Por Clênio Sierra de Alcântara
Menos de uma semana depois
de festejar o seu aniversário junto com sua comunidade no Centro Cultural
Estrela de Lia (CCEL), na Praia de Jaguaribe, num dia que foi todo ele
inesquecível, a cirandeira Lia de Itamaracá tornou público em sua página oficial
do Facebook, na manhã da última
terça-feira, a sua insatisfação e o seu lamento por estar há mais de seis meses
sem receber vários cachês que lhe são devidos pela Fundação do Patrimônio Histórico
e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Na manhã do dia seguinte, o LeiaJá, que é hospedado na plataforma
digital do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, publicou, às 11:29 h, matéria
intitulada “Fundarpe tem pendências há 8 meses com Lia de Itamaracá”, assinada
por Ana Tereza Moraes que apurou os fatos junto ao produtor da artista, o
obstinado Beto Hees, e destacou uma fala de Lia que é a meu ver emblemática
sobre essa questão: “Está tudo parado. A gente está sem saber o que fazer e os
músicos me cobrando direto. Alguns até me acusaram de ter gasto o dinheiro
todo, sendo que está lá na Fundarpe a prova de que a gente ainda não recebeu
pagamento nenhum vindo deles”. E desde então não houve sequer a publicação de
uma nota sobre o assunto por parte daquela fundação.
Sabe-se perfeitamente que
Lia não é a única artista que está à espera de pagamentos devidos pela
Fundarpe. No último dia 26 de dezembro, Ancelmo Góis, em seu blog no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, soltou, com o título “Seis meses depois,
governo de PE ainda não pagou shows de Zeca e Mart’nália”, uma notinha marota
dizendo assim: “Pague ao Zeca: A Fundarpe, ligada ao governo de Pernambuco e
responsável pelo Festival [de Inverno] de Garanhuns, não pagou até agora os
cachês de Mart’nália e Zeca Pagodinho. O acordo era que a grana entrasse 40
dias após as apresentações, que rolaram em... julho”. O que pesa no caso da
artista pernambucana Lia de Itamaracá é o fato de ela ser reconhecida como
Patrimônio Vivo por uma lei estadual desde 2005, o que, em tese, lhe garantiria,
no mínimo, um tratamento digno e prioridade na hora de receber pagamentos por
serviços prestados junto não só àquele órgão bem como aos demais que compõem a
estrutura do Governo de Pernambuco. Mas não é bem assim que a banda toca. “Essa
coisa de atraso de pagamento sempre houve, não é de agora. Mas já houve tempo
de a Fundarpe pagar no máximo em um mês”, me disse Beto Hees.
O produtor Beto Hees é por
muitos considerado persona non grata.
Tem fama de ser brigão, intransigente e coisa e
tal, mas eu, que venho acompanhando bem de perto a carreira e aspectos da vida
pessoal da cirandeira há quatro anos, viajando com ela e o seu conjunto por
mundos e fundos, nunca o vi batendo boca, agindo com má-fé, pouco caso e
destrato para com Lia. Muito pelo contrário. E sabem por que isso se dá dessa maneira?
Porque Lia deposita plena confiança em Beto, entendendo, como ela mais de uma
vez falou a mim e a outrem, que ele é quem batalha para que ela brilhe e
aconteça e que foi ele quem, com todo esforço, reergueu a carreira dela,
fazendo todo o possível para livrá-la de aproveitadores que vez e outra
aparecem.
Não é de hoje que a Fundarpe
não vem agindo com o devido respeito para com Lia e nem com preciso
reconhecimento do valor que ela e o folguedo que conduz há mais de cinquenta anos
têm para cultura popular pernambucana. Ah, vão conferir título de Patrimônio
Vivo à Lia? Arretado. Eta, vão render homenagem à Lia com isso e aquilo?
Beleza. Mas, por que na hora de contratar Lia não se pensa em pagar um cachê
digno a ela? E por que não se resolve cumprir prioridades de pagamentos desses
cachês? O discurso oficial laudatório que diz que Lia é “rainha”, é “deusa” não
tem serventia se na hora do vamos ver, do confrontar a ordem do discurso com as
necessidades da vida real e prática, quem está do lado de cá, nos bastidores,
verifica que a realidade é bem outra e nada glamourosa.
