28 de dezembro de 2017

Ganância de viver

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Marcos Paulo     Muito sugestivo o interruptor que aparece no canto esquerdo superior da foto: a vida é uma luz que pode se apagar e/ou ser apagada a qualquer momento. Então, por que se deixar prender à escuridão da tristeza e da dor?


No dia 6 de dezembro – dia do aniversário de nascimento do meu saudoso e querido amigo Edson Nery da Fonseca – eu dei início a mais uma viagem de formação, querendo rever caminhos e trilhar outros por mim desconhecidos. Contra a minha vontade, porque eu faço de tudo para escapar da tristeza e da dor, a viagem vestiu-se de luto.

Foi uma viagem de luto porque o falecimento recente de minha avó Maria da Conceição me desestruturou muito emocionalmente; e ao pegar sozinho a estrada, eu caí solto no oco do mundo expiando minhas dores e me dizendo que eu não tinha dia certo para regressar ao meu ninho-morada. Houve momentos em que eu chorei copiosamente querendo imputar a mim uma parcela de responsabilidade pelo mal que abateu a minha adorada avó, como se eu fosse mais do que um carrasco, um impiedoso homenzinho em cujo coração não existisse nem um tantinho assim de amor e de gratidão; e eu tivesse me descuidado completamente dela e a abandonado na frieza medonha do hospital do Recife para onde ela fora conduzida e no qual eu a acompanhava no instante em que comecei a perdê-la.

Mirando as paisagens para além das janelas dos tantos ônibus nos quais embarquei, por vezes era para o fundo de mim que eu olhava. Olhando para trás, numa tentativa vã de ver a minha vida por inteiro, com suas incorreções, com suas incongruências, com suas incompreensões, com suas tentativas de libertação, com suas insubordinações, com seus deslizes, com suas frustrações, com seus abandonos, com suas pessoas que ficaram pelo caminho, de algum modo eu buscava mesmo era me fortalecer e me confortar, reconhecendo não somente a minha pequenez perante tudo que estava ao meu redor, mas principalmente dizendo a minha pessoa que ninguém escapa das vicissitudes da existência; e que se sobrepor aos infortúnios e às tragédias do cotidiano é também um exercício de resistência e de sobrevivência.

Ruas, estradas, montanhas, rios, pontes, praias... Avião, ônibus, metrô, moto, carro, lancha, catamarã... Choros, risos, leituras, audições, degustações, olhares, beijos, gozos, abraços... Encontros, despedidas, encantamentos, assombros, descobertas, apreensões, revelações... Terras da Bahia, de Sergipe e de Alagoas. Foram quinze dias de uma longa viagem de introspecção. Em cada lugar a vida acontecendo, pulsando, vibrando. E meus olhos querendo guardar em si cada mínima cor. E meus ouvidos captando uma miríade de sons. E minha boca se dispondo a espontaneamente dizer de mim até sobre o que não me era perguntado... Alguém me disse ao pé do ouvido que gostou de mim à primeira vista; creio que, talvez, deixasse de gostar quando começasse a me conhecer bem de perto: há pessoas que ficam fascinadas com a paisagem sem se dar conta de que podem estar à beira de um abismo. Dias atrás eu pedi encarecidamente a outro alguém que não mais me incluísse em seus futuros imediatos, porque não havia e não há, na verdade, qualquer possibilidade de que venhamos a juntar os nossos desejos e destinos. Normalmente eu me deixo seduzir por fantasias, não por ilusões.

A tristeza querendo se apossar de qualquer simples alegria que me chegava e eu lutando bravamente contra essa sua tentativa de me arrasar e me lançar por terra. O choro insistia em inundar meus olhos e eu me debatendo para nele não me afogar. E o pensamento recobrando o apego a alguma certeza. Por aqueles dias me fez companhia o livro Pureza, de José Lins do Rego. Diferentemente do personagem Lourenço de Melo, eu não desejava ser como o Antônio Cavalcanti, “para quem tudo no mundo estava fora”, que parecia nunca ter chorado e que era todo ele revestido, “insensível ao calor e ao frio das emoções”.

Minha avó não era mais aquela pessoa que me guardaria em seus braços e me beijaria com ternura quando eu retornasse, ela era, agora, uma vida que se me escapara. E naquela solidão sopesar acontecimentos era também promover um ritual de desapego. É principalmente na solidão que eu consigo remendar os meus cacos e jogar outros fora, porque o tempo me ensinou que para certas coisas não existe conserto.

À noite, sozinho nos quartos dos hotéis, eu seguia tentando arrumar da melhor maneira possível a minha consciência. E me esforçava para sustar e afastar de mim os pensamentos tristes. Não era propriamente apenas sobre a dor do luto que eu queria falar aqui; eu queria também dizer do meu apego desmedido à vida. Sim, a dor do luto é algo inevitável; mas o que eu não quero de maneira nenhuma é que a tristeza se firme e se estabeleça em mim como um dos esteios de minha existência.

Às vésperas de completar 44 anos de idade, eu sou um homem que preza demais a instância da liberdade e que se recusa terminantemente a ser triste. Eu, tal qual aquele Lourenço de Melo que revigorou sua vida no bucolismo de Pureza, tenho ganância de viver.

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