4 de novembro de 2016

O Hotel Globo está a te esperar

Por Clênio Sierra de Alcântara 



Varadouro (velhos bondes)
todos mortos – tempos maus...
No Hotel Globo te somes,
sobem almas nos degraus.
Depois, voltam para a ponte,
vão se embora em suas naus.

                            Jomar Morais de Souto. Itinerário lírico da cidade de João Pessoa.                                           3ª ed. João Pessoa: Editora Universitária – UFPB, 1977, p. 23


Fotos: Arquivo do autor 
 O Hotel Globo é um dos atrativos do sítio histórico da capital paraibana que merece a sua visita


O passado ...


No tempo em que foi fundado por Henrique Siqueira, conhecido como Seu Marinheiro, o Hotel Central, situado na antiga Rua dos Ferreiros (atual Rua João Suassuna, onde prédios antigos estão caindo aos pedaços; no sentido Rio Sanhauá, do lado esquerdo da rua fica a Praça Álvaro Machado, e, no lado direito, a Praça 15 de Novembro), era um dos poucos que existiam no bairro do Varadouro. Estava-se em 1909 - ano em que o Hotel Central foi fundado -, em plena belle époque; e a capital da paraibana, que ainda se chamava Paraíba do Norte, vivia dias de intensas novidades que buscavam conferir à cidade ares de progresso e modernização. Sob a administração do governador João Machado (1908-1912) foi instalado o serviço de abastecimento de água e de energia elétrica; e os bondes de burro foram substituídos pelos carris. Projetou-se uma transformação no porto, que acabaria malograda, mas que, antes disso e por conta dele, vários imóveis foram demolidos a fim de alargar as artérias que confluíam para a zona portuária; e nesse bota-abaixo que se verificou na década de 1920, o Hotel Central sumiu da paisagem levado pelas obras.


Em primeiro plano o deteriorado prédio da antiga alfândega. Ao fundo, o rio e o mangue





É no artigo “Palco de grandes transformações, Hotel Globo é restaurado em João Pessoa (PB)”, divulgado no site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 4 de agosto de 2016 (www.iphan.gov.br. Acesso: 6 de agosto de 2016), que se diz que o Hotel Globo foi primeiro batizado de Hotel Central, que ele surgiu em 1909 e que ele foi demolido por conta das obras portuárias.

Nas páginas do seu muito celebrado Roteiro sentimental de uma cidade (São Paulo: Editora Brasiliense, 1962), Walfredo Rodríguez, o escritor, o fotógrafo, o cineasta e, no meu entender, o guardião-mor da memória urbana da capital paraibana, em momento algum nos diz do Hotel Central como sendo o primitivo Hotel Globo. Na tal Rua João Suassuna, marcada pela presença de firmas diversas e armazéns de algodão, couro, açúcar e sal, ele relata que existia um Hotel Universal pertencente a Vicente Montenegro; e menciona um sobrado de três andares onde, no térreo, “se encontra o salão de refeições do hotel de Manuel Gomes Ribeiro”, que ele não diz como se chamava (Op. cit., p. 49). Já na página 122 do seu mencionado estudo, Walfredo Rodríguez conta que, em 12 de março de 1912, um Mr. James, engenheiro da firma inglesa James Simpson, encontrava-se “com acesso febril, no Hotel Central, onde estava hospedado”, mas ficamos sem saber qual era o endereço desse estabelecimento. Existia ainda no Varadouro um Hotel União, só que na Rua Barão do Triunfo (Op. cit., p. 160), e o famoso Hotel Luso-brasileiro, na Praça Álvaro Machado, onde, em fins de 1929, hospedou-se o “turista aprendiz” Mário de Andrade.

Reunindo parte do acervo fotográfico deixado por seu pai, José de Nazareth Rodríguez elaborou e publicou o álbum 2 séculos da cidade – Passeio retrospectivo (1870-1930), lançado em João Pessoa, pela Interplan, em data que eu não sei precisar. Nesse álbum encontra-se uma foto, na página 93, cuja legenda diz ser um registro de 1910, na qual vemos o Hotel Globo ocupando um sobradão de três andares – fora o térreo. Essa mesma fotografia foi publicada na página 291 do livro Uma cidade de quatro séculos: evolução e roteiro, organizado por Wellington Aguiar e José Octávio e publicada pelo Governo do Estado da Paraíba em 1985. E ainda nessa obra encontra-se um depoimento prestado pelo médico, professor e ex-deputado estadual Luiz Gonzaga de Miranda Freire que principia assim: “Vim para a então cidade da Paraíba, em 1923, aos 11 anos de idade. Deixava definitivamente Alagoa Grande, onde nasci. Na época, a capital tinha cerca de 35.000 habitantes e seu principal hotel era o Globo, pertencente ao velho Marinheiro, e ficava na praça da estação ferroviária” (Luiz Gonzaga de Miranda Freire. “Um tempo da cidade”. In Wellington Aguiar e José Octávio. Op. cit., p. 243).

