Por Clênio Sierra de Alcântara
Foto: Artur Lira Na cidade de Monteiro, na Paraíba, o esgoto de residências chegou ao canal de transposição antes mesmo que as tão esperadas águas do São Francisco chegassem |
Historicamente marcadas por
uma completa falta de planejamento, a maioria absoluta das cidades brasileiras
foram surgindo na paisagem sem obedecer racionalmente a nenhuma lógica precisa
de urbanismo e, sim, ao mando político e econômico que determinava o povoamento
pura e simplesmente para que fosse garantida a posse da terra à Coroa
portuguesa e, claro, sua exploração. O resultado disso, transcorridos
quinhentos e quase dezessete anos desde a descoberta deste país, é a
permanência em nossas cidades de problemas e deficiências estruturais típicos
de urbes que foram fundadas e seguiram crescendo e se expandindo ignorando –
quando existiam – as legislações e posturas municipais, de modo que, esse
crescimento foi se processando, prejudicando consideravelmente o
estabelecimento de iniciativas que intentaram e intentam corrigir distorções e
falhas com o fito de que uma reestruturação da ocupação do tecido urbano
consiga ao menos delinear uma ideia de bom futuro para essas cidades.
Certamente o ponto mais
nevrálgico dessa, digamos, política de ocupação e uso dos solos que constituem
essas cidades, é aquilo que conhecemos como saneamento básico. De acordo com os
dados levantados pelo Instituto Trata Brasil, uma organização da sociedade
civil de interesse público, que atua desde 2007 colhendo informações sobre esse
tema e disseminando-as com o intuito de fazer a população saber da tamanha
necessidade de que, definitivamente, o saneamento básico seja convertido verdadeiramente
em política social neste país, 83,3 % dos brasileiros têm acesso ao
abastecimento de água tratada, ficando alheia a esse serviço mais de 35 milhões
de pessoas. Quanto à coleta de esgoto, a cobertura atinge somente 50,3 % da
população; ou seja, mais de 100 milhões de indivíduos não têm acesso ao
serviço. O instituto informa ainda que apenas 42,67 % dos esgotos do país são
tratados: 16,42 % no Norte; 32,11 % no Nordeste; 47,39 % no Sudeste; 41,43 % no
Sul; e 50,22% na região Centro-oeste. Nas cem maiores cidades brasileiras mais
de 3,5 milhões de pessoas despejam esgoto irregularmente, mesmo tendo os
municípios em que elas moram redes coletoras disponíveis para recebê-los.
Construção de redes
coletoras de esgoto e de estações de tratamento e a manutenção de uma
fiscalização eficaz para que despejos irregulares não ocorram, deveriam figurar
como ações prioritárias e de primeira ordem dos gestores municipais, mas isso,
infelizmente não é a realidade que se vê. Quem percorre várias das cidades
brasileiras dá quase o tempo todo de cara com esgotos correndo a céu aberto
pelas ruas, muitas vezes seguindo esses despejos in natura para o leito de córregos e rios, tomando a direção do
mar, como acontece na ilha onde eu moro, na qual, na realidade, vigora a lei do
salve-se quem puder, uma vez que não existe absolutamente nada que diga
respeito a essa questão – pelo menos, não na prática.
Indiscutivelmente uma grave
situação de saúde pública, porque, além de provocar doenças e a contaminação de
algo que nós é vital, que é a água, os esgotos que são despejados a esmo
provocam a proliferação de insetos como mosquitos e muriçocas, e de outros animais
que nos são bastante nocivos como os ratos. E a ausência de um enérgico
enfrentamento dessa calamidade, por parte do poder público, corrobora e acentua
cada dia mais o grau do nosso subdesenvolvimento e de nossa indigência
institucional e social.
Assolados por uma seca severina,
digo, severíssima inúmeros municípios nordestinos não veem a hora de ter acesso
à água desviada do Rio São Francisco que a eles chegará através de canais que,
com um atraso de vários anos, estão sendo concluídos e devem entrar em operação
nos próximos meses. Em que pese o muito apropriado debate acerca do que isso
provocará na existência e manutenção do chamado “rio da integração nacional”,
que desde há muito vem sofrendo com assoreamento e com a baixa do seu nível d’água,
o fato de que água vai chegar a regiões tão castigadas pela estiagem deveria
ainda assim ser motivo de intensa alegria e de crença num futuro menos sofrido.
Mas eis que nos chega da Paraíba, mais precisamente da cidade de Monteiro, que
dista a cerca de 305 km da capital João Pessoa, uma dessas notícias que são
capazes de não somente nos entristecer como também nos envergonhar.
Em visita às obras que
integram o projeto de transposição das águas do Velho Chico, membros do
Ministério Público Federal constataram que – vejam só que coisa absurda e extremamente
lamentável – no canal por onde deverá
correr o tão esperado e precioso líquido está ocorrendo o despejo clandestino
de esgoto. Mas como pode ser isso? Como pessoas tratam com tanto desdém algo
tão importante? Que falta de responsabilidade e de compromisso social é essa?
Quando tomei conhecimento
desse episódio que está se passando em Monteiro – em novembro de 2015 eu cruzei
um dos canteiros das obras, quando me encontrava a caminho de Campina Grande –
pensei que o que se verificou ali é o mesmo desprezo que tantas pessoas têm
para com a preservação do meio ambiente; daí por que tantos dos nossos rios
apresentam índices de contaminação elevadíssimos; e eis aí a razão de nós não
nos preocuparmos de fato com o destino que terão as inúmeras toneladas de lixo
que produzimos diariamente.
É sempre muitíssimo cômodo
agir de maneira irresponsável, criminosa e em detrimento do bem comum e,
depois, cobrar a fatura do estrago ao Estado. A indigência social que nos abate
– e, por tabela, uma indigência moral – evidencia que grande parte – talvez a
maioria – da população brasileira tanto quanto de saneamento básico necessita
urgentemente também de saneamento mental.
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