Como Patrimônio Vivo Lia de
Itamaracá recebe uma bolsa vitalícia do Governo do estado cujo valor atual não
chega a dois salários mínios e, até onde eu sei, nem sempre é paga em dia. Em virtude
desse título que recebeu, Lia tem certas, digamos, obrigações para com o papel
que lhe foi atribuído, como participar de algumas das atividades promovidas
pela Fundarpe sem receber nada. Ocorre que quem é o Patrimônio Vivo é Lia e não
a sua ciranda e não o seu conjunto. De modo que, mesmo considerando que a
fundação acene com uma ajuda de custo de R$ 2.000,00 – era de R$ 1.500,00 e
aumentou porque Beto brigou por isso – para o pagamento dos músicos, eles não
têm obrigação de participar desses eventos e nem se sentem estimulados para
tanto, porque sabem que também essa grana, a exemplo da que advém dos contratos
para shows feitos por aquele órgão, não tem previsão de sair. “A Fundarpe tem
uma visão de que o Patrimônio Vivo tem que estar disposto a tudo, sempre à
disposição, como se a bolsa vitalícia significasse, na verdade, um pelourinho
para os artistas que as recebem”, sentenciou Beto Hees.
Querem outro exemplo de como
as coisas andam desconexas entre o discurso e a práxis propriamente dita da Fundarpe? Vamos lá: há alguns anos a
entidade fez um inventário do brinquedo ciranda em todo o estado de Pernambuco
e constatou que, caso não se promovam políticas de incentivo, ele tende a desaparecer.
Os dados e informações coletados constituíram um dossiê com o fito de requerer
junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o
reconhecimento da ciranda como patrimônio imaterial brasileiro, algo que até o
presente momento não ocorreu. Pois bem, no ano passado foram inscritos pelo
menos três projetos relacionados à ciranda dentro dos editais abertos pela Fundarpe:
um deles era para promover todos os sábados, durante seis meses, ciranda e
outros ritmos e oficinas de percussão no Centro Cultural Estrela de Lia; um
outro tratava da gravação de um dvd que reuniria Lia, o coquista
Zeca do Rolete e convidados; e o terceiro buscava financiamento para a
gravação de um cd das filhas do mestre cirandeiro Antônio Baracho,
Biu e Dulce. E sabem o que aconteceu? Nem sequer um deles foi aprovado. O projeto
do dvd recebeu nota dez em quatro dos cinco quesitos de
avaliação, tendo recebido zero justamente no quinto quesito, que perguntava se o
proponente e pelo menos metade da equipe principal eram residentes numa das
macrorregiões do estado Zona da Mata, Agreste e Sertão. Ora, então é dessa
forma que a Fundarpe está empenhada em salvaguardar a ciranda? O que é preciso
para aprovar projetos em seus editais? Participar de panelinhas? Fraudar comprovantes
de residência? Filiar-se a esta ou aquela agremiação partidária?
Mais de uma vez foi preciso
que Lia e Beto recorressem ao expediente de botar a boca no trombone para
receber o que lhes é devido e/ou destravar projetos, como aconteceu no ano de
2016 para que ocorresse a liberação de uma emenda parlamentar que possibilitasse
o início da reconstrução do CCEL. Num primeiro momento, devido às cobranças feitas
em público e às baixarias, como preferem dizer alguns, a coisa até causa certo
impacto, mas logo depois empaca; e vemos se repetir as mesmas promessas, os
mesmos descasos e as mesmas conversas fiadas, num círculo vicioso e infame que
parece que é forjado com o objetivo claro de sempre deixar o artista da cultura
popular na condição degradante, submissa e humilhante da mendicância, de
maneira que ele perca por completo a sua dignidade e se sujeite a tudo o que os
donos do poder e da situação determinam.
Lia de Itamaracá, meus
senhores e minhas senhoras, não está pedindo nada a ninguém, não, ela está,
isso sim, cobrando o que estão lhe devendo. Respeitem, cumpram, honrem e paguem
os compromissos que assumiram com ela porque, assim como os senhores e as
senhoras, Lia também tem contas a pagar e obrigações a cumprir, porque, embora
more numa ilha, próximo à praia, ela não vive de brisa, não.
Uma vergonha para esses governantes que não reconhecen valor da cultura do seu próprio país e ainda pior, uma cegueira que leva ao desrespeito a uma pessoa e figura tão importante para a história cultural de Pernambuco e do Brasil! Espero que a Fundarpe faça o seu papel para o qual foi criada e no mínimo peça desculpas publicamente para Lia de Itamaracá e a sua equipe! viva nossa cirandeira Lia!!!
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