Mesmo que não esteja correta a data da legenda da foto - 1910 -, o fato é que com tal denominação o Hotel Globo já existia na Rua João Suassuna antes de ir ocupar o prédio no Largo de São Pedro


Pelo que vimos nessas informações, o Hotel Globo já existia com esse nome muitíssimo antes de ir instalar-se em novo endereço em 1929; e que, pelo menos até 1923, ainda figurava na Rua João Suassuna num ponto da artéria que não foi, ao que parece, atingido pelas obras de construção do porto do Varadouro. Aquela imagem contida no álbum de fotografias acima mencionado – e sua legenda – me fez crer que, na verdade, o Hotel Globo já principiou com esta denominação; e que o tal Hotel Central ocupava outra edificação. Consulta a anúncios de jornais e revistas da época ou registros da Municipalidade poderiam sanar essa dúvida

O novo Hotel Globo

Construído em estilo do movimento eclético com linhas arquitetônicas neoclássicas e elementos do Art nouveau e Art déco, outro imóvel passou, em 1929, a abrigar, no Largo de São Pedro, o novo Hotel Globo; o segundo bloco de edificação foi erguido na década seguinte; e, durante vários anos, gozou da condição de ser o melhor e mais prestigiado da capital, atraindo, por isso, hóspedes famosos como Procópio Ferreira e sua filha Bibi Ferreira, e o ex-presidente da República Ernesto Geisel.



Vista da parte de trás dos dois edifícios que constituíam o hotel

Nesta foto vemos parte do muro de arrimo que precisou ser erguido para sustentar o terreno







Wellington Aguiar assim nos apresenta a conhecida casa de hospedagem no seu livro Cidade de João Pessoa: a memória do tempo (3ª ed. João Pessoa: Ideia, 2002, p. 140):


Hotel Globo de tantas saudades dos chefes políticos do interior, que chegavam de trem para influir com força nas decisões governamentais.

Hotel Globo que começou a diminuir sua força quando o grande João Pessoa – homem de mentalidade urbana – deu início ao desprestígio do coronelismo nestas plagas. Hotel Globo que voltou aos seus grandes dias com o retorno da importância dos coronéis, no período governamental de Argemiro [de] Figueiredo (1935-1940). Velho hotel que usava louças inglesas e ostentava, nas paredes do salão de refeições, belíssimos espelhos de cristal da Boemia...




Arborizado e acolhedor, o ambiente da parte de trás das edificações proporciona ao visitante um olhar para um trecho da antiga zona portuária




Grupo de turistas que chegou logo depois de mim


Tempo houve em que Aguinaldo Siqueira, então dono do Hotel Globo – não sei o grau de parentesco dele com o Henrique do tempo do Hotel Central – resolveu colocar um barzinho na área livre do estabelecimento, foi o que contou aos seus leitores Anco Márcio, o etílico poeta, na edição de 26 de novembro de 1977 do jornal A União. Anco Márcio nos diz que era um frequentador habitual do bar, ou melhor, “o frequentador principal, tendo feito até poemas de louvor a ele”, poemas que lhe valeram uma semana de bebidas de graça. As tardes memoráveis no terraço do Hotel Globo eram destino de vários homens de letras, daí por que, segundo o bardo saudosista, o recreio, digamos assim, passou a ser conhecido como “Barzinho dos Intelectuais”:


Depois o barzinho do Globo morreu. Morreu por bondade do seu dono, que foi fazer fiado demais para uns certos intelectuais, e no fim só viu falido. Mas (sic) uma porta fechou-se para nós que cultivamos Baco (Anco Márcio. “Por bares sempre dantes madrugados”. Apud. Wellington Aguiar e José Octávio. Uma cidade de quatro séculos: evolução e roteiro. João Pessoa: Governo do Estado da Paraíba, 1985, p. 162).



Vem vindo o trem...







