6 de janeiro de 2018

Fragmentos de uma cartilha

Por Clênio Sierra de Alcântara


Capa da cartilha. E abaixo, entre os textos, reprodução de algumas páginas dessa publicação



Anos atrás, numa das minhas incursões aos sebos que se arrumam sob as marquises dos prédios da Av. Guararapes, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife, eu incluí entre o monte de títulos que adquiri com o sebista Ramos uma cartilha de Integração Social para a 3ª série e já em sua 4ª edição, que, num primeiro momento, só despertou o meu interesse por causa do título: A cidade e sua história.






Obra de autoria de Anna de Oliveira, Eunice Alves, Lia Dalva Grosso e Thelma Bellotti, a cartilha, que traz ilustrações de José Menezes e várias fotografias, foi lançada no Rio de Janeiro em 1978 numa parceria entre a Fundação Nacional de Material Escolar (FENAME), do Ministério da Educação e Cultura, e a Bloch Editores. Estava-se ainda sob o regime da Ditadura Militar, tendo Ernesto Geisel como presidente da República e Euro Brandão como ministro da Educação e Cultura.


Com textos muito breves e claros, as autoras nos põem de imediato em contato com a cidade de Boa Esperança, que fica no litoral – “é uma cidade moderna, situada à beira-mar” (p. 8) – e é parte de um município – faz-se didaticamente a distinção entre cidade e município – que reúne algumas vilas e povoados. As ilustrações não deixam qualquer dúvida: Boa Esperança é um centro urbano bem desenvolvido. Cidade que “começou com um pequeno número de casas” (p. 10) e que se mantinha com o cultivo e processamento da cana-de-açúcar – “Hoje ainda existem engenhos, mas são apenas uma lembrança de épocas antigas” (p. 10) –, Boa Esperança se desenvolveu a olhos vistos com fábricas e boas estradas. Para se ter uma ideia do progresso da cidade, apenas no bairro de Santa Teresa – “um bairro importante porque é considerado, pela beleza de sua praia, um ponto turístico (p. 17) – existem quatro postos de gasolina, dois hospitais, dois cinemas, três praças, três hotéis, quatro clubes, duas igrejas, duas escolas e vários outros estabelecimentos comerciais. Ali só não se encontram feiras livres: frutas, legumes, verduras e carnes podem ser comprados no supermercado (p.26).







Juntamente com a cidade de Boa Esperança a cartilha nos apresenta a família de Seu José, que trabalha na fábrica de doces Doçura, é casado com Dona Maria, é pai de Lúcia e de Francisco, e que mora no bairro de Santa Teresa. Dando o tom paternalista da ocasião, a narrativa em mais de um momento destaca que o crescimento do país deve contar com a participação de todos e de cada um dos cidadãos. Assim, se “O Governo é responsável pelo bem-estar do povo, pela boa ordem e desenvolvimento da cidade” (p. 41), muitas “pessoas colaboram”, porque “responsabilidade + colaboração + organização” resultam em progresso. Deste modo, na tradicional família de Seu José, “Ele é o responsável pela família” (p. 34) e “trabalha para o sustento” dela; enquanto que Dona Maria “cuida da casa e das crianças”; e mesmo Lúcia também ajuda: “Cuida de suas roupas, do seu material escolar e auxilia a mãe a conservar a casa bem arrumada. Ela ainda toma conta de Francisquinho, o irmão menor” (p. 34). Ainda reforçando esse tal engajamento da comunidade com o Governo, porque “A ação comunitária é importante!” (p. 53), nos é dito que a construção do novo hospital municipal contou com a participação de muita gente: Lúcia vendeu bilhetinhos para a compra de tijolos; as mães conseguiram no comércio local a doação de lençóis e roupas; e a verba da Prefeitura foi aumentada com as doações das lojas e fábricas (p. 52).


Para não dizer que o Brasil que dava certo e progredia estava resumido na cidade de Boa Esperança, a cartilha nos mostra outras faces do Brasil potência, do Brasil grande que a propaganda do Governo dos militares queria fazer crer que existia. Assim sendo, ao lado de alguns episódios de história do país, como a chegada dos descobridores, a ação dos bandeirantes, a morte de Tiradentes e o advento da República, vemos Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e outros lugares em belas imagens de pontos turísticos, algo que a cartilha exalta mesmo em Boa Esperança, como vimos.






Como não poderia deixar de ser, já que se vivia em um regime de exceção, perto do fim, a cartilha exibe os símbolos nacionais – bandeira, armas e o selo nacional e também a letra do hino da nação – para nas páginas seguintes, ao lado de uma plataforma de petróleo, exaltar ainda mais o país – “É este o Brasil de hoje” diz a frase posta na fotografia (p. 100) -: o último parágrafo da p. 101 diz isto: “Novas estradas, pontes, indústrias, são alguns aspectos que representam o Brasil de hoje, que se transforma a cada dia”.






Ainda que fosse fictícia, a cidade de Boa Esperança figurava nas páginas da cartilha como uma proposta, ou melhor, como um projeto de futuro alcançável para todo o país. Algo que, claro, deveria ser ensinado e mostrado aos brasileirinhos que frequentavam a escola naqueles anos era que somente sob a ordem é que se atingia o progresso.


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