Foto: Acervo do autor Como o seu amigo Gilberto Freyre, Edson vivia dos livros e para os livros |
Uma casa não é só para nela
se morar. Além de um abrigo, um refúgio, um lugar de proteção e um ambiente de
descanso e de sossego, uma casa pode ser também o território no qual expomos em
formas as mais diversas praticamente tudo o que nos define como pessoa, seja na
disposição e escolha dos objetos que irão preenchê-la, seja na cor da tinta de
suas paredes, seja nos rituais que nela praticamos, seja na maneira como
lidamos com o transcurso do tempo e seus reflexos na paciente corrosão de tudo
o que existe.
Quando eu comecei a
frequentar a casa de Edson Nery da Fonseca – casa localizada na Rua de São
Bento, em Olinda, que ele ocupava por meio de um contrato vitalício mantido com
os administradores do Mosteiro de São Bento, instituição essa a que, muitos
anos atrás, Edson teve o devaneio de querer pertencer – senti claramente o
quanto que ela era o fiel retrato da personalidade incandescente daquele senhor
de muitos predicados. Três coisas em particular me deram logo a justa medida do
que era realmente importante para o espírito que nela habitava: os mais de
vinte gatos que perambulavam pela casa quase toda, deixando rastros não só de
fezes e urina como também de traquinagens como a derrubada e às vezes quebra de
bibelôs e unhadas em tudo que era canto; os livros, livros à mancheia que
ocupavam estantes, armários e onde mais fosse possível arrumá-los, porque
livros eram naquela casa artigos de primeiríssima necessidade; e a
religiosidade evidenciada num bonito e encantador conjunto de peças sacras que
ficavam dispostas numa parede e num móvel junto à porta que levava ao jardim.
Certa feita, quando houve
necessidade extrema de afastá-lo dos bichanos por causa da enfermidade que o
acometera, Edson confessou a sua sobrinha Lúcia Maria, a Lucinha, que, em
grande parte de sua vida, os gatos eram os únicos seres viventes que estavam a
lhe esperar, quando ele chegava da rua. É bem verdade que, embora o zelo pelos
felinos fosse amplo, geral e irrestrito havia, claro, aqueles que lhe eram mais
chegados por escolha natural deles próprios, como as gatas Daminha e Princesa.
Os miados, as correrias, o ronronar, o tumulto na hora da refeição, tudo isso
conferia um certo ar de despojamento àquela casa tão impregnada de seriedade.
Nos começos de nossa amizade
o velho Edson ainda conseguia com grande esforço caminhar pelo amplo salão de
seu lar. Pude ainda testemunhar a sua enorme pessoa a buscar livros entre as
prateleiras, edições por vezes bastante carcomidas por insetos e mesmo em parte
danificadas pela constante ação dos gatos, que lhe serviriam para embasar
alguns dos seus últimos escritos, como a sua colaboração para a obra coletiva Linda Olinda e um artigo em que ele
apontou alguns deslizes cometidos por José Paulo Cavalcanti Filho, um dos seus
grandes amigos, na biografia que ele escreveu de Fernando Pessoa. Edson
escrevia e cabia à minha pessoa digitar. O texto destinado ao livro sobre
Olinda, inclusive, seria motivo de um lamentável desentendimento entre nós
dois, porque ele me acusaria, de modo injusto, de ter feito alterações no seu
trabalho sem que ele houvesse me dado consentimento e autorização para tanto, o
que não foi verdade; e muito colaborou para que fizéssemos as pazes a ação de
um amigo que tínhamos em comum. A ocorrência de tal episódio me revelou o
quanto podia ser também duro e cruel aquele senhor em geral de tratamento tão
afável e cativante.
Em nossas longas conversas
Edson costumava me relatar suas aventuras amorosas e suas paixões de ocasião
sempre com um contagiante entusiasmo. Era inegável que para ele aquelas
peripécias todas que me narrava eram motivo de imensa satisfação – quer dizer,
nem todas, porque algumas delas lhe renderam situações embaraçosas para dizer o
mínimo. Pensar que uma pessoa pode chegar aos noventa anos de idade e ainda se
apaixonar por alguém deixou de ser algo absurdo e/ou improvável para mim depois
que eu conheci Edson.
A hora da missa era um
momento solene e sagrado naquela casa. Acompanhando a celebração religiosa todos
os dias pela TV, o velho oblato era todo ele um homem temente às forças do
sobrenatural, se bem que, por outro lado, temesse a morte, numa dessas contradições das quais ninguém escapa de ser acometido. E Edson se via tão compenetrado ouvindo a fala
do padre que se aborrecia tremendamente quando porventura vinham interromper
aquele seu mergulho espiritual.
Intelectual refinadíssimo,
Edson, que esteve em companhia de grandes nomes da cultura brasileira e com
alguns deles desfrutou de íntima amizade, recordava passagens e episódios de
sua longa e vitoriosa trajetória pessoal e profissional incluindo aqui e ali
uma personalidade, principalmente aquelas que lhe eram muito caras, como
Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Darcy Ribeiro e o usineiro e
mecenas paraibano Odilon Ribeiro Coutinho, que ele um dia me disse que fora o
seu maior e mais querido amigo.
Muito embora falasse desses
seus velhos conhecidos até com certa vaidade – ele sempre negava que fosse
vaidoso, ainda que sendo; na verdade, ele negava ser tudo o que era, como certa
feita me disse a sua irmã Lúcia Nery -, era com os livros propriamente e com as
pessoas que nele habitavam que o lorde Edson Nery da Fonseca mantinha
verdadeiramente relacionamentos de profunda e reveladora simpatia. Era estando com
um livro na mão que Edson se via homem completamente feito e realizado, como se
para além dos conhecimentos que ele fosse adquirir com a leitura, o livro se
portasse como uma extensão do seu próprio corpo. Sim, os amores, mesmo quando
fugazes, eram desejados, os gatos eram benquistos, as pessoas do seu ciclo de
amizade e interesse eram muito queridas, mas eu não tenho nenhuma dúvida de
que, pelo que eu observei durante a nossa breve convivência – breve, mas
intensa, posso dizer -, era no silêncio das horas de leitura que sua vida
indiscutivelmente se completava, porque aquelas é que eram as suas horas de
redenção e plenitude.
Reconheço em cada lembrança
que guardo do convívio que mantive com o senhor Edson Nery da Fonseca, um
lampejo não só de saudade, bem como de reconhecida gratidão pelas boas coisas
que ele fez por mim e me proporcionou, pelos ensinamentos que me concedeu e,
sobretudo, pelo carinho e pelo amor que me ofertou.
Diferentemente do que
confessou Manuel Bandeira no poema “Pneumotórax”, Edson Nery da Fonseca viveu a
sua vida intensamente como ela poderia ter sido vivida.
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