Varadouro
(velhos bondes)
todos
mortos – tempos maus...
No Hotel
Globo te somes,
sobem
almas nos degraus.
Depois,
voltam para a ponte,
vão se
embora em suas naus.
Jomar Morais de Souto. Itinerário lírico da cidade de João Pessoa. 3ª ed. João Pessoa: Editora Universitária –
UFPB, 1977, p. 23
Fotos: Arquivo do autor O Hotel Globo é um dos atrativos do sítio histórico da capital paraibana que merece a sua visita |
No tempo em que foi fundado
por Henrique Siqueira, conhecido como Seu Marinheiro, o Hotel Central, situado
na antiga Rua dos Ferreiros (atual Rua João Suassuna, onde prédios antigos
estão caindo aos pedaços; no sentido Rio Sanhauá, do lado esquerdo da rua fica a Praça Álvaro Machado, e, no lado direito, a Praça 15 de Novembro), era um dos poucos que existiam no bairro do Varadouro. Estava-se
em 1909 - ano em que o Hotel Central foi fundado -, em plena belle époque; e a
capital da paraibana, que ainda se chamava Paraíba do Norte, vivia dias de
intensas novidades que buscavam conferir à cidade ares de progresso e
modernização. Sob a administração do governador João Machado (1908-1912) foi
instalado o serviço de abastecimento de água e de energia elétrica; e os bondes
de burro foram substituídos pelos carris. Projetou-se uma transformação no
porto, que acabaria malograda, mas que, antes disso e por conta dele, vários
imóveis foram demolidos a fim de alargar as artérias que confluíam para a zona
portuária; e nesse bota-abaixo que se verificou na década de 1920, o Hotel
Central sumiu da paisagem levado pelas obras.
Em primeiro plano o deteriorado prédio da antiga alfândega. Ao fundo, o rio e o mangue |
É no artigo “Palco de grandes
transformações, Hotel Globo é restaurado em João Pessoa (PB)”, divulgado no
site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 4 de agosto
de 2016 (www.iphan.gov.br. Acesso: 6 de
agosto de 2016), que se diz que o Hotel Globo foi primeiro batizado de Hotel
Central, que ele surgiu em 1909 e que ele foi demolido por conta das obras
portuárias.
Nas páginas do seu muito
celebrado Roteiro sentimental de uma
cidade (São Paulo: Editora Brasiliense, 1962), Walfredo Rodríguez, o
escritor, o fotógrafo, o cineasta e, no meu entender, o guardião-mor da memória
urbana da capital paraibana, em momento algum nos diz do Hotel Central como
sendo o primitivo Hotel Globo. Na tal Rua João Suassuna, marcada pela presença
de firmas diversas e armazéns de algodão, couro, açúcar e sal, ele relata que
existia um Hotel Universal pertencente a Vicente Montenegro; e menciona um
sobrado de três andares onde, no térreo, “se encontra o salão de refeições do
hotel de Manuel Gomes Ribeiro”, que ele não diz como se chamava (Op. cit., p.
49). Já na página 122 do seu mencionado estudo, Walfredo Rodríguez conta que, em
12 de março de 1912, um Mr. James, engenheiro da firma inglesa James Simpson,
encontrava-se “com acesso febril, no Hotel Central, onde estava hospedado”, mas
ficamos sem saber qual era o endereço desse estabelecimento. Existia ainda no
Varadouro um Hotel União, só que na Rua Barão do Triunfo (Op. cit., p. 160), e
o famoso Hotel Luso-brasileiro, na Praça Álvaro Machado, onde, em fins de 1929,
hospedou-se o “turista aprendiz” Mário de Andrade.
Reunindo parte do acervo
fotográfico deixado por seu pai, José de Nazareth Rodríguez elaborou e publicou
o álbum 2 séculos da cidade – Passeio retrospectivo
(1870-1930), lançado em João Pessoa, pela Interplan, em data que eu não sei
precisar. Nesse álbum encontra-se uma foto, na página 93, cuja legenda diz ser
um registro de 1910, na qual vemos o Hotel Globo ocupando um sobradão de três
andares – fora o térreo. Essa mesma fotografia foi publicada na página 291 do livro
Uma cidade de quatro séculos: evolução e
roteiro, organizado por Wellington Aguiar e José Octávio e publicada pelo
Governo do Estado da Paraíba em 1985. E ainda nessa obra encontra-se um
depoimento prestado pelo médico, professor e ex-deputado estadual Luiz Gonzaga
de Miranda Freire que principia assim: “Vim para a então cidade da Paraíba, em
1923, aos 11 anos de idade. Deixava definitivamente Alagoa Grande, onde nasci. Na
época, a capital tinha cerca de 35.000 habitantes e seu principal hotel era o
Globo, pertencente ao velho Marinheiro, e ficava na praça da estação
ferroviária” (Luiz Gonzaga de Miranda Freire. “Um tempo da cidade”. In Wellington
Aguiar e José Octávio. Op. cit., p. 243).
