Capa da cartilha. E abaixo, entre os textos, reprodução de algumas páginas dessa publicação |
Anos atrás, numa das minhas
incursões aos sebos que se arrumam sob as marquises dos prédios da Av.
Guararapes, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife, eu incluí entre
o monte de títulos que adquiri com o sebista Ramos uma cartilha de Integração
Social para a 3ª série e já em sua 4ª edição, que, num primeiro momento, só
despertou o meu interesse por causa do título: A cidade e sua história.
Obra de autoria de Anna de
Oliveira, Eunice Alves, Lia Dalva Grosso e Thelma Bellotti, a cartilha, que
traz ilustrações de José Menezes e várias fotografias, foi lançada no Rio de
Janeiro em 1978 numa parceria entre a Fundação Nacional de Material Escolar
(FENAME), do Ministério da Educação e Cultura, e a Bloch Editores. Estava-se
ainda sob o regime da Ditadura Militar, tendo Ernesto Geisel como presidente da
República e Euro Brandão como ministro da Educação e Cultura.
Com textos muito breves e
claros, as autoras nos põem de imediato em contato com a cidade de Boa
Esperança, que fica no litoral – “é uma cidade moderna, situada à beira-mar”
(p. 8) – e é parte de um município – faz-se didaticamente a distinção entre
cidade e município – que reúne algumas vilas e povoados. As ilustrações não
deixam qualquer dúvida: Boa Esperança é um centro urbano bem desenvolvido.
Cidade que “começou com um pequeno número de casas” (p. 10) e que se mantinha
com o cultivo e processamento da cana-de-açúcar – “Hoje ainda existem engenhos,
mas são apenas uma lembrança de épocas antigas” (p. 10) –, Boa Esperança se
desenvolveu a olhos vistos com fábricas e boas estradas. Para se ter uma ideia
do progresso da cidade, apenas no bairro de Santa Teresa – “um bairro
importante porque é considerado, pela beleza de sua praia, um ponto turístico
(p. 17) – existem quatro postos de gasolina, dois hospitais, dois cinemas, três
praças, três hotéis, quatro clubes, duas igrejas, duas escolas e vários outros
estabelecimentos comerciais. Ali só não se encontram feiras livres: frutas,
legumes, verduras e carnes podem ser comprados no supermercado (p.26).
Juntamente com a cidade de
Boa Esperança a cartilha nos apresenta a família de Seu José, que trabalha na
fábrica de doces Doçura, é casado com Dona Maria, é pai de Lúcia e de
Francisco, e que mora no bairro de Santa Teresa. Dando o tom paternalista da
ocasião, a narrativa em mais de um momento destaca que o crescimento do país
deve contar com a participação de todos e de cada um dos cidadãos. Assim, se “O
Governo é responsável pelo bem-estar do povo, pela boa ordem e desenvolvimento
da cidade” (p. 41), muitas “pessoas colaboram”, porque “responsabilidade +
colaboração + organização” resultam em progresso. Deste modo, na tradicional
família de Seu José, “Ele é o responsável pela família” (p. 34) e “trabalha
para o sustento” dela; enquanto que Dona Maria “cuida da casa e das crianças”;
e mesmo Lúcia também ajuda: “Cuida de suas roupas, do seu material escolar e
auxilia a mãe a conservar a casa bem arrumada. Ela ainda toma conta de
Francisquinho, o irmão menor” (p. 34). Ainda reforçando esse tal engajamento da
comunidade com o Governo, porque “A ação comunitária é importante!” (p. 53),
nos é dito que a construção do novo hospital municipal contou com a
participação de muita gente: Lúcia vendeu bilhetinhos para a compra de tijolos;
as mães conseguiram no comércio local a doação de lençóis e roupas; e a verba
da Prefeitura foi aumentada com as doações das lojas e fábricas (p. 52).
Para não dizer que o Brasil
que dava certo e progredia estava resumido na cidade de Boa Esperança, a
cartilha nos mostra outras faces do Brasil potência, do Brasil grande que a
propaganda do Governo dos militares queria fazer crer que existia. Assim sendo,
ao lado de alguns episódios de história do país, como a chegada dos
descobridores, a ação dos bandeirantes, a morte de Tiradentes e o advento da
República, vemos Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e outros lugares em belas
imagens de pontos turísticos, algo que a cartilha exalta mesmo em Boa
Esperança, como vimos.
Como não poderia deixar de
ser, já que se vivia em um regime de exceção, perto do fim, a cartilha exibe os
símbolos nacionais – bandeira, armas e o selo nacional e também a letra do hino
da nação – para nas páginas seguintes, ao lado de uma plataforma de petróleo,
exaltar ainda mais o país – “É este o Brasil de hoje” diz a frase posta na
fotografia (p. 100) -: o último parágrafo da p. 101 diz isto: “Novas estradas,
pontes, indústrias, são alguns aspectos que representam o Brasil de hoje, que
se transforma a cada dia”.
Ainda que fosse fictícia, a
cidade de Boa Esperança figurava nas páginas da cartilha como uma proposta, ou
melhor, como um projeto de futuro alcançável para todo o país. Algo que, claro,
deveria ser ensinado e mostrado aos brasileirinhos que frequentavam a escola
naqueles anos era que somente sob a ordem é que se atingia o progresso.
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