O
trato com o fazer artístico é, acredito, um dos modos que certos homens e
mulheres desenvolveram não somente como instrumento de afirmação do eu enquanto
fonte criadora e questionadora da realidade e da própria condição de existir,
mas também – e, talvez, principalmente – como uma necessidade premente e vital
de corporificar e de alguma maneira materializar tudo aquilo que reside na
angústia, no sofrimento, na alegria, na incerteza e na sofreguidão, que não
cabe e que não encontra ponto de encaixe nos repetitivos afazeres do cotidiano.
De certa forma a criação artística – é assim que eu a percebo – fundamenta-se
na necessidade de rebelar-se contra esse estado de coisas ou, dito de outro
modo, contra a inserção compulsória de cada indivíduo numa fração de uma dada
realidade. Se, como disse o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, “a arte
existe porque a vida não basta”, podemos, em vista disso, inferir que o fazer
artístico é, ao fim e ao cabo, uma expansão da esfera da existência.
Paraibana
de João Pessoa, onde nasceu em 1950, Alice de Faria Vinagre começou a despontar
no cenário artístico nacional na década de 1980, período no qual cursou pintura
na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Sua produção é muito marcada por
uma pintura em que o desenho, a colagem, as palavras e mesmos símbolos gráficos
constituem um amálgama plástico bastante expressivo que nos proporciona uma
rica experiência visual – recorrendo novamente a Ferreira Gullar e quase
parafraseando àquela sua fala, eu diria que, no caso de Alice Vinagre, quando
tintas e pincéis não bastam e não conseguem dar conta do que ela quer
expressar, entram em cena papel, tecido e tudo o mais que estiver à mão e que
se seja possível aproveitar.
No
estudo A vertigem da maneira: pintura e
vanguarda nos anos 80 (Rio de Janeiro: Diadorim: UERJ, 1993, p. 74), Jorge
Lúcio de Campos nos diz que – e vale esclarecer que ele não examinou artistas
brasileiros, e, sim, nomes como o italiano Carlo Maria Mariani e o
norte-americano Julian Schnabel – a prática pictórica oitentista foi marcada
por um “implacável sentimento de incapacidade” de se situar no tempo-espaço
“que a compeliu tanto em direção a uma tendência alegórico-revisionista quanto
a uma postura assumidamente metalinguística”. Examinando alguns dos trabalhos
recentemente reunidos por Alice Vinagre a mim me pareceu que a sua
pintura-miscelânea – não encontrei termo mais apropriado para denominá-la – em
certa medida contempla essas duas vertentes ou essas duas direções apontadas
por Jorge Lúcio de Campos. Percebe-se
claramente no fluxo pictórico alicevinagreano arroubos alegóricos – não
necessariamente revisionistas – em par com um esforço de trazer o espectador
para a frente de peças fazendo uso em algum momento da metalinguagem: por que
pintar um vestido cujo tecido já recebera uma coloração ainda na tecelagem? Por
que o corpo de uma espécie de Eva pintado de marrom aparece envolvido por várias serpentes e por palavras? Não será porque o vestido deixou, na verdade, de ser
vestido e passou agora a ter outro significado ao receber nova cor e ser fixado
ali? E quanto a Eva, será que as palavras que a acompanham não seriam um
contraponto ou uma reescrita do julgamento bíblico que determinou a sua
expulsão do Éden, não seria como que um pedido de desculpas ou de perdão? Será
que a pintura associada à colagem não é um questionamento metalinguístico à
arte de pintar? Ou será que decididamente eu me equivoquei ao enxergar metalinguagem nesta exegese, quando, na verdade, o que quer a talentosa Alice é tão somente propor uma fantasia de recriação e/ou reescrita do mundo?
Fotos: do autor |
Alice
Vinagre parece destinada a elaborar a construção de um universo imagético muito
voltado não somente para as inquietações do seu ser, mas também para
inquietações coletivas que dizem, claro, do eu feminino – a presença do
feminino, aliás, é a chama potencialmente acesa da sua mais recente exposição
“Assim, assim vinagre...”, que reúne obras de vários anos (e foi uma pena que
as obras não estivessem devidamente identificadas) na qual, além de uma Eva
redentora e de uma Ofélia shakespereana, aparecem outras marcas do gênero -,
que lhe constitui e define, bem como de instâncias outras de sua realidade
total – a real e a imaginada e/ou idealizada.
Na
noite do último dia 10 de novembro eu me dirigi até a Galeria de Arte Archidy
Picado, na capital paraibana, a fim de tomar parte, com muito entusiasmo, no
vernissage da exposição “Assim, assim vinagre...”, aproveitando o ensejo para
trocar figurinhas com a renomada artista.
Alice, num mundo
altamente tecnológico no qual as pessoas constantemente confundem e/ou esquecem
do real e ficam imersas no ambiente virtual, qual o papel da arte ou da criação
artística numa sociedade como essa?