Mesmo que não esteja correta a data da legenda da foto - 1910 -, o fato é que com tal denominação o Hotel Globo já existia na Rua João Suassuna antes de ir ocupar o prédio no Largo de São Pedro |
Pelo que vimos nessas
informações, o Hotel Globo já existia com esse nome muitíssimo antes de ir
instalar-se em novo endereço em 1929; e que, pelo menos até 1923, ainda
figurava na Rua João Suassuna num ponto da artéria que não foi, ao que parece,
atingido pelas obras de construção do porto do Varadouro. Aquela imagem contida
no álbum de fotografias acima mencionado – e sua legenda – me fez crer que, na
verdade, o Hotel Globo já principiou com esta denominação; e que o tal Hotel
Central ocupava outra edificação. Consulta a anúncios de jornais e revistas da época ou registros da Municipalidade poderiam sanar essa dúvida
O novo Hotel Globo
Construído em estilo do
movimento eclético com linhas arquitetônicas neoclássicas e elementos do Art nouveau e Art déco, outro imóvel passou, em 1929, a abrigar, no Largo de
São Pedro, o novo Hotel Globo; o segundo
bloco de edificação foi erguido na década seguinte; e, durante vários anos,
gozou da condição de ser o melhor e mais prestigiado da capital, atraindo, por
isso, hóspedes famosos como Procópio Ferreira e sua filha Bibi Ferreira, e o
ex-presidente da República Ernesto Geisel.
Vista da parte de trás dos dois edifícios que constituíam o hotel |
Nesta foto vemos parte do muro de arrimo que precisou ser erguido para sustentar o terreno |
Wellington Aguiar assim nos
apresenta a conhecida casa de hospedagem no seu livro Cidade de João Pessoa: a memória do tempo (3ª ed. João Pessoa:
Ideia, 2002, p. 140):
Hotel
Globo de tantas saudades dos chefes políticos do interior, que chegavam de trem
para influir com força nas decisões governamentais.
Hotel
Globo que começou a diminuir sua força quando o grande João Pessoa – homem de
mentalidade urbana – deu início ao desprestígio do coronelismo nestas plagas. Hotel
Globo que voltou aos seus grandes dias com o retorno da importância dos
coronéis, no período governamental de Argemiro [de] Figueiredo (1935-1940). Velho
hotel que usava louças inglesas e ostentava, nas paredes do salão de refeições,
belíssimos espelhos de cristal da Boemia...
Arborizado e acolhedor, o ambiente da parte de trás das edificações proporciona ao visitante um olhar para um trecho da antiga zona portuária |
Grupo de turistas que chegou logo depois de mim |
Tempo houve em que Aguinaldo
Siqueira, então dono do Hotel Globo – não sei o grau de parentesco dele com o
Henrique do tempo do Hotel Central – resolveu colocar um barzinho na área livre
do estabelecimento, foi o que contou aos seus leitores Anco Márcio, o etílico
poeta, na edição de 26 de novembro de 1977 do jornal A União. Anco Márcio nos diz que era um frequentador habitual do
bar, ou melhor, “o frequentador principal, tendo feito até poemas de louvor a
ele”, poemas que lhe valeram uma semana de bebidas de graça. As tardes
memoráveis no terraço do Hotel Globo eram destino de vários homens de letras,
daí por que, segundo o bardo saudosista, o recreio, digamos assim, passou a ser
conhecido como “Barzinho dos Intelectuais”:
Depois o barzinho do Globo
morreu. Morreu por bondade do seu dono, que foi fazer fiado demais para uns certos
intelectuais, e no fim só viu falido. Mas (sic) uma porta fechou-se para nós que
cultivamos Baco (Anco Márcio. “Por bares sempre dantes madrugados”. Apud. Wellington
Aguiar e José Octávio. Uma cidade de
quatro séculos: evolução e roteiro. João Pessoa: Governo do Estado da
Paraíba, 1985, p. 162).
Vem vindo o trem... |
A decadência do Hotel Globo
se seguiu à transferência das atividades portuárias do Varadouro para Cabedelo.
