu, vi Ivo Bichara ditando modas e comportamento, e toda minha geração, de meninos magros e sem dinheiro, terem ali sua formação profissional e artística.

E vi também, depois de ter ouvido boatos nos quais me recusava a acreditar, os restos de minha Bambu jogados ao chão, como se ela fosse uma coisa qualquer, e não o “templo” sagrado de tantos e tantos sonhos. Vi o madeirame da Bambu apodrecer na chuva, e ser desmanchado em mil partículas que para nada servem, a não ser para atiçar as saudades. Depois, vi minha geração se dirigindo ao Hawai [o Hawai era instalado na sobreloja do Palace Hotel, no Ponto de Cem Réis], barzinho sofisticado àquele tempo, com suas luzes vermelhas, ar condicionado, e a fumaça azulada dos cigarros a encher o ambiente (Anco Márcio. “Por bares sempre dantes madrugados”. In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 161).








Com um olhar bastante apurado, próprio de quem acompanhava de muito perto o que se passava pela cidade, o cronista Antônio Freire reuniu em livro intitulado muito acertadamente de Visões de uma época (João Pessoa: Gráfica Comercial Ltda, 1969), alguns dos seus textos nos quais se sente de imediato aquele sabor de cumplicidade para com as miudezas da vida cotidiana. Como aqui eu estou a descrever impressões acerca do Parque Sólon de Lucena, vou citar duas crônicas em que essa área de lazer aparece como pano de fundo. Em “O fantasma da lagoa”, Freire comenta que por aqueles dias uma assombração – e era do sexo feminino a danada – dera para aparecer à noite por ali aceitando até carona nos carros que passavam. Trajando branco, como convém às fantasmagorias, a “bela mulher” chegou mesmo a ser entrevistada pelo jornalista Benedito Maia, tendo dito a ele que se chamava Maria do Céu e que tinha uma missão a cumprir nas capitais do Nordeste. Mas seria isso verdade? Nosso cronista informa ainda aos seus leitores que outra versão sobre o caso estava a circular; e dizia que, na verdade, não havia fantasma algum; tratava-se era de uma ladra que usando um cigarro de perfume especial, “enrolava” a “negrada” subtraindo-lhe o porta-cédulas. Porém, como que duvidando dos relatos, ele concluiu desse modo a narrativa:



Ladra ou fantasma, espírito desencarnado ou encarnado no corpo de uma mulher bonita, o nosso dever é comentar o caso que se tornou notícia. O resto fica por conta de quem afirma que viu e foi parte no fenômeno (p.34).










Bom, se a “bela mulher” que rondava a lagoa por aqueles dias era um espectro ou não, não podemos precisar. O fato é que Antônio Freire, deixando o caso de lado, tratou em “Os inquilinos do parque” de seres que, ninguém duvidava, eram bem reais, palpáveis e de carne e osso e que, à maneira deles, tentavam sobreviver numa realidade social perversa e excludente num tempo em que, governando o país, militares de alta patente comandavam o destino de toda a população sob um regime ditatorial, crentes de que acabariam com todas as mazelas que assolavam a nação. Em umas poucas linhas Antônio Freire fez um retrato deveras revelador de um aspecto que se verificava na capital paraibana do seu tempo. Sim, o Parque Sólon de Lucena continuava sendo “o ponto mais pitoresco da cidade”. Mas não só isso. Ele também servia como “abrigo para os desamparados”. Deixemos que o próprio escritor nos mostre com mais detalhes o que ele via:

Há inquilinos permanentes como aquela mulher, que tem por teto uma frondosa cássia, a panela empinada sobre três tijolos, a fumaça subindo como suspiro de pobreza, alguns panos corando ao sol (p. 129).

Ah, já que em linhas atrás falamos de assombração e espíritos de outro mundo, acompanhemos o relato do advogado e escritor Álfio Ponzi:

Era a Paraíba romântica, cidade que terminava na Rua Treze de Maio. Dali para trás era a misteriosa lagoa, no sítio de Dona Chiquinha Moura. À noite os gases de metano produziam o "fogo fátuo" e surgiam lendas, como a do "Preto Cão da Lagoa". Os jornais da Festa das Neves certa vez fizeram motes e glosas em torno da misteriosa figura que surgia das noites e perseguia os viandantes, com os olhos eitos duas tochas acesas. Na verdade, as tochas eram o gás dos pântanos e o resto a imaginação criava, às vezes envolvendo respeitáveis figuras da sociedade, a quem atribuíam a força de transformarem-se no fantástico animal (Álfio Ponzi. "Paisagem e costumes, tempo e espaço". In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit. p. 228).









Acompanhando as transformações por que a cidade foi passando ao longo das décadas, o Parque Sólon de Lucena chegou ao século XXI testemunhando muito de um urbanismo, por assim dizer, seletivo, que, em vez de ser voltado para o todo da população, estendia seus braços definidores de mudanças visando a atender demandas de segmentos específicos da sociedade, o que, talvez em parte, explique o longo tempo em que ele permaneceu apresentando uma triste figura, como que dizendo que era de todo ignorado pelos sucessivos prefeitos que assumiam a administração municipal.







Quando, em outubro de 2008, em companhia de Ernani Neves, eu comecei a me enamorar das coisas da Paraíba e me pus a percorrer de um lado a outro sua capital como a buscar nela uma herança que a mim fora prometida e por isso era tão desejada, depois da Cidade Baixa e da Cidade Alta, foi no Parque Sólon de Lucena que me pareceu que a alma da cidade também poderia ser encontrada, uma vez que eram – e ainda são – para ele que muitos caminhos confluíam. Contudo, devo-lhes dizer que, à medida que eu percorria o terreno sob o arvoredo testemunho de tantos acontecimentos, e pisava naquele chão cenário de tantas histórias e mirava a mansidão melancólica da lagoa, eu de pronto me certifiquei do grau de abandono em que se encontrava aquele lugar que me pareceu menos um parque e mais uma paisagem que perdera sua serventia primeva e estava sendo destinada a usos degradantemente indevidos.


