7 de outubro de 2016

Augusto Malta: o fotógrafo da belle époque carioca

Por Clênio Sierra de Alcântara










Natural de Mata Grande – passou o lugar a se chamar Paulo Afonso pela Lei nº 516, de 30 de abril de 1870; elevada à categoria de vila pela Lei nº 328, de 5 de junho de 1902, ainda com esse nome, em 25 de maio de 1929, voltou ao de Mata Grande -, interior de Alagoas, onde nasceu em 14 de maio de 1864, Augusto César Malta de Campos teve dezoito irmãos; e seguindo uma tradição arraigada em muitas famílias nordestinas do seu tempo, foi escolhido pelos pais para manter sua vida no sacerdócio. Mandado para a casa do padre Antônio Marques de Castilho, Augusto até que chegou a iniciar os estudos religiosos, mas com o falecimento do seu preceptor, em 1886, acabou deles se afastando, talvez por pura falta de vocação para viver um cotidiano pacato e avesso ao dinamismo do mundo que estava para além do seu rincão interiorano. E dando outro rumo para si, partiu para se alistar no Exército, no Recife.

Dispensado do serviço militar, em fins de 1888 o alagoano chegou à cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, onde trabalhou primeiro como auxiliar de escrita da Casa Leandro Martins, tendo sido promovido a guarda-livros no ano seguinte. Ateu, republicano e ao mesmo tempo admirador do imperador Dom Pedro II, Augusto Malta foi um dos espectadores que assistiram, no Campo de Santana, à proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

Por volta de 1890, Augusto retornou à sua cidade natal para rever a família; e voltou para o Rio de Janeiro levando algum dinheiro – investiu-o num armazém de secos e molhados, a Casa Ouvidor, na rua de mesmo nome, que acabou falindo – e seus irmãos Alfredo e Joaquim – depois chegariam Fernando e Teófilo. Após o malogro com o negócio do armazém, em 1894, e de um outro na Rua Larga de São Joaquim, ele deu início a uma bem sucedida vida de vendedor de tecidos de porta em porta, percorrendo as ruas da cidade montado numa bicicleta. No ano de 1900, um de seus clientes, um guarda-marinha, propôs trocar a bicicleta por uma máquina fotográfica, e Augusto, ao que parece, aceitou de imediato a proposta e se pôs a fazer retratos e belas vistas da cidade de maneira amadorística. O negócio de venda de tecidos continuou, mas o manuseio da câmera fotográfica por aquele homem de poucos estudos formais e que lia muito, inclusive em francês, desencadearia outra mudança em sua vida.

Esse até aqui simples cidadão apresentado como um entre os tantos milhares de indivíduos que deixavam o norte agrário do país sonhando em tomar parte no mundo de riquezas e oportunidades que diziam existir no Rio de Janeiro que, naquela época, ainda não recebera o epíteto de “cidade maravilhosa”, mas que gozava, havia mais de cem anos, do status de capital do Brasil, viria a se transformar, como fotógrafo, numa das mais singulares personalidades da nossa belle époque tropical. E é ele o personagem que emerge das breves, instigantes e reveladoras páginas do livro Augusto Malta e o Rio de Janeiro (1903-1936), de George Ermakoff – deixem-me esclarecer: são breves as páginas biográficas; a obra em si, um livro primoroso lançado em 2009 pela G. Ermakoff Casa Editorial, do Rio de Janeiro, possui quase trezentas páginas reunindo um acervo de três centenas de fotografias, uma coleção admirável para dizer o mínimo.

Enquanto ia aprendendo a manusear sua câmera, Augusto Malta aproveitava para sair pela cidade fazendo registro de tudo o que lhe dava na telha; e não demorou para que suas fotografias adquirissem alguma fama. E assim foi que, em 1903, apresentado por um amigo comum, o empreiteiro Antônio Alves da Silva Júnior, ao todo-poderoso prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906), o homem que promoveria um verdadeiro e gigantesco bota-abaixo no Rio de Janeiro, remodelando principalmente os espaços mais antigos com um projeto de urbanização inspirado pelo ideário dito higienista, saneador e embelezador que fora capitaneado por Georges-Eugène Haussmann na Paris oitocentista de Napoleão III, o alagoano foi de pronto contratado como fotógrafo pela Prefeitura do Distrito Federal, cargo que ocuparia durante trinta e três anos – talvez deva ser o primeiro caso dessa natureza havido no país- para cobrir não apenas as obras de demolição/construção que tomariam aquela parte da cidade, bem como documentar os imóveis e áreas que passariam por processos de desapropriação – não foram poucas as vezes em que, por exemplo, suas fotografias serviram como provas contra pessoas desonestas que tentavam enganar os fiscais da Municipalidade  dizendo que seus imóveis possuíam mais de um andar e/ou outro número de cômodos com o fito de conseguirem uma indenização maior.    

