Foto: www.lavue.com.br Projeção de como ficaria o edifício La Vue Ladeira da Barra, em Salvador. Indiscutivelmente quem observa essa imagem constata que a paisagem histórica da capital baiana já aparece densamente ocupada por inúmeros prédios e pode se perguntar se um edifício a mais faria mesmo diferença no cenário. Como se chegou a esse ponto?
Órgão governamental quase
octogenário, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
foi criado em 1937 tendo sido gestado por alguns dos mais brilhantes
intelectuais deste país, como Mario de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade
e Gilberto Freyre. Sua criação efetivamente tornou real uma preocupação que
norteava os afazeres de um grupo seleto de homens que buscavam garantir a
salvaguarda para as futuras gerações daquilo que eles compreendiam que era
necessário preservar como bens históricos: basicamente exemplares de
edificações civis, religiosas e militares erguidas durante o período colonial,
porque, na avaliação deles, foi nessa época que começou a ser forjada a
identidade nacional e aquilo que se convencionou chamar de brasilidade.
Como se sabe esse espírito
de proteção, digamos assim, se estabeleceu no Brasil tomando como referência o
que foi se fixando na França após o acontecimento da Revolução Francesa. Também
é sabido que, já no final da década de 1920, de modo pioneiro nas terras
brasileiras, o estado de Pernambuco instituiu a chamada Inspetoria dos
Monumentos Nacionais – a propósito leia-se o esclarecedor estudo de Rodrigo
Cantareli intitulado Contra a conspiração
da ignorância com a maldade: a Inspetoria de Monumentos de Pernambuco
(Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2014).
Em que pese o caráter
protecionista, por assim dizer, da instituição que por trinta anos, desde a sua
fundação, foi dirigida por Rodrigo Melo Franco de Andrade, o Sphan – ela começou
como Serviço, depois é que virou Instituto – amargou durante décadas a pecha de
ter sido criado para proteger e preservar o chamado patrimônio material que
dizia fundamentalmente da história das elites e dos grupos dominadores da
sociedade, desprezando ou, dito de outro modo, não avaliando e deixando de lado
o que era ligado às camadas mais baixas da população, como se as realizações da
cultura popular não fizessem parte, não fossem, igualmente, elementos
constitutivos da história total desta nação - a esse respeito, entre outros,
pode ser lido o livro A teimosia das
pedras: um estudo sobre a preservação do patrimônio ambiental no Brasil, de
autoria de Vera Milet, que foi publicado em Olinda em 1988.
Tempo levaria para que as diretrizes
protecionistas do Iphan passassem a englobar não apenas os ditos “monumentos
nacionais” que representavam as elites, mas também edificações outras que eram
testemunhos materiais da existência e da ação desse cadinho efervescente
chamado povo. Além disso, afora o patrimônio edificado, os artefatos e
instrumentos e as paisagens naturais, estendeu-se a proteção ao denominado
patrimônio imaterial que compreende, entre outras coisas, manifestações
folclóricas, saberes e conhecimentos tradicionais. É digno de nota, como
lembrou Carlos A. C. Lemos no seu O que é
patrimônio histórico (São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 39), que o anteprojeto elaborado por Mario de Andrade, tido como o embrião de formação do Iphan, agrupava as
obras de arte em oito categorias, sendo a terceira a chamada “arte popular”.
Todavia essa correção de
rumo não significou a redenção do instituto. Com uma trajetória praticamente
toda ela marcada pela escassez de recursos humano e financeiro, o Iphan nunca
deixou de ser atacado de ineficiente e de ser cobrado pelo estado de abandono
em que se encontram um e outro patrimônio que esteja sob a sua esfera de
proteção.
Comumente o Iphan aparece na
imprensa para dar resposta sobre casos de edificações e de acervos que estejam
em ruína e/ou necessitando de urgentes reparos e ações de conservação. Pois desde
a semana retrasada o órgão ganhou espaço na mídia por conta de uma série de
acontecimentos tão nocivos para a sociedade quanto os cupins e o descaso o são
para os monumentos. Marcelo Calero, ex-ministro da Cultura do vacilante governo
do presidente Michel Temer, declarou à imprensa qual foi o real motivo do seu
pedido de demissão do cargo: ele estava sofrendo pressão do secretário de
Governo – com status de ministro – Geddel Vieira Lima para que o Iphan
liberasse a construção de um edifício de alto padrão chamado La Vue Ladeira da
Barra, numa área tombada de Salvador que estabelece um plano de gabarito –
altura dos prédios – para que não comprometa a visualização do conjunto de
monumentos históricos e a própria paisagem que estão no entorno. O que se
seguiu à declaração de Calero foi o conhecimento de que o senhor Geddel
adquiriu um apartamento ainda na planta – ao custo de alguns milhões de reais –
no tal empreendimento e estava, com a pressão para a aprovação da obra,
efetuando tráfico de influência.