Amigas fazendo um piquenique


E pensar que carros trafegavam por aqui


A primeira coisa que me impressionou naquele sítio que apesar de tudo ainda ostentava a denominação de parque, não foi a quantidade absurda de lixo espalhada por quase todo o seu perímetro; não foi a constatação de que também ali, como acontece na Praia de Tambaú, onde um hotel ocupa indevida e desrespeitosamente o espaço público, ergueram um cassino; não foi a ausência de canteiros de plantas ornamentais; não foi a existência, em toda a área, de um único e diminuto banheiro para o qual o acesso era cobrado; não foram os bares que à noite punham seus aparelhos de som nos mais elevados decibéis, parecendo querer disputar os fregueses pela altura em que as músicas eram tocadas; não foi a completa ausência de brinquedos para as crianças; não foi o breu que tornava certos pontos do espaço, locais que se evitavam temendo assaltos; o que mais lamentavelmente chamou a minha atenção foi verificar a total e completa submissão de um equipamento urbano concebido para o lazer da população às sempre propaladas necessidades do tráfego de veículos: contornando a lagoa, ou seja, separando-a do restante do parque e, por conseguinte, impedindo a livre circulação de potenciais frequentadores, um anel viário de grande movimento, não só para carros, como também ônibus, caminhões e tudo o mais, era, com o perdão da ironia, o principal atrativo do Parque Sólon de Lucena. Era-me profundamente lamentável e ao mesmo tempo estarrecedor constatar que uma cidade tão dada a ser exaltada por suas belezas naturais e por sua condição de ser uma das mais arborizadas do país, estivesse abrindo mão de um lugar tão aprazível, parecendo ignorar a sua existência e a sua vocação para ser, em pleno e tumultuoso centro comercial e financeiro, um refúgio de paz, tranquilidade e contemplação da natureza.








O Parque Sólon de Lucena se encontrava de tal forma degradado e abandonado – chegou-se até a usá-lo como estacionamento em certos trechos -, que, quando foi anunciado que ele passaria por um grande processo de revitalização, custou-se a acreditar que isso fosse mesmo possível.








No último dia 3 de julho - e eu voltaria a revê-lo dois meses depois, na tarde do domingo 4 de setembro -, numa manhã de inverno na qual o sol enchia o domingo de uma luz convidativa para os passeios ao ar livre, eu fui até o Parque Sólon de Lucena a fim de conferir o resultado da obra revitalizadora que se prolongara por muitíssimos meses e que fora entregue à população no dia 12 de junho. Sem entrar no mérito das discussões em torno da execução do projeto – um dos pontos que ganhou repercussão na imprensa versava a respeito da dimensão do píer sobre a lagoa que no projeto original era mais extenso – nem do valor total da obra – R$ 12.512.578,05 -, confesso que a primeira coisa que me deixou maravilhado foi a coragem que teve a Municipalidade de retirar o anel viário do interior daquele cenário, atribuindo a ele, com isso, a condição verdadeira de parque. A outra coisa que fez com que eu me enchesse de satisfação foi ver o lugar sendo ocupado por famílias inteiras, seja praticando esportes, seja acompanhando os filhos nos brinquedos, seja para promover um piquenique, estendendo uma toalha sobre a grama e curtindo a vida simplesmente. Nunca antes que eu vira o Parque Sólon de Lucena pulsando daquela maneira. Espantoso como a obra de revitalização conseguiu trazer de volta para o parque a população que dele se afastara tamanho era o seu grau de degradação. Agora existem canteiros – e bem cuidados -, banheiros amplos e adequados, bebedouros, lanchonetes organizadas e, pelo menos nos dias em que eu lá estive, a presença de agentes de segurança circulando por todo o parque. É verdadeiramente outro o Parque Sólon de Lucena que hoje se vê.

















Em 1969, quando a convite das Listas Telefônicas do Brasil, José Américo de Almeida, o consagrado autor de A bagaceira, escreveu o perfil turístico da capital paraibana – o texto, transformado no gracioso livro Cidade de João Pessoa: roteiro de ontem e de hoje, contendo belíssimas aquarelas de Sóter Carneiro e fotografias de José Marques e Edglay Delgado, foi lançado pela Prefeitura Municipal em 2005 -, ele disse que, vista do alto, João Pessoa “aparece mergulhada num bosque” e que o Parque Sólon de Lucena “é o ponto de mais atração da cidade” (respectivamente páginas 11 e 27). Transcorridos  quase cinquenta anos, a afirmação de Zé Américo nunca esteve tão em voga como nos dias atuais.


Esta e as demais fotos que seguem abaixo foram tiradas no domingo 4 de setembro

























Quando vier o tempo da florada dos paus-d’arco (ipês amarelos), sob o olhar arguto de Augusto dos Anjos, o poeta do Eu presente ali em forma de busto, o amarelo intenso e vibrante dessas árvores encherá ainda de mais vida o Parque Sólon de Lucena, ampliando a sua beleza e deixando feéricas as margens remansosas da lagoa. Nesse tempo que virá o amarelo será um poema dentro de cada pessoa que percorrer ou avistar o parque, cabendo nela um sopro de satisfação pelo tanto de vida que encontrará ali, onde inegavelmente pulsa o coração da cidade.

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