Por Clênio Sierra de Alcântara
O
homem é a única e quase inconcebível realidade
que existe sem possuir esse ser
irremediavelmente
predefinido,
que não é desde o início o que é, mas
que
precisa escolher para si seu próprio ser.
José Ortega y Gasset. Missão do bibliotecário
Foto: Edmond Dansot Edson Nery da Fonseca na ocasião em que foi inaugurada a biblioteca do Senac do Recife batizada com o nome dele, em março de 1999 |
Durante muito tempo eu só
conhecia Edson Nery da Fonseca através das páginas dos livros e jornais,
saboreando sua inspiradora e instigante escrita cheia de vigor e de coragem. Há
seis anos tive o grande, o imenso, o desmedido privilégio de conhecê-lo
pessoalmente; e conhecer alguém como ele é o mesmo que encontrar um grande
tesouro.
Edson Nery da Fonseca me
fascinou completamente: o seu porte de lorde inglês; a sua memória de muitos gigabytes; a sua generosidade desmedida;
o seu muito gostar de gatos, que é um gosto que eu também tenho; e a sua
disposição para ouvir e para falar com quem quer que fosse até a sua
casa disposto a entrevistá-lo, jogar conversa fora ou simplesmente conhecê-lo.
Amante ardoroso dos livros
assim como o era o seu amigo Gilberto Freyre, Edson cultivava o hábito da
leitura não somente como um meio de aquisição de conhecimento, mas, mais do que
isso, creio eu, a leitura era para ele uma necessidade vital, um suporte
imprescindível para uma existência que foi quase toda ela marcada por um
convívio muito próximo, digo melhor, muito íntimo com os livros. E isso ficava
deveras evidente não apenas pelo conhecimento por vezes enciclopédico que ele
expunha aos seus interlocutores, como também pelas amizades que fez, pela
profissão de bibliotecário que desempenhou, pelo ofício de escritor que exerceu
e pela ambiência que tinha a sua derradeira morada, na Rua de São Bento, em
Olinda, onde eu efetivamente o conheci e posso dizer, sem exagero, que
desfrutei de alguns dos momentos mais singulares e fecundos da minha vida.
O elo que em princípio me
ligou a Edson Nery da Fonseca foi o nosso interesse e admiração pela vida e
pela obra do autor de Casa-grande & senzala; mas, desde que eu estive pela primeira vez em sua casa, esse liame
ganhou outra dimensão e força. A partir daquele dia inesquecível a presença
dele em minha consciência de existir reconfigurou algumas de minhas
pretensiosas certezas e se pôs a me mostrar a justa medida do meu lugar no
mundo e a iluminar o caminho que eu precisava seguir para de alguma maneira
conseguir pisar firme no chão e deixar algum mínimo sinal de minha passagem. Edson
não era só meu amigo; ele era também meu confidente, meu incentivador, meu
exemplo a ser seguido, minha admoestação, meu “ponha-se no seu lugar” e meu
porto intelectual e afetivo.
Eis agora a descrição de um
sonho que vivenciei semanas atrás: estávamos, eu e Edson, sentados num banco de
uma praça que parecia ser a do Carmo, em Olinda, numa tarde diáfana na qual os
raios do sol pareciam estar direcionados apenas para nós dois. Tendo-o ali ao
meu lado, tão vigoroso e são, eu me pus a chorar copiosamente. E ele, com a meiguice
que também sabia ofertar, buscava me consolar dizendo que eu não tivesse medo
do mundo; que eu tivesse, isso sim, coragem para enfrentar as adversidades que
me fossem aparecendo. Inconformado, como seu eu soubesse que estava dentro de
um cenário onírico, me quedava de tal maneira inconsolável que acabei
despertando e trazendo as lágrimas do sonho para a realidade.
Toda aquela matéria de vida
permanece em mim condensada na forma de uma lembrança que nunca há de ser
desfigurada: a fachada da casa pintada de branco e azul; Edson concentrado em alguma leitura; Lúcia Nery da Fonseca
cochilando na poltrona antes de despertar para dizer o Angelus com o irmão; os gatos ditando seus gostos e vontades em
quase todos os cantos da residência; a pitangueira florida no quintal; Seu Vino
preparando o lanche da tarde; a atmosfera de nostalgia a dominar o ambiente...
Sinto muita falta de Edson
Nery da Fonseca.
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