Num primeiro momento o Iphan
posou neste episódio como um baluarte de resistência contra supostas
intromissões de quem quer que seja em suas avaliações e decisões quanto à
proteção do patrimônio histórico, porque a superintendência nacional da
entidade não aprovou a liberação da obra imobiliária. No entanto o caso ganhou
contornos bastante desabonadores para a instituição que, inevitavelmente, creio
eu, mancharam de modo considerável a sua reputação. Tomamos ciência de que a
obra, na verdade, fora iniciada com a anuência da superintendência baiana do
instituto, que aprovara o projeto e, depois, a superintendência nacional o
embargou.
Ora, como a representação
local da instituição tomou uma decisão dessas unilateralmente e em prejuízo dos
preceitos basilares e da própria essência de criação do Iphan e, por
conseguinte, contra a proteção do patrimônio? Será que isso se tratou de um
caso isolado ou será que sob os escombros das traficâncias institucionalizadas
muito do patrimônio nacional já foi desfigurado e/ou completamente perdido por
este país afora? E tem mais. O ministro da Cultura do governo Dilma Rousseff,
Juca Ferreira, revelou em uma rede social que teve de demitir, em outubro de
2015, o então superintendente do Iphan na Bahia, Carlos Amorim, que aprovou o
projeto do prédio de luxo recorrendo, vejam só, a manobras ilegítimas, para
dizer o mínimo, incorporando aos laudos e estudos técnicos uma fotomontagem “para
sustentar a falsa premissa de que as poligonais de tombamento dos bens
localizados na vizinhança do prédio não alcançavam a área onde se localizaria o
prédio” (“Com a missão de conter os avanços de Geddel”. Diario de Pernambuco. Recife, 21 de novembro de 2016, Política, p.
A3). E sabem o que é pior? O engenheiro que deu o aval de liberação para a
construção do imóvel, Bruno Tavares, foi nomeado superintendente do Iphan
baiano em maio deste ano. Tudo isso é muito vergonhoso, não? Vergonhoso,
absurdo, triste e lamentável.
Na semana passada, em
depoimento espontâneo prestado à Polícia Federal, Marcelo Calero não somente
reiterou a afirmação de que sofrera pressão de Geddel Vieira Lima como
acrescentou que o ministro-chefe da Casa Civil Eliseu Padilha e até o
presidente da República Michel Temer, com tanto o que ele tem para fazer a fim
de tentar reerguer a economia do país e reativar a geração de empregos e tudo o
mais, se meteram numa pendenga de interesses particulares pedindo também eles a
Calero que intercedesse em favor de Geddel, ou seja, em detrimento dos
interesses coletivos. Francamente, o Brasil não é um país que deva ser levado a
sério. Alardeia-se a toda hora um suposto movimento de combate à corrupção e a
todos os males que ela é capaz de gerar e, ao mesmo tempo, recorre-se à ela
para a “solução” de qualquer mínima coisa.
Quem percorre o sítio
histórico de Salvador, como eu o fiz anos atrás, fica espantado ao se deparar
com várias edificações arruinadas nessa que é uma das mais antigas cidades
brasileiras e a primeira capital do país. Em meio ao acúmulo de ruínas o
observador pode se perguntar: onde está o pessoal do Iphan que não toma
providência contra esse estado de degradação do patrimônio? Outras indagações que podem lhe chegar são as seguintes: será que o La Vue Ladeira da Barra faria mesmo diferença num local onde já foram construídos tantos prédios? Por que a área em questão está tão densamente ocupada? Como se permitiu que se chegasse a esse ponto?
Como o episódio envolvendo o
La Vue Ladeira da Barrra dia a dia vinha expondo ainda mais as entranhas dos
interesses particulares do senhor Geddel Vieira Lima e, consequentemente,
provocando desgaste na já deteriorada imagem do governo do presidente Michel
Temer, Geddel entregou, ainda na semana passada, sua carta de demissão a fim
de, pelo menos por ora, sair de cena e da luz inquiridora dos holofotes. O desfecho
do caso – bastante previsível por sinal – não deixou, por outro lado, de – repita-se
isso – marcar de maneira negativa a existência do Iphan. No entanto não deve
passar em branco o ato extremamente louvável – ainda que apenas em nota
liberada para circulação interna – da presidente da entidade, Kátia Bogéa, de
escrever defendendo não somente a autonomia do órgão frente a tentativas de
desestabilizá-lo, bem como a postura firme das pessoas competentes e honestas
que integram o Iphan.
A relutância que parte de nossa
gente demonstra contra a modernização das instituições públicas, exibe o grau
de subdesenvolvimento no qual continuamos mergulhados. Ética, moralidade e
honestidade são princípios sempre negociáveis neste país. Os fatos envolvendo
ministros de Estado, o presidente da República e o principal órgão responsável
pela salvaguarda da memória da nação em torno da liberação da construção de um
prédio de luxo numa área de proteção histórica expuseram novamente as ações
intestinas que homens públicos de estatura moral nanica são capazes de travar
na defesa de seus próprios interesses; e revelaram um déjà vu sobejamente conhecido: em termos de moralização no trato
com a coisa pública, o Brasil continua, infeliz e vergonhosamente, descendo a
ladeira.
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