10 de junho de 2017

A memória da dor é muito resistente

Por Clênio Sierra de Alcântara


Algumas lembranças, coisas e pessoas têm de ser postas definitivamente bem no fundo de uma gaveta



Às vezes a mim mesmo surpreende e até me assusta o exame das transformações por que passaram vários dos entendimentos que eu tinha e passei a ter a respeito de certas circunstâncias que vivenciei ao longo da jornada de minha existência. Sim, eu sou um homem que é em grande medida sentimental e carinhoso até; mas também é em mim considerável a dimensão da dureza que me constitui. Digo isso, porque eu tenho clara consciência de quem eu sou.

Em diversas ocasiões eu ouvi de interlocutores a seguinte afirmação: “Nossa, como você mudou!”. Eles disseram isso – e ainda outros o dizem -, se referindo não à minha aparência física, mas sim a atitudes, comportamentos, questionamentos e afirmações. Para essas pessoas, que conheceram um Sierra ingênuo e demasiadamente submisso, deve ser realmente espantoso se deparar com um cara que não tolera mais interferências de quem quer que seja em sua vida, que não baixa mais a cabeça para ouvir sermões supostamente moralizantes, que não suporta mais calado insultos e provocações e que, principalmente, mantém uma postura de firmeza frente às vicissitudes que se processam na caminhada do seu existir. Não sou daquele tipo de pessoa que, se pudesse, apagaria todas as lembranças de acontecimentos ruins que vivenciou. Nunca eu faria isso, porque, de alguma forma, tais vivências contribuíram para que eu resultasse no que hoje eu sou; e o que eu sou e o que eu penso não me entristece, não me envergonha, não me deprime, não me amedronta e não me enfraquece. Muito pelo contrário. E, por isso, eu me vejo plenamente confiante para aproveitar a vida da forma que me for possível. Agora, o que eu, em absoluto, não me disponho a fazer é exumar tais acontecimentos ruins. Eu me recuso terminantemente a praticar exercícios de autoflagelação, repisando tristezas e dissabores.

Na manhã de ontem, quando eu me preparava para ir à academia de musculação, fui surpreendido por um ato de minha mãe que, depois de me repassar um guardanapo no qual estavam registrados o nome da minha madrinha e dois números de telefone, falou assim: “Lembra dela? Uma amiga dela me disse que ela chora quando falam do teu nome. Ela foi muito importante na minha vida e na tua. A gente precisa marcar um dia para ir lá”. Receber aquele papelzinho para mim já foi por si só um incômodo; e ouvir o que minha mãe falou serviu para aumentar a insatisfação. Mas eu tirei de menos e não comentei nada.

A senhora Cleonice de Alcântara, a minha, durante certo tempo, por mim incompreendida, mãe, não raro tende a olhar para o passado como se ele não tivesse sido como foi, tipo: “Vamos fazer de conta que nada disso aconteceu”. Ela age como se eu também olhasse para trás deformando e/ou remodelando tudo o que nele foi vivido, e, por isso, ela me dirige, no mais das vezes, sentenças como aquela, talvez, esperando que eu concorde com tudo o que me diz.

Não foram poucas as ocasiões e nem pouco o tempo em que eu me vi morando na casa dos meus padrinhos. Reconheço tudo o que eles fizeram por mim, tudo, tudo mesmo. Mas eu não consigo disfarçar e nem fingir e negar o sentimento de inadequação que me foi tomando ao longo dos anos em que, muitas vezes para fugir da realidade dura, amarga e triste que eu experimentava em minha morada, ia me refugiar na casa deles. Não duvido que eles tivessem um bom coração e que me recebessem de braços abertos. Da mesma forma eu tenho pleno entendimento de que fiz por merecer cada prato de comida, cada dormida e cada roupa de segunda mão que eu recebia lá porque, em minhas estadias, quer quando criança quer quando adolescente, eu lavava banheiros, desentupia esgotos, varria quintais, juntava e botava o lixo para fora e ia para rua resolver uma coisa e outra que eles pediam. Por mais que eles quisessem me fazer crer que me tratavam como se eu fosse o quinto filho deles, não era assim que eu me sentia, porque tudo o que eu fazia e via na casa me levava a compreender que não era bem isso. E para que não restasse qualquer mínima dúvida a esse respeito, certa feita a filha mais velha deles se dirigiu a mim nestes termos: “Será que você não percebe que está sendo um grande peso diante da situação que estamos enfrentando?”. Ouvi essa admoestação e me senti um nada ali, porque eu sabia que, em meio a um período negro das finanças da casa, eles queriam manter as aparências para uma parente do interior que estava hospedada na residência. Não me lembro exatamente quantos dias ainda eu permaneci ali, antes de partir em retirada.

Transcorridos quase vinte anos do meu completo desligamento e abandono do lar dos Miranda, que, ignorando o que eu passava em casa, abusavam da oratória para me manter domesticado, obediente e submisso, fazendo com que eu acreditasse que a gratidão era uma prisão da qual eu nunca poderia sair, eis que minha mãe tolamente pensou que poderia me convencer a retirá-los do fundo da gaveta onde habitualmente eu ponho os acontecimentos ruins e todos aqueles indivíduos que, pela força das circunstâncias, inconscientemente ou por pura e consciente intenção, me traíram, me enganaram, me humilharam e me afligiram alguma dor, sem saber que a memória da dor é muito resistente. O que é que eu posso fazer se, pouco a pouco, foi se desprendendo de mim todo o afeto e toda a simpatia que durante algum tempo eu sentia por aquela família?

Com o tempo o acúmulo de reveses me ensinou a dizer não, a me sublevar, a levantar a voz, a discordar, a rejeitar o jugo e a desfazer o nó do cabresto. Há quem queira por vontade se manter cativo, mas eu não, eu me rebelo contra várias coisas, inclusive, contra a humilhação.

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