10 de novembro de 2017

Minha avó

Por Clênio Sierra de Alcântara


Desde muito novinho, eu me recordo, sempre mantive uma ligação grande e forte com a senhora Maria da Conceição, a minha avó, que me amava demais e sobre todas as coisas, me defendendo de tudo e de todos e dizendo que eu era mais do que um neto para ela, era um filho.

Vovó sempre fora bastante geniosa e durona – eu bem sei de onde provém o meu gênio difícil e a minha por vezes iracunda dureza -; e tinha de ser assim mesmo para que ela pudesse suportar e enfrentar com valentia os dois maridos tremendamente estúpidos e grosseiros que teve: meu avô, Biu Belo, que era primo dela, e com quem teve dez filhos, dois deles foram assassinados em 1985; e Seu Déda, que, durante o tempo que viveu com ela, era um desses pés-de-barraca que não perdem a oportunidade de encher a cara, embora “não deixasse faltar nada dentro de casa”.

Por mais perguntas que eu lhe fizesse, vovó não tinha e/ou negava ter recordações de sua infância. Tudo o que sei de sua vida diz respeito à parte de sua adolescência e daí em diante. Analfabeta que não conseguiu nem aprender a desenhar o próprio nome durante as aulas do Mobral, ela, quando se viu abandonada pelo meu avô, trabalhou como cozinheira em restaurantes e lanchonetes – e foi por essa época que conheceu Seu Déda. Nunca ouvi de sua boca nenhum relato em que o meu avô figurasse de modo honrado e edificante; era sempre um enredo que o apresentava como um homem e um marido cruel que não escolhia ocasião para agir com maldade fosse com quem fosse. No fundo, no fundo, ela carregava consigo uma porção enorme de rancor e mágoa por ter sido largada com tantos filhos para criar, enquanto que ele fazia outros com outras mulheres. Acredito que o episódio de separação dos dois seja o ponto nevrálgico de todo o desarranjo que dali por diante marcaria a relação deveras conflituosa que até hoje é mantida entre os meus tios e tias incluindo, claro, a minha mãe.








Minha avó adorava uma pilhéria; e qualquer coisa e/ou situação eram para ela aproveitadas para um chiste ou para que ela falasse um dos inúmeros ditos populares que guardava em sua cabeça, entre eles o que diz que “quem não quer padecer, nasce morto”. Como, já na velhice, ela passou a ficar com barba e bigode que nem sempre tratava de raspar, dizia, para logo em seguida dar uma boa gaitada, que era da Paraíba, era “mulher-macho sim senhor”, embora fosse pernambucana do Recife.

Uma das maiores qualidades de Dona Conceição era ser uma pessoa completamente despachada – e isso desde nova. Com ela não tinha esse negócio de aparências e falsos pudores, de ficar de conversa mole e fazendo arrodeios para falar isso ou aquilo; e não estava nem aí se iria ou não ferir sensibilidades; as coisas tinham de ser do jeito que ela queria e pensava e  pronto. E abria muito bem a boca para dizer sem-cerimônia: “Não quero”; “Não gosto disso”; “Isso não presta”; “Não estou a fim”; “Não me agradei disso”; “Não como essas porqueiras”. Varei! Vovó era mesmo uma figura. Braba que só um siri na lata, era do tipo que brigava até com os objetos da casa; certa feita eu flagrei essa fala dela que esbravejava contra um calendário que insistia em cair da parede: “Me arretou tanto com um cai, cai da peste. Quero ver agora. Amassei e joguei no lixo. Vai cair agora na casa de Pantanha”. Ah, tem mais duas falas dela, entre as tantas que colecionei num caderno, que são ótimas: “Deixei de ser besta. Minha sogra me disse uma que nunca esqueci. Ela disse: ‘Minha filha, quem muito se abaixa, o cu aparece’”. E essa: “Já vai tarde. Por mim teria ido logo ontem, porque hoje já fazia um dia”. Vovó era uma resenha.

Como acontece com a maioria das pessoas com idade avançada, vovó envelheceu sem querer admitir as agruras e o peso dos muitos anos vividos; e, em virtude disso, não raro nos tirava do sério porque se punha a fazer e/ou tentar fazer coisas que não mais podia, além de se negar a realizar o que era para ser feito. Nessas horas eu me esforçava ao máximo para tentar me pôr no seu lugar e assim não me contrariar e nem ser duro com ela.

No comecinho da noite do sábado, 4 de novembro, a senhora Maria da Conceição Alcântara, minha muito adorada e querida avó, faleceu aos 89 anos de idade; e isso deixou em mim um daqueles vazios imensos que nada nem ninguém preenche. Minha avó Conceição era uma das riquezas da minha vida. Com ela eu aprendi a enfrentar e lutar contra muitas coisas, principalmente contra a indiferença, o ressentimento e o abandono.

Sinto muita saudade da senhora, minha avó, muita, muita saudade.


(Artigo publicado também in Informa Garanhuns [Garanhuns], nº 13, novembro de 2017, Opinião, p. 2). 

Um comentário:

  1. "Minha vó é uma resenha"... Saiba que mesmo sem conhecê-la eu já admiravas e procuravas sempre pela senhora. Estou emocionado pelos relatos, que seu neto tão bem dissertou. Descanse em paz, Dona Maria da Conceição Alcântara.

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