Olha,
eu acho assim. Não sei bem qual é o papel da arte, mas a arte sempre reflete o
seu tempo. É como se fosse um espelho. Então, muitas vezes reflete de forma,
digamos assim, mecânica; e muitas vezes vai refletir e espelhar não no sentido
de espelho, mas de forma reflexiva. Aí eu acho que depende, sabe? Não sei bem
essa coisa do digital, do natural. É como se fossem âmbitos, digamos assim, do
ser humano; que esse virtual talvez não seja uma coisa tão longe do natural,
certo? Em algum aspecto é como se o virtual, não sei se você concorda comigo,
de certa maneira fizesse parte da natureza. Na hora em que, por exemplo,
algumas tribos indígenas convivem com essa parte, digamos assim, virtual, de
uma outra forma...
Você quer dizer ligada
ao sobrenatural?
Ao
sobrenatural. E trabalhando aquele sobrenatural de uma forma real, que é real para
elas, não é sobrenatural, é natural.
Seria assim um realismo
mágico?
Por
aí, por aí, por aí.
Você acredita que a sua
arte consegue dialogar com essa realidade atual ou ela é o registro de uma
época que já passou?
Sinceramente
eu não sei dizer. Eu sei que sou contemporânea da minha época. Eu uso de
recursos, digamos assim; porque muitas vezes a pessoa usa um recurso
tecnológico e de certa maneira está sendo mais conservadora do que alguém que
usa, digamos, um meio tradicional – a pintura, a escultura, a argila – e, de
certa forma, está sendo mais contemporânea. E a própria contemporaneidade,
digamos assim, contempla todos os tipos de mídia. Então, na verdade, é como se
hoje independesse do meio que você usa. Eu acho que faz parte.
Como você enxerga a ligação
de sua arte com o público que vai às galerias e aos museus para apreciá-la?
Você acredita que existe uma interação imediata da obra com o espectador?
Olha,
às vezes sim e outras vezes não. Às vezes chegam pessoas assim que me relatam,
dependendo do trabalho que eu tenha apresentado: “Poxa, fui tomada. Fiquei
muito feliz de ver isso, de estar assim”. É claro que isso gratifica muito, né?
E como tem pessoas que - eu acho que esse não bateu nada – não chegam pra mim
pra falar nada, entendeu? Mas, assim, muitas vezes toca. Algumas instalações
que têm uma questão imersa e alguns trabalhos meus que eu às vezes nem imagino
que a pessoa vai ter aquela reação e a pessoa é afetada por aquele trabalho,
por aquela imagem, sabe? Isso é bem gratificante. Numa época em que tudo é
muito rápido, muito dado, a informação é veloz... Então, de repente, qualquer
trabalho, acho que de arte, de modo geral – qualquer trabalho talvez seja um
exagero -, mas uma boa parte você tem que se dar um tempo.
Alice há quem pense que
reina na sociedade brasileira certo distanciamento, na verdade, um grande
distanciamento da maior parte da população dos espaços onde algumas modalidades
da arte – como a arte conceitual, por exemplo – se encontram, porque as pessoas
não compreendem as obras. Será que isso é falta de familiaridade com essas
manifestações artísticas?
Eu
acho que é. É falta do próprio público e dos meios públicos que, digamos assim,
estão expondo, dispondo. Levar, trazer uma certa intimidade para as pessoas,
falar a linguagem delas, de certa forma, porque muitas vezes não é uma coisa
tão complicada. É um conceito, mas aquele conceito é uma ideia. E, muitas
vezes, o que acontece é que, como fica fechado em ambientes em que a pessoa vai
ter que ter um acesso, chegar, entrar, ver, isso impede esse convívio. Porque
muitas vezes na arquitetura – um exemplo mais simples -, algumas coisas assim
arrojadas, contemporâneas, como a pessoa passa ou de ônibus ou a pé, ela
termina que convive com aquilo e não acha estanho, não acha chocante. “Ah, que
interessante!”, porque está vendo...
É familiar, não é Alice?
Familiar,
exatamente. Enquanto que às vezes o fato da galeria, do museu muitas vezes tem
isso, como você falou, de afastar, de ter, até a pessoa chegar ali, de passar
por determinados cantos; tem pessoas que ficam inibidas, achando que vão achar
pessoas esnobes...
Que não são dignas de
estar naquele ambiente.
Isso,
exatamente; e não tem nada a ver, né?
Qual o sentimento que
lhe chega nesse momento em que voe está abrindo uma exposição que acontece
longe do eixo Rio-São Paulo?
Eu
me sinto feliz, porque, veja só, eu sou muito movida a afeto, sabe? Eu sou daqui de João Pessoa. Moro no Recife,
mas sou daqui. As pessoas que me convidaram para expor aqui na galeria são
pessoas assim que eu respeito e também tenho muito carinho. A própria galeria é
um espaço – como é que eu diria? – generoso, bonito. Então, esse espaço por si
só já é gratificante, independente de ser aqui ou em São Paulo ou em outro
local.
Alice eu lhe fiz essa
pergunta porque ainda vemos que há artistas que pensam que para acontecer têm
que estar no eixo Rio-São Paulo.
Hãhã.
Para concluir este nosso
encontro me responda: a arte redime o artista?
Olhe,
veja bem. Eu acho (rindo). Eu não sei se redime, mas de certa forma salva.
Porque muitas vezes é uma forma de você se estruturar; não que você faça:
“Eita, vou me estruturar”. Mas são tantas, digamos assim, demandas, pulsões
internas, necessidades externas também que tocam, que afetam que você precisa
fazer arte para poder sobreviver. Creio que é por aí.
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