No estudo Evolução urbana do Rio de Janeiro, Maurício de Almeida Abreu (3ª ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 63) nos dá uma dimensão do que significou a intervenção de Pereira Passos no espaço citadino:

O período Passos (aqui incluídas as obras realizadas pela União) foi, pois, um período revolucionador da forma urbana carioca, que passou a adquirir, a partir de então, uma fisionomia totalmente nova e condizente com as determinações econômicas e ideológicas do momento.

É fato que Augusto Malta alcançou algum reconhecimento ainda em vida; e que ele próprio, a partir de dado momento, passou a ver o seu ofício como algo que ultrapassava o mero protocolo laboral de funcionário público - ele também prestou serviços a empresas - e adquirira a feição e o valor de um produto artístico. Tanto isso é verdade que sabemos que ele fazia reproduções – mesmo no formato de cartão-postal, quando isso se tornou objeto principalmente de colecionismo – para ser vendidas, era contratado para cobrir eventos e fotografar determinadas paisagens e se empenhava para conseguir fazer o registro de grandes personalidades do seu tempo – entre outros flagrados por suas lentes figuraram Machado de Assis, Barão do Rio Branco, Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco e os irmãos Henrique e Rodolfo Bernardelli.

Essa consciência não somente do caráter venal mas também artístico de suas fotografias certamente foi a grande responsável por levá-lo a buscar, com igual zelo, um apuro não somente da sensibilidade do olhar, bem como da própria natureza material da fotografia. Por mais que se queira situar Augusto Malta num patamar abaixo de outros fotógrafos – George Ermakoff não esqueceu de apontar essa questão – considerados profissionais no pleno domínio de suas atividades, como Marc Ferrez e Georg Leuzinger, dizendo que seus registros não atingiram o grau de refinamento de composição que esses outros alcançaram, é, a meu ver, indiscutível o fato de que sua produção, o vasto conjunto fotográfico que ele legou para a posteridade e que constitui parte do acervo de instituições tão diversas como o Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), o Museu Histórico Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, além, claro, do que está em posse de coleções particulares, ultrapassou o aspecto simplesmente documental – principalmente o conjunto que mapeou praticamente todo o chamado Rio Antigo, uma colossal obra de memória urbana – é de suma importância para a história do país e que ele, Augusto Malta, atingiu a condição de um dos maiores e mais importantes fotógrafos brasileiros do século XX.

A fotografia não é só um testemunho pessoal. No dizer de Boris Kossoy, a imagem fotográfica “é o que resta do acontecido, fragmento congelado de uma realidade passada, informação maior de vida e morte, além de ser o produto final “que caracteriza a intromissão de um ser fotógrafo num instante dos tempos” (Fotografia & História. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, p. 41).

Augusto César Malta de Campos faleceu em 30 de junho de 1957, aos 93 anos – ele pretendia morrer com 120 anos – de insuficiência cardíaca, no Rio de Janeiro. Foi nesse ano que ocorreu a demolição do Hotel Avenida, um prédio erguido em 1911, na Av. Rio Branco. Num poema em que buscou registrar o acontecimento e ao qual intitulou de “A um hotel em demolição” (ele aparece no livro A vida passada a limpo; cito-o aqui recorrendo ao volume 2 da Nova reunião: 23 livros de poesia, lançado pela BestBolso, do Rio de Janeiro, em 2009), o poeta Carlos Drummond de Andrade a certa altura evocou a figura do alagoano na tessitura dos seus versos:

Vem, ó velho Malta
saca-me uma foto
pulvicinza efialta
desse pouso ignoto
[...]
Velho Malta, please,
bate-me outra chapa:
hotel de marquise
maior que o Rio Apa (p. 47 e 48).

Dando uma demonstração de que ignoravam a importância e a grandeza do fotógrafo, os organizadores do volume XIX da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, lançado em 1959, não incluíram Augusto Malta na galeria dos “vultos ilustres” no verbete dedicado à cidade de Mata Grande (p.104).


Ilustrando estudos os mais diversos e não apenas os que tratam especificamente de urbanismo e/ou desenvolvimento urbano, as imagens produzidas por Augusto Malta constituem um patrimônio nacional que não só os alagoanos, bem como os brasileiros em geral, precisam conhecer e preservar. Dono de um olhar que unia o arrojo e a sensibilidade a uma técnica que ele teve a audácia de desenvolver autodidatamente, esse mata-grandense tem em muito de sua história aspectos de algo sublime que faz dele um personagem surpreendente e admirável.

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