20 de janeiro de 2018

Ciranda e dignidade

Por Clênio Sierra de Alcântara


Lia de Itamaracá, a grande cirandeira pernambucana, não está passando o chapéu e nem pedindo nada a ninguém, não; ela está cobrando o que lhe devem por serviços que ela e o seu conjunto prestaram à Fundarpe


Menos de uma semana depois de festejar o seu aniversário junto com sua comunidade no Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL), na Praia de Jaguaribe, num dia que foi todo ele inesquecível, a cirandeira Lia de Itamaracá tornou público em sua página oficial do Facebook, na manhã da última terça-feira, a sua insatisfação e o seu lamento por estar há mais de seis meses sem receber vários cachês que lhe são devidos pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Na manhã do dia seguinte, o LeiaJá, que é hospedado na plataforma digital do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, publicou, às 11:29 h, matéria intitulada “Fundarpe tem pendências há 8 meses com Lia de Itamaracá”, assinada por Ana Tereza Moraes que apurou os fatos junto ao produtor da artista, o obstinado Beto Hees, e destacou uma fala de Lia que é a meu ver emblemática sobre essa questão: “Está tudo parado. A gente está sem saber o que fazer e os músicos me cobrando direto. Alguns até me acusaram de ter gasto o dinheiro todo, sendo que está lá na Fundarpe a prova de que a gente ainda não recebeu pagamento nenhum vindo deles”. E desde então não houve sequer a publicação de uma nota sobre o assunto por parte daquela fundação.

Sabe-se perfeitamente que Lia não é a única artista que está à espera de pagamentos devidos pela Fundarpe. No último dia 26 de dezembro, Ancelmo Góis, em seu blog no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, soltou, com o título “Seis meses depois, governo de PE ainda não pagou shows de Zeca e Mart’nália”, uma notinha marota dizendo assim: “Pague ao Zeca: A Fundarpe, ligada ao governo de Pernambuco e responsável pelo Festival [de Inverno] de Garanhuns, não pagou até agora os cachês de Mart’nália e Zeca Pagodinho. O acordo era que a grana entrasse 40 dias após as apresentações, que rolaram em... julho”. O que pesa no caso da artista pernambucana Lia de Itamaracá é o fato de ela ser reconhecida como Patrimônio Vivo por uma lei estadual desde 2005, o que, em tese, lhe garantiria, no mínimo, um tratamento digno e prioridade na hora de receber pagamentos por serviços prestados junto não só àquele órgão bem como aos demais que compõem a estrutura do Governo de Pernambuco. Mas não é bem assim que a banda toca. “Essa coisa de atraso de pagamento sempre houve, não é de agora. Mas já houve tempo de a Fundarpe pagar no máximo em um mês”, me disse Beto Hees.

O produtor Beto Hees é por muitos considerado persona non grata. Tem fama de ser brigão, intransigente e coisa e tal, mas eu, que venho acompanhando bem de perto a carreira e aspectos da vida pessoal da cirandeira há quatro anos, viajando com ela e o seu conjunto por mundos e fundos, nunca o vi batendo boca, agindo com má-fé, pouco caso e destrato para com Lia. Muito pelo contrário. E sabem por que isso se dá dessa maneira? Porque Lia deposita plena confiança em Beto, entendendo, como ela mais de uma vez falou a mim e a outrem, que ele é quem batalha para que ela brilhe e aconteça e que foi ele quem, com todo esforço, reergueu a carreira dela, fazendo todo o possível para livrá-la de aproveitadores que vez e outra aparecem.

Não é de hoje que a Fundarpe não vem agindo com o devido respeito para com Lia e nem com preciso reconhecimento do valor que ela e o folguedo que conduz há mais de cinquenta anos têm para cultura popular pernambucana. Ah, vão conferir título de Patrimônio Vivo à Lia? Arretado. Eta, vão render homenagem à Lia com isso e aquilo? Beleza. Mas, por que na hora de contratar Lia não se pensa em pagar um cachê digno a ela? E por que não se resolve cumprir prioridades de pagamentos desses cachês? O discurso oficial laudatório que diz que Lia é “rainha”, é “deusa” não tem serventia se na hora do vamos ver, do confrontar a ordem do discurso com as necessidades da vida real e prática, quem está do lado de cá, nos bastidores, verifica que a realidade é bem outra e nada glamourosa.

