Por Clênio Sierra de Alcântara
Fotos: do autor A Ponte Getulio Vargas necessita de urgentes reparos e o poder público se valeu de paliativos para enfrentar um problema tão grave |
Durante mais de quatrocentos anos, desde que os europeus aportaram em suas praias no século XVI, os habitantes da Ilha de Itamaracá, localizada no litoral norte pernambucano, tinham de recorrer a embarcações para chegar ao continente. Eram tempos muito difíceis para os ilhéus que precisavam tratar de grandes necessidades e mesmo de coisas mais comezinhas em terra firme.
Veio o século XX e a população da ilha continuou isolada do restante do mundo. Os mais abonados moradores daquele lugar, como João Felipe de Barros, o Jango, e Eduardo Carvalho, davam-se ao luxo de possuírem dois automóveis: um na ilha e outro em Itapiçuma. A gente pobre que não queria e/ou não podia fazer uso das barcaças, atravessava o braço de mar – o Canal de Santa Cruz, que separa a ilha do continente – em canoas abertas e, em Itapiçuma, apanhavam a “sopa”, ônibus, do tipo pau-de-arara, cujo serviço foi inaugurado por volta de 1928 ou 1929 por um italiano chamado Francisco Caselli, cujo empreendimento era denominado Empresa Nordestina de Auto-viação Francisco Caselli.
Nesta foto pode-se ver claramente que parte do guarda-corpo da ponte caiu, bem como o tapume que puseram no local |
Conta-nos Alves da Mota em
seu livro Itamaracá (Itamaracá:
Prefeitura Municipal de Itamaracá, 1985) que, quando começaram a circular os
boatos de que se pretendia construir uma ponte naquele canal, não foram poucos
os motejos e pilhérias enfocando o fato, talvez porque grande parte da
população itamaracaense não acreditasse que um projeto deste fosse possível,
mesmo considerando que não era tão extensa a distância a separar a ilha do
território continental. Uns diziam que a tal ponte seria construída com troncos
de coqueiros velhos que não davam mais frutos; outros afirmavam que o material
a ser usado eram as cascas de coco, muito abundante na ilha.
Deixando os gracejos de
lado, o fato foi que, sob a responsabilidade do engenheiro Manuel César de
Moraes Rêgo, da Secretaria de Viação e Obras Públicas do Governo do Estado –
era a época da ditadura do Estado Novo de Getulio Vargas (1937-1945); por esse
tempo os governadores foram substituídos pelos chamados interventores federais;
e quem assumiu a interventoria de Pernambuco foi Agamenon Magalhães, que muitos
chamavam de China Gordo – começou a ser erguida, no ano de 1938, em concreto
armado, com largura de apenas 5,5 m, que não permitia, por exemplo, que dois
ônibus trafegassem por ela em sentido contrário de maneira simultânea, a ponte
tão aspirada pelos ilhéus, cuja inauguração, ao que parece, ocorreu em 1939.
Como sinal daquele período político sombrio, a ponte foi batizada de Getulio
Vargas; e a praça que a antecede, no lado de Itapiçuma, recebeu o nome do
acólito muito dedicado do ditador, o senhor Agamenon Magalhães.
Além de bloquear o trânsito de pedestres, o espaço da passagem de veículos foi diminuído em sua largura com a colocação de gelos-baianos |
Alves da Mota acreditava que o que motivou a construção da Ponte Getulio Vargas foi a decisão do interventor de estabelecer na ilha uma unidade prisional: a Penitenciária Agrícola de Itamaracá. Bom, fosse pelo motivo que fosse não houve dúvida de que a ponte proporcionou certo conforto e sinalizou o rumo de algum progresso para os itamaracaenses. É ainda de Alves da Mota o seguinte testemunho:
Tudo ficou então mais fácil para os habitantes da ilha. Uma viagem ao Recife, que se fazia, em um ou mais dias dependendo de favores dos Mestres das barcaças, conforme a favorabilidade dos ventos e, ainda, esperando houvesse barcaça carregada, no porto, para seguir viagem, no ônibus, passou-se a fazer essa mesma viagem em duas horas ou um pouco mais, ônibus, na época, não tão velozes quantos (sic) os de hoje, rodando em estradas ainda não totalmente pavimentadas (Op. cit. p. 71).
Muito embora desde muito cedo tenha se percebido que a estrutura da ponte não era compatível com o enorme tráfego de veículos que por ela passou a circular, sobretudo quando Itamaracá se tornou um dos principais balneários do Nordeste procurado por turistas, obras de recuperação e de alargamento só foram executadas na década de 1990, sob os auspícios do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), durante a gestão do governador Miguel Arraes, e oficialmente entregues à população no dia 9 de junho de 1995.
Transcorridos vinte e um anos desde aquela obra de revitalização, a Ponte Getulio Vargas é ela própria – assim como o estado de quase petição de miséria em que se encontra a Ilha de Itamaracá, onde resido há quase dezesseis anos – o retrato fiel e acabado do quão foi e tem sido daninha para o litoral norte a política governamental que durante essas duas décadas privilegiou e destinou o grosso dos recursos de toda ordem e não apenas os relacionados com o turismo, para o litoral sul pernambucano, fazendo de praias como Porto de Galinhas, Carneiros e Maracaípe – e as de Fernando de Noronha também – os principais cartões-postais do estado, relegando as outras ao abandono e ao descaso, ignorando a preservação não somente do patrimônio natural em si, que a orla marítima das cidades de Paulista, Igaraçu, Itamaracá e Goiana – lembremos que esta última integra ainda a chamada Zona da Mata – possuem, bem como o patrimônio histórico edificado que existe em suas redondezas.
Neste lado da ponte pode-se observar a existência de um dos tapumes |
Faz pelo menos três anos que o processo lento e gradual de corrosão se estabeleceu na Ponte Getulio Vargas, processo esse que já destruiu vários trechos do seu guarda-corpo e da passagem de pedestres e que tem deixado assustadas as pessoas que diariamente precisam atravessá-la. Provando sua ineficiência tamanha o governo estadual se valeu de paliativos para minimizar a gravidade da realidade: mandou pôr tapumes nos vazios deixados pela queda de parte da estrutura da ponte; bloqueou o acesso de pedestres; e ainda pôs gelos-baianos para diminuir a largura do espaço de trafegabilidade dos veículos.
A Ponte Getulio Vargas que,
nos idos da década de 1940, foi vista como um sinal de progresso e de
modernidade, hoje é um dos símbolos – e dos mais gritantes – do grau de
desprezo e da falta de comprometimento do poder público não somente para com a
integridade física das pessoas que moram e/ou visitam a Ilha de Itamaracá; ela é
a representação, por assim dizer, da forma que neste país os governantes, em
particular, e os políticos, em geral, se posicionam frente àqueles que os
elegem: os elos e as pontes que os ligam estão quase sempre deteriorados; daí
por que nunca estão perfeitamente em sintonia o discurso legitimador da
autoridade e as ações práticas de execução propriamente ditas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário