6 de dezembro de 2017

O homem, a casa, os gatos, os amores, a religiosidade e os livros: Edson Nery da Fonseca e a vida que foi vivida como poderia ter sido

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Acervo do autor   Como o seu amigo Gilberto Freyre, Edson vivia dos livros e               para os livros


Uma casa não é só para nela se morar. Além de um abrigo, um refúgio, um lugar de proteção e um ambiente de descanso e de sossego, uma casa pode ser também o território no qual expomos em formas as mais diversas praticamente tudo o que nos define como pessoa, seja na disposição e escolha dos objetos que irão preenchê-la, seja na cor da tinta de suas paredes, seja nos rituais que nela praticamos, seja na maneira como lidamos com o transcurso do tempo e seus reflexos na paciente corrosão de tudo o que existe.

Quando eu comecei a frequentar a casa de Edson Nery da Fonseca – casa localizada na Rua de São Bento, em Olinda, que ele ocupava por meio de um contrato vitalício mantido com os administradores do Mosteiro de São Bento, instituição essa a que, muitos anos atrás, Edson teve o devaneio de querer pertencer – senti claramente o quanto que ela era o fiel retrato da personalidade incandescente daquele senhor de muitos predicados. Três coisas em particular me deram logo a justa medida do que era realmente importante para o espírito que nela habitava: os mais de vinte gatos que perambulavam pela casa quase toda, deixando rastros não só de fezes e urina como também de traquinagens como a derrubada e às vezes quebra de bibelôs e unhadas em tudo que era canto; os livros, livros à mancheia que ocupavam estantes, armários e onde mais fosse possível arrumá-los, porque livros eram naquela casa artigos de primeiríssima necessidade; e a religiosidade evidenciada num bonito e encantador conjunto de peças sacras que ficavam dispostas numa parede e num móvel junto à porta que levava ao jardim.

Certa feita, quando houve necessidade extrema de afastá-lo dos bichanos por causa da enfermidade que o acometera, Edson confessou a sua sobrinha Lúcia Maria, a Lucinha, que, em grande parte de sua vida, os gatos eram os únicos seres viventes que estavam a lhe esperar, quando ele chegava da rua. É bem verdade que, embora o zelo pelos felinos fosse amplo, geral e irrestrito havia, claro, aqueles que lhe eram mais chegados por escolha natural deles próprios, como as gatas Daminha e Princesa. Os miados, as correrias, o ronronar, o tumulto na hora da refeição, tudo isso conferia um certo ar de despojamento àquela casa tão impregnada de seriedade.

Nos começos de nossa amizade o velho Edson ainda conseguia com grande esforço caminhar pelo amplo salão de seu lar. Pude ainda testemunhar a sua enorme pessoa a buscar livros entre as prateleiras, edições por vezes bastante carcomidas por insetos e mesmo em parte danificadas pela constante ação dos gatos, que lhe serviriam para embasar alguns dos seus últimos escritos, como a sua colaboração para a obra coletiva Linda Olinda e um artigo em que ele apontou alguns deslizes cometidos por José Paulo Cavalcanti Filho, um dos seus grandes amigos, na biografia que ele escreveu de Fernando Pessoa. Edson escrevia e cabia à minha pessoa digitar. O texto destinado ao livro sobre Olinda, inclusive, seria motivo de um lamentável desentendimento entre nós dois, porque ele me acusaria, de modo injusto, de ter feito alterações no seu trabalho sem que ele houvesse me dado consentimento e autorização para tanto, o que não foi verdade; e muito colaborou para que fizéssemos as pazes a ação de um amigo que tínhamos em comum. A ocorrência de tal episódio me revelou o quanto podia ser também duro e cruel aquele senhor em geral de tratamento tão afável e cativante.

Em nossas longas conversas Edson costumava me relatar suas aventuras amorosas e suas paixões de ocasião sempre com um contagiante entusiasmo. Era inegável que para ele aquelas peripécias todas que me narrava eram motivo de imensa satisfação – quer dizer, nem todas, porque algumas delas lhe renderam situações embaraçosas para dizer o mínimo. Pensar que uma pessoa pode chegar aos noventa anos de idade e ainda se apaixonar por alguém deixou de ser algo absurdo e/ou improvável para mim depois que eu conheci Edson.

A hora da missa era um momento solene e sagrado naquela casa. Acompanhando a celebração religiosa todos os dias pela TV, o velho oblato era todo ele um homem temente às forças do sobrenatural, se bem que, por outro lado, temesse a morte, numa dessas contradições das quais ninguém escapa de ser acometido. E Edson se via tão compenetrado ouvindo a fala do padre que se aborrecia tremendamente quando porventura vinham interromper aquele seu mergulho espiritual.

Intelectual refinadíssimo, Edson, que esteve em companhia de grandes nomes da cultura brasileira e com alguns deles desfrutou de íntima amizade, recordava passagens e episódios de sua longa e vitoriosa trajetória pessoal e profissional incluindo aqui e ali uma personalidade, principalmente aquelas que lhe eram muito caras, como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Darcy Ribeiro e o usineiro e mecenas paraibano Odilon Ribeiro Coutinho, que ele um dia me disse que fora o seu maior e mais querido amigo.

Muito embora falasse desses seus velhos conhecidos até com certa vaidade – ele sempre negava que fosse vaidoso, ainda que sendo; na verdade, ele negava ser tudo o que era, como certa feita me disse a sua irmã Lúcia Nery -, era com os livros propriamente e com as pessoas que nele habitavam que o lorde Edson Nery da Fonseca mantinha verdadeiramente relacionamentos de profunda e reveladora simpatia. Era estando com um livro na mão que Edson se via homem completamente feito e realizado, como se para além dos conhecimentos que ele fosse adquirir com a leitura, o livro se portasse como uma extensão do seu próprio corpo. Sim, os amores, mesmo quando fugazes, eram desejados, os gatos eram benquistos, as pessoas do seu ciclo de amizade e interesse eram muito queridas, mas eu não tenho nenhuma dúvida de que, pelo que eu observei durante a nossa breve convivência – breve, mas intensa, posso dizer -, era no silêncio das horas de leitura que sua vida indiscutivelmente se completava, porque aquelas é que eram as suas horas de redenção e plenitude.

Reconheço em cada lembrança que guardo do convívio que mantive com o senhor Edson Nery da Fonseca, um lampejo não só de saudade, bem como de reconhecida gratidão pelas boas coisas que ele fez por mim e me proporcionou, pelos ensinamentos que me concedeu e, sobretudo, pelo carinho e pelo amor que me ofertou.

Diferentemente do que confessou Manuel Bandeira no poema “Pneumotórax”, Edson Nery da Fonseca viveu a sua vida intensamente como ela poderia ter sido vivida.



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