Por Clênio Sierra de Alcântara
Quem acompanha o dia a dia
da cidade onde mora, onde trabalha ou mesmo a que visita com alguma frequência
e é atento para com a configuração dos edifícios mais antigos que os centros
urbanos geralmente comportam, observa como o processo de descarte de uma dada
edificação vai se desenrolando até que dela só reste a lembrança e as
fotografias pregadas numa parede ou guardadas num álbum de família.
A metodologia da destruição aplicada
pelos proprietários dos imóveis – particularmente daqueles que estão
acobertados por alguma política de preservação governamental – é sobejamente
conhecida: pegue-se um prédio de um sítio histórico qualquer e, mesmo que ele
esteja protegido por lei e você tenha interesse que ele desapareça da paisagem, porque você não quer submeter a sua propriedade aos ditames legais, abandone-o
à própria sorte; deixe que os cupins, o sol e a chuva façam o seu trabalho
silencioso e eficaz de tudo corroer e pôr a perder; ignore peremptoriamente as
intimações feitas pelo órgão fiscalizador; diga aos seus advogados que façam
uso de todos os recursos e chicanas possíveis com vistas a protelar os atos
judiciais decisórios; dê um auxílio às intempéries deixando o imóvel
destelhado; não promova consertos paliativos, por mínimos que sejam; e deixe a
fiação elétrica exposta porque assim você aumenta a possibilidade de que um
curto-circuito provoque um incêndio que consumirá em pouco tempo toda a
edificação, comprometendo a consolidação das paredes a tal ponto que, muito
provavelmente, não será outra a recomendação dos agentes da Defesa Civil a não
ser solicitar a demolição do prédio.
Não fui eu quem, recorrendo
à imaginação, elaborou essa descrição de atos perniciosos e corrosivos que, em
conjunto e/ou em separado, vão dia a dia consumindo e degradando edificações de interesse
histórico que, pelo menos por lei, estão protegidas. A metodologia que eu
descrevi é um apanhado – sim, eu já li nas minhas pesquisas a aplicação de
outros recursos nefastos que visavam ao mesmo objetivo – do que em realidade
ocorre por este país afora nas ditas zonas de preservação rigorosa (ZPR) de
cidades as mais diversas como Igaraçu (PE), Penedo (AL), São Luís (MA), Rio de
Janeiro (RJ), Salvador (BA) e João Pessoa (PB), que são realidades que eu já vi
bem de perto. No pequeno e muito expressivo centro histórico igaraçuense, por
exemplo, um imóvel localizado na.Rua Dom Barreto está há mais de uma década
desamparado, destelhado e sem janela e, segundo se diz, aguardando a decisão de
uma ação judicial. Já na capital paraibana eu vinha acompanhando as investidas
inexoráveis do tempo sobre um vistoso sobrado situado na esquina da emblemática
Rua da Areia com a Rua Henrique Siqueira que desabou meses atrás pontificando
mais um caso de perda de um patrimônio que compunha e era parte integrante de um
conjunto de edificações que diziam da história não somente daqueles logradouros
bem como da formação e estruturação da área de ocupação urbana mais antiga da
cidade; e, quando eu passei por ali, no último dia 16 de novembro, verifiquei
que os escombros haviam sido recolhidos e que paredes novas estavam sendo
levantadas acompanhando a configuração da construção que ali existiu.
Contrariando uma ampla
legislação que, começando pela letra da Constituição Federal, atravessa leis
elaboradas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),
ainda na esfera federal, e se estabelece também em determinações e
recomendações de cunho preservacionista postas em voga em âmbitos estaduais e
municipais, proprietários de edificações tombadas pelos órgãos de preservação
relutam em aceitar ter de manter seus imóveis sob a tutela, digamos assim, das
ações de preservação. Se um sujeito não quer admitir que lhe seja negado a
realização de uma reforma que ele julga ser simples no imóvel e às vezes o faz
à revelia da lei, o que dizer da inconformidade com esse estado de coisas de
alguém que quer que o seu prédio seja removido para que no terreno se erga um imóvel
moderno e, segundo ele pensa, de mais alto valor comercial?
É evidente que as políticas
de preservação do patrimônio edificado vigente no Brasil encontram resistência
advinda dos proprietários de imóveis localizados em áreas tombadas porque, além
do fato de eles virem as ações de preservação como uma interferência do Estado
na esfera privada, não compreendem isso como algo de relevância para toda a
sociedade, uma vez que continua, infelizmente, a vigorar no seio do nosso corpo social, um ranço de desprezo para com os testemunhos do nosso passado, como
se o patrimônio significasse a persistência do atraso e, consequentemente, de
um entrave para o progresso. E isso se dá, a meu ver, muito por conta da
ausência de uma educação patrimonial efetiva seja nas escolas propriamente
ditas, seja nas faculdades, associações de moradores, etc. Como explicar que se
veja como algo estupendo e maravilhoso a preservação de cidades medievais na
Europa e aqui se estabeleça o discurso da indiferença e do menosprezo para com
a salvaguarda daquilo que as nossas cidades mais antigas ainda detêm de seu
passado mais remoto? Será que só porque elas não são tão antigas quanto as
cidades europeias não merecem ser preservadas? Por que insistimos em querer ignorar o valor de nossa história?
O acúmulo de ruínas que as ditas cidades históricas brasileiras exibem para quem as visita é, sem sombra
de dúvida, não apenas um reflexo da falta de recursos financeiros que
possibilitem que órgãos como o Iphan promovam ações de efetiva e permanente preservação do nosso
patrimônio; sob os escombros a memória do nosso país que vai paulatinamente
desaparecendo, agoniza também pela ausência de um compromisso social amplo que
parta em defesa de sua salvaguarda e difunda a necessidade de que conservar os
testemunhos de nossa história é garantir, sobretudo, que nunca esqueçamos quem
somos e nem o que fizeram os que a este mundo chegaram antes de nós. Ninguém vive
apenas do presente. O tempo todo conduzimos a nossa existência sobre os
alicerces que foram erguidos por alguém.
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