A decadência do Hotel Globo se seguiu à transferência das atividades portuárias do Varadouro para Cabedelo. Manteve-se em funcionamento até meados dos anos 70. Encontrava-se já fechado no decênio seguinte, ocasião em que foi desapropriado pelo Governo do Estado. Entre 1990 e 1994 passou por obras de restauração pela primeira vez.










... E o presente


Não é só a indiferença que anda a lançar seus tentáculos destruidores por sobre o Varadouro, o primitivo bairro, a área de ocupação urbana mais antiga da capital paraibana, ali onde efetivamente a cidade teve início. Ainda que seja doloroso e lamentável constatar o que se verifica, por exemplo, na Rua João Suassuna, na Rua Barão da Passagem e na emblemática Rua da Areia, nas quais antigos sobrados, de tão arruinados, estão dando adeus à paisagem do sítio histórico, uma vaga de resistência contra a perda do patrimônio edificado também se verifica ali.












No sábado 3 de setembro, pela manhã, eu atravessei a Av. Beaurepaire Rohan com destino ao Pátio de São Pedro, aquele recanto de onde se tem uma das vistas mais bonitas do encontro dos rios Sanhauá e Paraíba, para conferir o resultado do processo de restauro do Hotel Globo, que fora reentregue à população no mês anterior, na semana em que os paraibanos comemoraram os quatrocentos e trinta e um anos de sua cidade-capital, louvando Nossa Senhora das Neves e dizendo a plenos pulmões – paraibano tem muito de pernambucano também no quesito vaidade. Ah, fazer o quê? Nós somos assim mesmo – que aquele burgo é um dos melhores lugares do mundo para se viver.


Deste terraço a paisagem natural se descortina para o visitante








Antecedendo a intervenção nos prédios propriamente ditos, foi necessário erguer um muro de arrimo no terreno que fica por trás dos imóveis, sem o qual as edificações ficariam inteiramente comprometidas.



Ao fundo a Igreja de São Frei Pedro Gonçalves








As obras de restauro devolveram aos edifícios toda a dignidade e beleza que eles possuíam. Erguido em 1926 – o prédio principal – o Hotel Globo, enquanto funcionou como tal, hospedou figuras ilustres que eram atraídas certamente não apenas pelo prestígio de bons serviços que a casa gozava, como também pela sua localização privilegiada: um outeiro que abriga a Igreja de São Frei Pedro Gonçalves e um conjunto de casas que confere ao cenário algo de um singelo encanto. E, afora a proximidade com a estação ferroviária, ainda hoje em funcionamento, e com os armazéns e com a alfândega do velho porto, de seu terraço os hóspedes descortinavam uma paisagem natural deslumbrante, a mesma que os europeus – e os índios nativos, bem antes deles – conheceram há quase quinhentos anos e que continua ao alcance dos nossos olhos.



Igor Messias em dia de visita ao sítio histórico de sua cidade




Em meio ao grupo de turistas que chegou para conhecer a famosa edificação pouco depois de mim – e eles chegaram justo quando o trem vinha vindo correndo celeremente, todo vigoroso e pimpão, bem ao lado, juntinho mesmo, do muro que delimita o terreno do hotel, amostrado que só ele, como que pedindo para ser fotografado -, estava Igor Messias, que não era turista coisa nenhuma e, sim, um morador da zona litorânea da cidade que fora até lá para, assim como eu, rever um patrimônio do centro histórico que acabara de ser restaurado.




















Contrastando com o estado de esplendor em que se encontra o Hotel Globo, o visitante se depara, ainda no Pátio de São Pedro, com duas construções abandonadas que fazem feia figura no local e que ladeiam o hotel. Na parte de trás a situação é ainda mais dramática: o prédio da antiga alfândega e outros ligados ao passado de pujança do porto estão bastante deteriorados, o que nos faz pensar e indagar: como pôde o poder público permitir que tanto da história da cidade e, por conseguinte, de sua memória urbana, fundada e estabelecida no Varadouro, se convertesse em ruínas e escombros?


































O casario do Largo de São Pedro







Eu tentando sair bem na foto
















Altaneiro e cheio de si, o Hotel Globo está à espera de visitantes. Não pode mais abrigar hóspedes em suas dependências, como em anos passados, mas continua a oferecer a todos os que o procuram a oportunidade de estar num dos mais pitorescos e encantadores cenários da boa e sempre bem receptiva – e hospitaleira – capital da Paraíba.


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