Por Clênio Sierra de Alcântara
No dia 6 de dezembro – dia do
aniversário de nascimento do meu saudoso e querido amigo Edson Nery da Fonseca –
eu dei início a mais uma viagem de formação, querendo rever caminhos e trilhar
outros por mim desconhecidos. Contra a minha vontade, porque eu faço de tudo
para escapar da tristeza e da dor, a viagem vestiu-se de luto.
Foi uma viagem de luto
porque o falecimento recente de minha avó Maria da Conceição me desestruturou
muito emocionalmente; e ao pegar sozinho a estrada, eu caí solto no oco do
mundo expiando minhas dores e me dizendo que eu não tinha dia certo para
regressar ao meu ninho-morada. Houve momentos em que eu chorei copiosamente
querendo imputar a mim uma parcela de responsabilidade pelo mal que abateu a
minha adorada avó, como se eu fosse mais do que um carrasco, um impiedoso
homenzinho em cujo coração não existisse nem um tantinho assim de amor e de
gratidão; e eu tivesse me descuidado completamente dela e a abandonado na
frieza medonha do hospital do Recife para onde ela fora conduzida e no qual eu
a acompanhava no instante em que comecei a perdê-la.
Mirando as paisagens para
além das janelas dos tantos ônibus nos quais embarquei, por vezes era para o
fundo de mim que eu olhava. Olhando para trás, numa tentativa vã de ver a minha
vida por inteiro, com suas incorreções, com suas incongruências, com suas
incompreensões, com suas tentativas de libertação, com suas insubordinações,
com seus deslizes, com suas frustrações, com seus abandonos, com suas pessoas que
ficaram pelo caminho, de algum modo eu buscava mesmo era me fortalecer e me
confortar, reconhecendo não somente a minha pequenez perante tudo que estava ao
meu redor, mas principalmente dizendo a minha pessoa que ninguém escapa das
vicissitudes da existência; e que se sobrepor aos infortúnios e às tragédias do
cotidiano é também um exercício de resistência e de sobrevivência.
Ruas, estradas, montanhas,
rios, pontes, praias... Avião, ônibus, metrô, moto, carro, lancha, catamarã...
Choros, risos, leituras, audições, degustações, olhares, beijos, gozos, abraços...
Encontros, despedidas, encantamentos, assombros, descobertas, apreensões,
revelações... Terras da Bahia, de Sergipe e de Alagoas. Foram quinze dias de
uma longa viagem de introspecção. Em cada lugar a vida acontecendo, pulsando,
vibrando. E meus olhos querendo guardar em si cada mínima cor. E meus ouvidos
captando uma miríade de sons. E minha boca se dispondo a espontaneamente dizer
de mim até sobre o que não me era perguntado... Alguém me disse ao pé do ouvido
que gostou de mim à primeira vista; creio que, talvez, deixasse de gostar
quando começasse a me conhecer bem de perto: há pessoas que ficam fascinadas
com a paisagem sem se dar conta de que podem estar à beira de um abismo. Dias
atrás eu pedi encarecidamente a outro alguém que não mais me incluísse em seus
futuros imediatos, porque não havia e não há, na verdade, qualquer
possibilidade de que venhamos a juntar os nossos desejos e destinos. Normalmente
eu me deixo seduzir por fantasias, não por ilusões.
A tristeza querendo se
apossar de qualquer simples alegria que me chegava e eu lutando bravamente
contra essa sua tentativa de me arrasar e me lançar por terra. O choro insistia
em inundar meus olhos e eu me debatendo para nele não me afogar. E o pensamento
recobrando o apego a alguma certeza. Por aqueles dias me fez companhia o livro Pureza, de José Lins do Rego. Diferentemente
do personagem Lourenço de Melo, eu não desejava ser como o Antônio Cavalcanti, “para
quem tudo no mundo estava fora”, que parecia nunca ter chorado e que era todo
ele revestido, “insensível ao calor e ao frio das emoções”.
Minha avó não era mais
aquela pessoa que me guardaria em seus braços e me beijaria com ternura quando
eu retornasse, ela era, agora, uma vida que se me escapara. E naquela solidão
sopesar acontecimentos era também promover um ritual de desapego. É principalmente
na solidão que eu consigo remendar os meus cacos e jogar outros fora, porque o
tempo me ensinou que para certas coisas não existe conserto.
À noite, sozinho nos quartos
dos hotéis, eu seguia tentando arrumar da melhor maneira possível a minha
consciência. E me esforçava para sustar e afastar de mim os pensamentos
tristes. Não era propriamente apenas sobre a dor do luto que eu queria falar
aqui; eu queria também dizer do meu apego desmedido à vida. Sim, a dor do luto
é algo inevitável; mas o que eu não quero de maneira nenhuma é que a tristeza
se firme e se estabeleça em mim como um dos esteios de minha existência.
Às vésperas de completar 44
anos de idade, eu sou um homem que preza demais a instância da liberdade e que
se recusa terminantemente a ser triste. Eu, tal qual aquele Lourenço de Melo que revigorou sua vida no bucolismo de Pureza, tenho ganância de viver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário