Natural de Mata Grande – passou o lugar a se chamar Paulo Afonso pela Lei nº 516, de 30 de abril de 1870; elevada à categoria de vila pela Lei nº 328, de 5 de junho de 1902, ainda com esse nome, em 25 de maio de 1929, voltou ao de Mata Grande -, interior de Alagoas, onde nasceu em
14 de maio de 1864, Augusto César Malta de Campos teve dezoito irmãos; e
seguindo uma tradição arraigada em muitas famílias nordestinas do seu tempo,
foi escolhido pelos pais para manter sua vida no sacerdócio. Mandado para a
casa do padre Antônio Marques de Castilho, Augusto até que chegou a iniciar os
estudos religiosos, mas com o falecimento do seu preceptor, em 1886, acabou
deles se afastando, talvez por pura falta de vocação para viver um cotidiano
pacato e avesso ao dinamismo do mundo que estava para além do seu rincão
interiorano. E dando outro rumo para si, partiu para se alistar no Exército, no
Recife.
Dispensado do serviço
militar, em fins de 1888 o alagoano chegou à cidade do Rio de Janeiro, então
capital federal, onde trabalhou primeiro como auxiliar de escrita da Casa
Leandro Martins, tendo sido promovido a guarda-livros no ano seguinte. Ateu,
republicano e ao mesmo tempo admirador do imperador Dom Pedro II, Augusto Malta
foi um dos espectadores que assistiram, no Campo de Santana, à proclamação da
República, em 15 de novembro de 1889.
Por volta de 1890, Augusto
retornou à sua cidade natal para rever a família; e voltou para o Rio de
Janeiro levando algum dinheiro – investiu-o num armazém de secos e molhados, a
Casa Ouvidor, na rua de mesmo nome, que acabou falindo – e seus irmãos Alfredo
e Joaquim – depois chegariam Fernando e Teófilo. Após o malogro com o negócio
do armazém, em 1894, e de um outro na Rua Larga de São Joaquim, ele deu início a
uma bem sucedida vida de vendedor de tecidos de porta em porta, percorrendo as
ruas da cidade montado numa bicicleta. No ano de 1900, um de seus clientes, um
guarda-marinha, propôs trocar a bicicleta por uma máquina fotográfica, e
Augusto, ao que parece, aceitou de imediato a proposta e se pôs a fazer
retratos e belas vistas da cidade de maneira amadorística. O negócio de venda
de tecidos continuou, mas o manuseio da câmera fotográfica por aquele homem de
poucos estudos formais e que lia muito, inclusive em francês, desencadearia
outra mudança em sua vida.
Esse até aqui simples
cidadão apresentado como um entre os tantos milhares de indivíduos que deixavam
o norte agrário do país sonhando em tomar parte no mundo de riquezas e
oportunidades que diziam existir no Rio de Janeiro que, naquela época, ainda não
recebera o epíteto de “cidade maravilhosa”, mas que gozava, havia mais de cem
anos, do status de capital do Brasil, viria a se transformar, como fotógrafo,
numa das mais singulares personalidades da nossa belle époque tropical. E é ele o personagem que emerge das breves,
instigantes e reveladoras páginas do livro Augusto
Malta e o Rio de Janeiro (1903-1936), de George Ermakoff – deixem-me
esclarecer: são breves as páginas biográficas; a obra em si, um livro primoroso
lançado em 2009 pela G. Ermakoff Casa Editorial, do Rio de Janeiro, possui
quase trezentas páginas reunindo um acervo de três centenas de fotografias, uma
coleção admirável para dizer o mínimo.
Enquanto ia aprendendo a
manusear sua câmera, Augusto Malta aproveitava para sair pela cidade fazendo registro
de tudo o que lhe dava na telha; e não demorou para que suas fotografias
adquirissem alguma fama. E assim foi que, em 1903, apresentado por um amigo
comum, o empreiteiro Antônio Alves da Silva Júnior, ao todo-poderoso prefeito
Francisco Pereira Passos (1902-1906), o homem que promoveria um verdadeiro e
gigantesco bota-abaixo no Rio de Janeiro, remodelando principalmente os espaços
mais antigos com um projeto de urbanização inspirado pelo ideário dito
higienista, saneador e embelezador que fora capitaneado por Georges-Eugène Haussmann
na Paris oitocentista de Napoleão III, o alagoano foi de pronto contratado como
fotógrafo pela Prefeitura do Distrito Federal, cargo que ocuparia durante
trinta e três anos – talvez deva ser o primeiro caso dessa natureza havido no
país- para cobrir não apenas as obras de demolição/construção que tomariam
aquela parte da cidade, bem como documentar os imóveis e áreas que passariam
por processos de desapropriação – não foram poucas as vezes em que, por
exemplo, suas fotografias serviram como provas contra pessoas desonestas que
tentavam enganar os fiscais da Municipalidade dizendo que seus imóveis possuíam mais de um
andar e/ou outro número de cômodos com o fito de conseguirem uma indenização
maior.
