Por
Clênio Sierra de Alcântara
Um
estudo publicado em 2013 pela renomada revista Science estimou que a transição entre o lobo selvagem (Canis lupus) e o cão domesticado (Canis lupus familiaris) ocorreu na
Europa há, no mínimo, 18.800 anos. De acordo com os cientistas, não há raças
mais espertas que outras: cães têm perfis individuais de inteligência.
Divulgada
em setembro do ano passado, uma pesquisa realizada pelo Centro de Cognição
Canina da Universidade de Yale, dos Estados Unidos, mostrou que os cães podem ser
até melhores em solucionar desafios do que crianças de três e quatro anos de
idade. Memória, atenção, capacidade de tomar decisões ou solucionar problemas
são apenas algumas das características desses animais que cativam os seres
humanos há milhares de anos fazendo com que, ao lado dos gatos, eles sejam os
bichos de estimação preferidos nos lares ao redor do planeta.
De
toda instituição que se destina a prestar socorro à população espera-se não só
que ela atinja um alto nível em suas atividades – algo que se alcança com
constantes treinamentos – bem como que as diversifique de modo que consiga
abranger uma grande gama de situações e atender com celeridade e eficácia o
maior número de vítimas que for possível. Acredito que foi pensando exatamente
assim que, em 2012, o Comando do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco
(CBMPE) encampou o projeto de estabelecer na instituição um serviço que
incorporasse a utilização de cães em ações de busca e salvamento de pessoas.
Muito
curioso para saber como se dá o treinamento e a seleção dos animais que são
integrados nessas atividades, na manhã do último dia 31 de janeiro eu fui
visitar a Divisão de Busca e Resgate com Cães, instalada no Grupamento de Bombeiros de Salvamento (GBS),
localizado no Distrito Industrial da cidade de Abreu e Lima, na Região
Metropolitana do Recife. Quem me recebeu naquela unidade foi o Capitão Barbalho,
que comanda o efetivo responsável pelos cães, e que eu conheço há vários anos. Na
entrevista que me concedeu o jovem oficial do Corpo de Bombeiros em momento
algum conseguiu esconder de mim o entusiasmo e a satisfação que ele sente por
estar lidando com animais tão prestimosos e adoráveis.
Há quanto tempo existe o
Grupamento de Bombeiros de Salvamento e que tipos de atendimentos ele presta à
população?
O
GBSAT foi criado no Corpo de Bombeiros no ano de 2008 [o Grupamento de Busca,
Salvamento e Ações Táticas, GBSAT, posteriormente, em 2013, passou a ser denominado de Grupamento de
Bombeiros de Salvamento, GBS]. E desde esse ano ele vem desempenhando
atendimento a ocorrências de deslizamento de barreira, desabamento de
edificação, que é estrutura colapsada, de salvamentos gerais, produtos
perigosos, atendimento a ocorrências de colisão automobilística, salvamento em
altura, resgate de suicida. E diversos tipos de atendimento na área de
salvamento do Corpo de Bombeiros.
Em que momento se
percebeu a necessidade de implantação no Corpo de Bombeiros Militar de
Pernambuco de uma unidade que contasse com o auxílio de cães em ações de busca
e salvamento? O senhor sabe informar se em todos os estados do país as unidades
de Corpos de Bombeiros mantêm esse tipo de serviço?
Em
Pernambuco, nesse caso em especial, o GBSAT, quando foi criado, em 2008, já
previa o emprego de uma unidade com cães pelo potencial que eles demonstram. Internacionalmente
eles são muito utilizados na área policial, de drogas, narcóticos, de
armamentos. Eles chegam até a serem utilizados para identificar o local onde se
iniciou um incêndio, no caso, o ponto preciso onde principiou a propagação. Por
exemplo, no incêndio em uma edificação, eles conseguem detectar a mudança de
cheiro, de odor específico onde ocorreu, digamos, um curto-circuito; e ali o
cão faz a indicação nos mostrando que foi naquele ponto que tudo começou. Os cães
também são utilizados na área médica, porque eles conseguem até expressar
quando alguém está com algum tumor cancerígeno.
Dentro
da gama de atendimento e resposta, praticamente todos os estados do país estão
com esse tipo de serviço ativo. Aqui em Pernambuco nós começamos em 2012. Nesse
ano iniciamos a fase de treinamento. A partir de 2013 começamos a dar uma
resposta operativa satisfatória. E agora estamos buscando ampliar esse espaço,
aprimorando a qualidade do serviço.
Sede da Divisão de Busca e Resgate com Cães: aqui começam os treinamentos para formar os destemidos e adoráveis bombeiros de quatro patas |
Como se dá a escolha dos
animais para atuarem nessas ações de busca? Qual raça é mais adequada para
isso?
A
raça, vamos dizer assim, não é o fator mais importante. O que nós temos que ter
em mente são os fatores físicos, porque cães muito pequenos não vão ter
mobilidade nem força para se deslocar em terrenos nos quais geralmente atuamos.
Se pegarmos um deslizamento de barreira utilizarmos um cão de pequeno porte,
quando ele tentar dar as primeiras passadas vai praticamente cravar as patas na
terra e não conseguir se deslocar. Já num cenário de escombros, em desabamento
estrutural, ele pode acessar orifícios dos quais não conseguiremos tirá-lo e
nem ele conseguirá sair sozinho. Por outro lado, os cães muito grandes, por
serem muito avantajados e pesarem mais, eles têm um gasto energético enorme e
isso diminui o rendimento deles. Então, o ideal para os bombeiros são cães de
médio porte.
São
utilizadas várias raças, podendo ser até mestiços. Utiliza-se labrador, pastor
alemão, pastor belga Malinois, border collie. Uma infinidade de raças é
utilizada. O que importa para nós é o temperamento. Nós temos de perceber no
cão o desejo de brincar. A todo tempo do treinamento, a todo tempo da
ocorrência, para o cão, ele está buscando uma recompensa; ele está querendo
brincar, achar o odor para o qual foi treinado. Então, pelo comportamento
clássico do animal, nós associamos que só depois que ele encontrar o odor é que
ele vai querer ganhar uma recompensa.
A partir de quantos
meses de vida o cão começa a ser treinado para esse tipo de atuação e quanto
tempo mais ou menos leva para que o animal esteja suficientemente treinado para
agir?
O
ideal é começarmos o treinamento com o filhotinho mesmo, com poucos dias de
vida. Quando ainda são lactentes, no terceiro ou quarto dia, eles permanecem
com os olhos e os ouvidos totalmente fechados e procuram a mãe por sensação
térmica e pelo olfato. Esse período possibilita que recorramos a alguns
distratores para que eles sejam estimulados a querer independência. Um dos
recursos consiste em afastar um pouco a mãe dos filhotes; quando eles sentem
frio e fome saem a procurá-la; então, nesse caminho – coisa de cinquenta
centímetros –, entre a mãe e os filhotes, nós colocamos algumas barreiras como
metal e tecido para que eles tenham de transpô-las a fim de chegar à mãe, de
modo que os obstáculos passem a ser uma coisa natural. Dessa forma, se
conseguirmos propiciar isso desde essa fase, avançando mais um pouco, com
algumas semanas de vida, passamos a estimulá-los com alguns odores específicos,
para aguçar o cérebro deles, o nervo trigêmeo, de maneira que, ao longo do seu
desenvolvimento, eles possam identificar e se habituar a odores diferentes para
que, mais adiante, quando tiverem de cheirar um cadáver, o cheiro, que é
horrível, figure como algo que já é, digamos, natural para eles. Fazemos uso de
cânfora, erva-doce, clorofórmio e de vários outros produtos, até químicos mesmo,
que são interessantes para aumentar a experiência olfativa.
É
na fase de filhote que ocorre o imprinting
[diz-se que o primeiro objeto móvel que os neonatos visualizam ou sentem a presença
gera o que os especialistas chamam de apego ou imprinting. E eles passam a segui-lo em busca de proteção e
alimento, além de aprender com ele por meio da observação e da tentativa e
erro. No caso dos cães, esse primeiro contato que eles têm com um objeto
animado é com a própria mãe deles], que é uma fase que temos de explorar bem,
porque é nela em que praticamente podemos colar coisas no cérebro dele. Nesse período
nós pegamos o filhotinho e o expomos, por exemplo, em um terreno molhado ou
coberto com brita, para que, quando chegar a um deslizamento ou a desabamento
isso seja algo natural para ele, não vamos precisar socializá-lo, ela já vai
estar familiarizado. Em vez de ele ficar preocupado com o ambiente, se manterá
concentrado e focado na busca e localização de uma vítima.
Mesmo considerando que
várias raças estão inclinadas a receber esse tipo de adestramento, pode ocorrer
de um e outro animal não se adaptar à rotina de treinamentos?
Antes de começar a
implantar esse serviço no GBS, o senhor já tinha familiaridade com cães ou ela
principiou ao longo da jornada de estabelecimento da unidade?