Como Patrimônio Vivo Lia de Itamaracá recebe uma bolsa vitalícia do Governo do estado cujo valor atual não chega a dois salários mínios e, até onde eu sei, nem sempre é paga em dia. Em virtude desse título que recebeu, Lia tem certas, digamos, obrigações para com o papel que lhe foi atribuído, como participar de algumas das atividades promovidas pela Fundarpe sem receber nada. Ocorre que quem é o Patrimônio Vivo é Lia e não a sua ciranda e não o seu conjunto. De modo que, mesmo considerando que a fundação acene com uma ajuda de custo de R$ 2.000,00 – era de R$ 1.500,00 e aumentou porque Beto brigou por isso – para o pagamento dos músicos, eles não têm obrigação de participar desses eventos e nem se sentem estimulados para tanto, porque sabem que também essa grana, a exemplo da que advém dos contratos para shows feitos por aquele órgão, não tem previsão de sair. “A Fundarpe tem uma visão de que o Patrimônio Vivo tem que estar disposto a tudo, sempre à disposição, como se a bolsa vitalícia significasse, na verdade, um pelourinho para os artistas que as recebem”, sentenciou Beto Hees.

Querem outro exemplo de como as coisas andam desconexas entre o discurso e a práxis propriamente dita da Fundarpe? Vamos lá: há alguns anos a entidade fez um inventário do brinquedo ciranda em todo o estado de Pernambuco e constatou que, caso não se promovam políticas de incentivo, ele tende a desaparecer. Os dados e informações coletados constituíram um dossiê com o fito de requerer junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o reconhecimento da ciranda como patrimônio imaterial brasileiro, algo que até o presente momento não ocorreu. Pois bem, no ano passado foram inscritos pelo menos três projetos relacionados à ciranda dentro dos editais abertos pela Fundarpe: um deles era para promover todos os sábados, durante seis meses, ciranda e outros ritmos e oficinas de percussão no Centro Cultural Estrela de Lia; um outro tratava da gravação de um dvd que reuniria Lia, o coquista Zeca do Rolete e convidados; e o terceiro buscava financiamento para a gravação de um cd das filhas do mestre cirandeiro Antônio Baracho, Biu e Dulce. E sabem o que aconteceu? Nem sequer um deles foi aprovado. O projeto do dvd recebeu nota dez em quatro dos cinco quesitos de avaliação, tendo recebido zero justamente no quinto quesito, que perguntava se o proponente e pelo menos metade da equipe principal eram residentes numa das macrorregiões do estado Zona da Mata, Agreste e Sertão. Ora, então é dessa forma que a Fundarpe está empenhada em salvaguardar a ciranda? O que é preciso para aprovar projetos em seus editais? Participar de panelinhas? Fraudar comprovantes de residência? Filiar-se a esta ou aquela agremiação partidária?

Mais de uma vez foi preciso que Lia e Beto recorressem ao expediente de botar a boca no trombone para receber o que lhes é devido e/ou destravar projetos, como aconteceu no ano de 2016 para que ocorresse a liberação de uma emenda parlamentar que possibilitasse o início da reconstrução do CCEL. Num primeiro momento, devido às cobranças feitas em público e às baixarias, como preferem dizer alguns, a coisa até causa certo impacto, mas logo depois empaca; e vemos se repetir as mesmas promessas, os mesmos descasos e as mesmas conversas fiadas, num círculo vicioso e infame que parece que é forjado com o objetivo claro de sempre deixar o artista da cultura popular na condição degradante, submissa e humilhante da mendicância, de maneira que ele perca por completo a sua dignidade e se sujeite a tudo o que os donos do poder e da situação determinam.

Lia de Itamaracá, meus senhores e minhas senhoras, não está pedindo nada a ninguém, não, ela está, isso sim, cobrando o que estão lhe devendo. Respeitem, cumpram, honrem e paguem os compromissos que assumiram com ela porque, assim como os senhores e as senhoras, Lia também tem contas a pagar e obrigações a cumprir, porque, embora more numa ilha, próximo à praia, ela não vive de brisa, não.

Um comentário:

  1. Uma vergonha para esses governantes que não reconhecen valor da cultura do seu próprio país e ainda pior, uma cegueira que leva ao desrespeito a uma pessoa e figura tão importante para a história cultural de Pernambuco e do Brasil! Espero que a Fundarpe faça o seu papel para o qual foi criada e no mínimo peça desculpas publicamente para Lia de Itamaracá e a sua equipe! viva nossa cirandeira Lia!!!

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