Manteve-se em funcionamento até meados dos anos 70. Encontrava-se já fechado no
decênio seguinte, ocasião em que foi desapropriado pelo Governo do Estado. Entre
1990 e 1994 passou por obras de restauração pela primeira vez.
... E o presente
Não é só a indiferença que
anda a lançar seus tentáculos destruidores por sobre o Varadouro, o primitivo
bairro, a área de ocupação urbana mais antiga da capital paraibana, ali onde
efetivamente a cidade teve início. Ainda que seja doloroso e lamentável
constatar o que se verifica, por exemplo, na Rua João Suassuna, na Rua Barão da
Passagem e na emblemática Rua da Areia, nas quais antigos sobrados, de tão
arruinados, estão dando adeus à paisagem do sítio histórico, uma vaga de
resistência contra a perda do patrimônio edificado também se verifica ali.
No sábado 3 de setembro,
pela manhã, eu atravessei a Av. Beaurepaire Rohan com destino ao Pátio de São
Pedro, aquele recanto de onde se tem uma das vistas mais bonitas do encontro
dos rios Sanhauá e Paraíba, para conferir o resultado do processo de restauro
do Hotel Globo, que fora reentregue à população no mês anterior, na semana em
que os paraibanos comemoraram os quatrocentos e trinta e um anos de sua
cidade-capital, louvando Nossa Senhora das Neves e dizendo a plenos pulmões – paraibano
tem muito de pernambucano também no quesito vaidade. Ah, fazer o quê? Nós somos
assim mesmo – que aquele burgo é um dos melhores lugares do mundo para se
viver.
Deste terraço a paisagem natural se descortina para o visitante |
Antecedendo a intervenção nos prédios propriamente ditos, foi necessário
erguer um muro de arrimo no terreno que fica por trás dos imóveis, sem o qual
as edificações ficariam inteiramente comprometidas.
Ao fundo a Igreja de São Frei Pedro Gonçalves |
As obras de restauro
devolveram aos edifícios toda a dignidade e beleza que eles possuíam. Erguido em
1926 – o prédio principal – o Hotel Globo, enquanto funcionou como tal,
hospedou figuras ilustres que eram atraídas certamente não apenas pelo
prestígio de bons serviços que a casa gozava, como também pela sua localização
privilegiada: um outeiro que abriga a Igreja de São Frei Pedro Gonçalves e um
conjunto de casas que confere ao cenário algo de um singelo encanto. E, afora a
proximidade com a estação ferroviária, ainda hoje em funcionamento, e com os
armazéns e com a alfândega do velho porto, de seu terraço os hóspedes descortinavam
uma paisagem natural deslumbrante, a mesma que os europeus – e os índios
nativos, bem antes deles – conheceram há quase quinhentos anos e que continua
ao alcance dos nossos olhos.
Igor Messias em dia de visita ao sítio histórico de sua cidade |
Em meio ao grupo de turistas que chegou para conhecer a famosa
edificação pouco depois de mim – e eles chegaram justo quando o trem vinha
vindo correndo celeremente, todo vigoroso e pimpão, bem ao lado, juntinho
mesmo, do muro que delimita o terreno do hotel, amostrado que só ele, como que
pedindo para ser fotografado -, estava Igor Messias, que não era turista coisa
nenhuma e, sim, um morador da zona litorânea da cidade que fora até lá para,
assim como eu, rever um patrimônio do centro histórico que acabara de ser restaurado.
Contrastando com o estado de
esplendor em que se encontra o Hotel Globo, o visitante se depara, ainda no
Pátio de São Pedro, com duas construções abandonadas que fazem feia figura no
local e que ladeiam o hotel. Na parte de trás a situação é ainda mais dramática:
o prédio da antiga alfândega e outros ligados ao passado de pujança do porto
estão bastante deteriorados, o que nos faz pensar e indagar: como pôde o poder
público permitir que tanto da história da cidade e, por conseguinte, de sua
memória urbana, fundada e estabelecida no Varadouro, se convertesse em ruínas e
escombros?
O casario do Largo de São Pedro |
Eu tentando sair bem na foto |
Altaneiro e cheio de si, o
Hotel Globo está à espera de visitantes. Não pode mais abrigar hóspedes em suas
dependências, como em anos passados, mas continua a oferecer a todos os que o
procuram a oportunidade de estar num dos mais pitorescos e encantadores
cenários da boa e sempre bem receptiva – e hospitaleira – capital da Paraíba.
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