Eu
realmente não tinha vínculo com esses animais. Na minha residência só o meu
irmão mais velho teve um cachorro; eu não tive tanta proximidade. Eu tive mais
contato com cavalos, por causa do meu avô materno, do que com cachorros. Mas aí,
quando eu pude escolher vir servir no então GBSAT, em 2011, o comandante da
época, o Tenente-coronel Rocha [Almir da Rocha Silva, atualmente Coronel, comandou o grupamento de março de 2008 a agosto de 2013], me incumbiu da missão de fazer o meu primeiro
curso na área, que foi o Curso Básico de Cinotecnia, na Polícia Militar de
Pernambuco. Um curso longo, de mais de sessenta dias. E verificando o emprego
de cães no campo de explosivos e dos narcóticos, eu vi que realmente isso
poderia dar um plus, isso poderia
otimizar o tempo-resposta dos nossos bombeiros em ocorrências. Tivemos uma
atuação num deslizamento de barreira em 2013, no Jordão [bairro localizado na
Zona Sul do Recife. O deslizamento ocorreu por causa das chuvas; e aconteceu
precisamente no dia 18 de agosto. Foram ao todo cinco vítimas, sendo duas delas
fatais], já se estava com mais de cinco horas de operação e, quando chegamos
com os cães, em meia hora nós conseguimos localizar a última vítima que
faltava. Mais de oito viaturas e quarenta e cinco bombeiros voltaram à ativa
para atender a população com essa redução desse tempo-resposta.
Como
eu estava dizendo, quando eu fiz aquele curso já havia em nosso grupamento
alguns militares que tinham também passado pelas aulas ministradas na Polícia
Militar. Então formamos um grupo que estava motivado a montar essa unidade,
essa seção de salvamento com cães. Na ocasião o nosso comandante apoiou
bastante, como ocorre atualmente; e, desde então, pudemos deslanchar a
atividade buscando o conhecimento na Bahia, porque, na Polícia Militar de Pernambuco,
nós tivemos a experiência vinculada à esfera policial, vendo o emprego dos cães
na guarda e proteção, no ataque do animal e seu uso no farejar, que era o
aspecto que principalmente nos interessava. Sendo assim, buscamos instrução e
conhecimento na área de atuação dos bombeiros. Primeiro nós fomos buscar isso
na Bahia e, posteriormente, em Santa Catarina. E permanecemos buscando
aprimoramento participando de congresso, seminários e workshops para manter um padrão de qualidade do serviço.
Atualmente de quantos
cães a unidade dispõe e como eles se chamam?
Temos
sete cães adultos. O Smart e Ather são os mais antigos, estão conosco desde o início.
E ainda Trovão, Mundo, Gold e Thor. Também temos sete filhotinhos agora, com os
quais estamos iniciando o treinamento, estamos na fase de avaliação para ver os
que vão ter vida de bombeiro e os que infelizmente não terão. [do dia em que
fiz esta entrevista até hoje, em que estou publicando-a, dois dos filhotes
morreram].
São filhos de quem?
São
filhotes de Trovão e Mel. Eu esqueci de Mel. Mel é uma cadela da raça labrador
que foi doada à nossa corporação pelo Corpo de Bombeiros de Santa Catarina. Ela
vem da quarta geração de trabalho deles. O pai dela tem sete certificações
internacionais; e a mãe tem cinco. Então, é uma boa linha de trabalho que vem
se fortalecendo. E o que cruzou com ela foi Trovão, que é o que eu conduzo e
que foi certificado no ano passado. Nós conseguimos passar na prova. E estamos
procurando fomentar uma linha de trabalho que já venha na genética do animal
aquele temperamento ideal para a realização de buscas e atividades de bombeiros.
O condutor e o seu fiel Trovão: o binômio bombeiro militar e cão preparado para entrar em ação sempre que as circunstâncias adversas exigirem |
Das ações das quais eles
já participaram qual é a que o senhor considera a mais significativa e por quê?