No estudo Evolução urbana do Rio de Janeiro,
Maurício de Almeida Abreu (3ª ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 63) nos dá
uma dimensão do que significou a intervenção de Pereira Passos no espaço
citadino:
O
período Passos (aqui incluídas as obras realizadas pela União) foi, pois, um período
revolucionador da forma urbana carioca, que passou a adquirir, a partir de
então, uma fisionomia totalmente nova e condizente com as determinações
econômicas e ideológicas do momento.
É fato que Augusto Malta
alcançou algum reconhecimento ainda em vida; e que ele próprio, a partir de
dado momento, passou a ver o seu ofício como algo que ultrapassava o mero
protocolo laboral de funcionário público - ele também prestou serviços a empresas - e adquirira a feição e o valor de um
produto artístico. Tanto isso é verdade que sabemos que ele fazia reproduções –
mesmo no formato de cartão-postal, quando isso se tornou objeto principalmente de
colecionismo – para ser vendidas, era contratado para cobrir eventos e
fotografar determinadas paisagens e se empenhava para conseguir fazer o
registro de grandes personalidades do seu tempo – entre outros flagrados por
suas lentes figuraram Machado de Assis, Barão do Rio Branco, Euclides da Cunha,
Joaquim Nabuco e os irmãos Henrique e Rodolfo Bernardelli.
Essa consciência não somente
do caráter venal mas também artístico de suas fotografias certamente foi a
grande responsável por levá-lo a buscar, com igual zelo, um apuro não somente
da sensibilidade do olhar, bem como da própria natureza material da fotografia.
Por mais que se queira situar Augusto Malta num patamar abaixo de outros
fotógrafos – George Ermakoff não esqueceu de apontar essa questão –
considerados profissionais no pleno domínio de suas atividades, como Marc
Ferrez e Georg Leuzinger, dizendo que seus registros não atingiram o grau de
refinamento de composição que esses outros alcançaram, é, a meu ver,
indiscutível o fato de que sua produção, o vasto conjunto fotográfico que ele
legou para a posteridade e que constitui parte do acervo de instituições tão diversas
como o Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), o Museu Histórico Nacional e o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, além, claro, do que está em posse
de coleções particulares, ultrapassou o aspecto simplesmente documental –
principalmente o conjunto que mapeou praticamente todo o chamado Rio Antigo,
uma colossal obra de memória urbana – é de suma importância para a história do
país e que ele, Augusto Malta, atingiu a condição de um dos maiores e mais
importantes fotógrafos brasileiros do século XX.
A fotografia não é só um
testemunho pessoal. No dizer de Boris Kossoy, a imagem fotográfica “é o que
resta do acontecido, fragmento congelado de uma realidade passada, informação
maior de vida e morte, além de ser o produto final “que caracteriza a
intromissão de um ser fotógrafo num instante dos tempos” (Fotografia & História. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2014, p. 41).
Augusto César Malta de
Campos faleceu em 30 de junho de 1957, aos 93 anos – ele pretendia morrer com
120 anos – de insuficiência cardíaca, no Rio de Janeiro. Foi nesse ano que
ocorreu a demolição do Hotel Avenida, um prédio erguido em 1911, na Av. Rio
Branco. Num poema em que buscou registrar o acontecimento e ao qual intitulou
de “A um hotel em demolição” (ele aparece no livro A vida passada a limpo; cito-o aqui recorrendo ao volume 2 da Nova reunião: 23 livros de poesia, lançado
pela BestBolso, do Rio de Janeiro, em 2009), o poeta Carlos Drummond de Andrade
a certa altura evocou a figura do alagoano na tessitura dos seus versos:
Vem,
ó velho Malta
saca-me
uma foto
pulvicinza
efialta
desse
pouso ignoto
[...]
Velho
Malta, please,
bate-me
outra chapa:
hotel
de marquise
maior
que o Rio Apa (p. 47 e 48).
Dando uma demonstração de
que ignoravam a importância e a grandeza do fotógrafo, os organizadores do
volume XIX da Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros, lançado em 1959, não incluíram Augusto Malta na galeria dos “vultos
ilustres” no verbete dedicado à cidade de Mata Grande (p.104).
Ilustrando estudos os mais
diversos e não apenas os que tratam especificamente de urbanismo e/ou
desenvolvimento urbano, as imagens produzidas por Augusto Malta constituem um
patrimônio nacional que não só os alagoanos, bem como os brasileiros em geral,
precisam conhecer e preservar. Dono de um olhar que unia o arrojo e a
sensibilidade a uma técnica que ele teve a audácia de desenvolver
autodidatamente, esse mata-grandense tem em muito de sua história aspectos de
algo sublime que faz dele um personagem surpreendente e admirável.
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