11 de fevereiro de 2017

Cidades e saneamento básico

Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: Artur Lira   Na cidade de Monteiro, na Paraíba, o esgoto de residências chegou ao canal de transposição antes mesmo que as tão esperadas águas do São Francisco chegassem



Historicamente marcadas por uma completa falta de planejamento, a maioria absoluta das cidades brasileiras foram surgindo na paisagem sem obedecer racionalmente a nenhuma lógica precisa de urbanismo e, sim, ao mando político e econômico que determinava o povoamento pura e simplesmente para que fosse garantida a posse da terra à Coroa portuguesa e, claro, sua exploração. O resultado disso, transcorridos quinhentos e quase dezessete anos desde a descoberta deste país, é a permanência em nossas cidades de problemas e deficiências estruturais típicos de urbes que foram fundadas e seguiram crescendo e se expandindo ignorando – quando existiam – as legislações e posturas municipais, de modo que, esse crescimento foi se processando, prejudicando consideravelmente o estabelecimento de iniciativas que intentaram e intentam corrigir distorções e falhas com o fito de que uma reestruturação da ocupação do tecido urbano consiga ao menos delinear uma ideia de bom futuro para essas cidades.

Certamente o ponto mais nevrálgico dessa, digamos, política de ocupação e uso dos solos que constituem essas cidades, é aquilo que conhecemos como saneamento básico. De acordo com os dados levantados pelo Instituto Trata Brasil, uma organização da sociedade civil de interesse público, que atua desde 2007 colhendo informações sobre esse tema e disseminando-as com o intuito de fazer a população saber da tamanha necessidade de que, definitivamente, o saneamento básico seja convertido verdadeiramente em política social neste país, 83,3 % dos brasileiros têm acesso ao abastecimento de água tratada, ficando alheia a esse serviço mais de 35 milhões de pessoas. Quanto à coleta de esgoto, a cobertura atinge somente 50,3 % da população; ou seja, mais de 100 milhões de indivíduos não têm acesso ao serviço. O instituto informa ainda que apenas 42,67 % dos esgotos do país são tratados: 16,42 % no Norte; 32,11 % no Nordeste; 47,39 % no Sudeste; 41,43 % no Sul; e 50,22% na região Centro-oeste. Nas cem maiores cidades brasileiras mais de 3,5 milhões de pessoas despejam esgoto irregularmente, mesmo tendo os municípios em que elas moram redes coletoras disponíveis para recebê-los.

Construção de redes coletoras de esgoto e de estações de tratamento e a manutenção de uma fiscalização eficaz para que despejos irregulares não ocorram, deveriam figurar como ações prioritárias e de primeira ordem dos gestores municipais, mas isso, infelizmente não é a realidade que se vê. Quem percorre várias das cidades brasileiras dá quase o tempo todo de cara com esgotos correndo a céu aberto pelas ruas, muitas vezes seguindo esses despejos in natura para o leito de córregos e rios, tomando a direção do mar, como acontece na ilha onde eu moro, na qual, na realidade, vigora a lei do salve-se quem puder, uma vez que não existe absolutamente nada que diga respeito a essa questão – pelo menos, não na prática.

Indiscutivelmente uma grave situação de saúde pública, porque, além de provocar doenças e a contaminação de algo que nós é vital, que é a água, os esgotos que são despejados a esmo provocam a proliferação de insetos como mosquitos e muriçocas, e de outros animais que nos são bastante nocivos como os ratos. E a ausência de um enérgico enfrentamento dessa calamidade, por parte do poder público, corrobora e acentua cada dia mais o grau do nosso subdesenvolvimento e de nossa indigência institucional e social.

Assolados por uma seca severina, digo, severíssima inúmeros municípios nordestinos não veem a hora de ter acesso à água desviada do Rio São Francisco que a eles chegará através de canais que, com um atraso de vários anos, estão sendo concluídos e devem entrar em operação nos próximos meses. Em que pese o muito apropriado debate acerca do que isso provocará na existência e manutenção do chamado “rio da integração nacional”, que desde há muito vem sofrendo com assoreamento e com a baixa do seu nível d’água, o fato de que água vai chegar a regiões tão castigadas pela estiagem deveria ainda assim ser motivo de intensa alegria e de crença num futuro menos sofrido. Mas eis que nos chega da Paraíba, mais precisamente da cidade de Monteiro, que dista a cerca de 305 km da capital João Pessoa, uma dessas notícias que são capazes de não somente nos entristecer como também nos envergonhar.

Em visita às obras que integram o projeto de transposição das águas do Velho Chico, membros do Ministério Público Federal constataram que – vejam só que coisa absurda e extremamente lamentável –  no canal por onde deverá correr o tão esperado e precioso líquido está ocorrendo o despejo clandestino de esgoto. Mas como pode ser isso? Como pessoas tratam com tanto desdém algo tão importante? Que falta de responsabilidade e de compromisso social é essa?

Quando tomei conhecimento desse episódio que está se passando em Monteiro – em novembro de 2015 eu cruzei um dos canteiros das obras, quando me encontrava a caminho de Campina Grande – pensei que o que se verificou ali é o mesmo desprezo que tantas pessoas têm para com a preservação do meio ambiente; daí por que tantos dos nossos rios apresentam índices de contaminação elevadíssimos; e eis aí a razão de nós não nos preocuparmos de fato com o destino que terão as inúmeras toneladas de lixo que produzimos diariamente.


É sempre muitíssimo cômodo agir de maneira irresponsável, criminosa e em detrimento do bem comum e, depois, cobrar a fatura do estrago ao Estado. A indigência social que nos abate – e, por tabela, uma indigência moral – evidencia que grande parte – talvez a maioria – da população brasileira tanto quanto de saneamento básico necessita urgentemente também de saneamento mental.

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