De
todas as ações nas quais atuamos a de 2013, no deslizamento de barreira, no
Jordão, foi a mais significativa, porque tivemos uma resposta satisfatória,
considerando que estávamos com pouco tempo de treinamento. Pegamos cães adultos
para dar uma resposta mais rápida e graças a Deus isso aconteceu. Foi muito
satisfatório. Normalmente treinamos o cão para ele sempre indicar a vítima ativamente
latindo, porque, quando nos deparamos no meio de uma mata, por exemplo, onde
muitas vezes o animal sai do nosso campo de visão, se ele não fizer essa
indicação, se ele localizar a vítima e voltar para perto de nós, não vamos
saber se ele chegou até a vítima. Por isso, o treinamento é para que ele
localize a vítima e permaneça onde ela se encontra e sinalize isso latindo para
que possamos chegar até eles. Já num ambiente urbano nós conseguimos
visualizar o animal. E esse acompanhamento consiste em fazer uma leitura do
corpo dele: uma mudança de direção, um abanar de cauda diferente. E com isso
conseguimos explorar a área. E foi o que aconteceu na ocorrência do
deslizamento de barreira. O deslizamento atingiu uma edificação onde havia quatro vítimas: duas crianças, o pai e a mãe. Algumas já haviam sido retiradas
por populares; nosso efetivo havia resgatado uma e faltava a mãe. E aí tanto
Smart quanto Ather mudaram de comportamento no local do sinistro. Smart chegou
a morder um sofá. Quando retiramos os dois cães daquele ponto e fomos analisar,
fizemos um deslocamento da laje da caixa-d’água, que estava intacta, e, ao
retirá-la, encontramos um corpo embaixo do sofá com a cabeça esmagada pela
laje. Infelizmente não foi uma ocorrência em que tivemos o sucesso de encontrar
a vítima com vida, mas conseguimos, como eu disse, retornar ao serviço à
sociedade muitos bombeiros.
Temos
uma demanda muito grande para buscas em áreas rurais, para efetuarmos buscas de
pessoas que se perderam em matas. Mas ainda não tivemos a sorte de encontrar
pessoas nessas condições porque normalmente em todas as ocorrências desse tipo
que atendemos até agora, a população e os familiares das vítimas não sabiam do
real paradeiro do desaparecido. Fazemos uma busca no local e dizemos: “Aqui
realmente a pessoa não está. Ela pode ter ido para outro lugar”. Atendemos a um
chamado que dizia que uma criança havia desaparecido próximo ao Jardim Botânico
[situado no bairro do Curado, Zona Oeste do Recife]. Efetuávamos a busca e a
criança, na verdade, se encontrava na casa de uma tia, perto dali, no mesmo condomínio. Outra
situação: fomos procurar numa mata de Igaraçu um dependente químico que fugira
de uma casa de recuperação. Acontece que ele estava na Praia de Maria Farinha
[na cidade de Paulista; os bombeiros estavam no bairro de Nova Cruz, que é
relativamente próximo àquela praia e que é dele separado por um largo canal]. E
várias outras ocorrências que, infelizmente, não deram uma boa resposta para o
nosso trabalho. Por outro lado, uma vez que, nos casos mencionados, fomos aos
locais e fizemos uma varredura na área e não houve indicação da parte dos cães,
ou seja, eles estavam corretos porque as pessoas procuradas não estavam ali,
isso vai passando uma garantia de que estamos no caminho mais do que certo em
nossos treinamentos.
O senhor e os seus
auxiliares conseguem manter uma relação, digamos, apenas profissional com os
cães ou não tem jeito, o convívio torna o apego com os animais algo realmente
inevitável?
Como
eu disse praticamente eu não tive proximidade com cães e depois que passei a
perceber tanto o potencial deles quanto a relação que eles formam conosco, isso
mudou. Quando estamos mal, quando estamos com algum problema, eles percebem
isso. Muitas vezes, quando não estamos bem para trabalhar, vamos dizer assim,
nem fazer a busca no padrão que habitualmente fazem, eles não rendem tanto. Então
nós sentimos quando vai avançando o andar, quando vai chegando perto da hora de
o cão se aposentar, algo que em média ocorre quando ele está com oito ou nove
anos de vida, depende do animal. Cão é igual à gente: tem gente que envelhece
mais rápido, tem gente que envelhece mais tarde. E aí nós vamos criando esse link, essa relação. E, com certeza, ele
vai ficar sendo acompanhado pelo militar.
Capitão Barbalho, o cão
é, de fato, o melhor amigo do homem?
Com
certeza. Sem dúvida alguma, ele nos mostra uma relação de confiança absurda. Nós
podemos ter xingado ele, ter dado um tapa nele, ter feito o que for com ele, se
passarmos dez minutos afastados dele, quando chegamos é aquela festa, é aquela
alegria, quer pular, quer brincar, quer fazer tudo. Então realmente é o melhor
amigo do homem. Podemos confiar neles de olhos fechados. E muitas coisas nós
ainda temos que aprender com eles. Eles aprendem a amar de uma maneira
sensacional. Em pouco tempo de atenção que damos a eles, eles já passam a nos
ver como sendo tudo na vida deles. Enquanto ele é somente um cão para nós, nós
somos tudo o que para ele pode ofertar de alegria, de felicidade e de todas as sensações.
Tudo o que ele vai poder sentir mundo afora, vai depender de nós.
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