Por Clênio Sierra de Alcântara
Vamos
celebrar a estupidez humana
A estupidez
de todas as nações
O meu
país e sua corja de assassinos
Covardes,
estupradores e ladrões [...]
Vamos
celebrar os preconceitos
O voto
dos analfabetos [...]
Toda
hipocrisia e toda afetação.
Perfeição. Renato Russo/Marcelo Bonfá/
Dado Villa-Lobos
A própria
fé é o que destrói
Estes
são dias desleais.
Metal contra
as nuvens. Renato Russo/Dado Villa-Lobos
Num país conturbado pela
cancerígena política de baixíssimo nível que arruína paulatinamente qualquer
mínima ideia e/ou proposta de um futuro benfazejo. Num país dominado por
facções criminosas que dão ordens dentro e fora das cadeias e que põem cidadãos
sob a mira de armas de grosso calibre para que eles e submetam às suas ordens. Num
país onde se ateia fogo em moradores de rua e em terreiros de candomblé como se
isso fosse a coisa mais banal do mundo. Num país onde mulheres são mortas,
violentadas e espancadas diariamente, e às dezenas, sem que se consiga barrar
essa tragédia. Num país onde se mantém milhares – talvez, milhões – de indivíduos
trabalhando em condições análogas à escravidão. Num país que extermina
homossexuais como quem pratica caça esportiva. Num país que possui mais de 10
milhões de analfabetos, gente sem nenhum nível de formação escolar, e outros
tantos analfabetos funcionais, gente de formação educacional precária que não
consegue interpretar e/ou compreender textos simples. Num país no qual vem a
cada dia crescendo o número de miseráveis e aumentando progressivamente os
índices de assassinatos. Num país em que se propõe a intervenção militar como
panaceia para todos os males socioeconômicos e se cogita eleger para Presidente
da República uma criatura do nível mental de um Jair Bolsonaro. Num país que
está prestes a ter como presidente da sua mais alta corte da Justiça, que é o
Supremo Tribunal Federal, um senhor que só chegou lá por indicação política,
uma vez que seu “notório saber jurídico” o reprovou em dois concursos para
juiz. Enfim, num país infeliz como este de tantos mandos e desmandos, de tantos
conluios e maracutaias e de tantos preconceitos e perseguições de todo tipo,
eis que se tentou conferir como tema da 28ª edição do Festival de Inverno da
pernambucana cidade de Garanhuns “um viva à liberdade”. Contudo, entretanto e
todavia, dado o clima de intolerância que vem vicejando em âmbito nacional,
também ali, naquela agradável Garanhuns, o viva à liberdade logo deu lugar a um viva à intolerância e ao obscurantismo. Vamos
aos fatos.
Assim que foi divulgada a
grade de eventos do festival e se tomou conhecimento de que nela fora incluída
uma peça teatral que, vejam só, cometia o supremo pecado de ter como título O evangelho segundo Jesus, rainha do céu
e que, ainda por cima, cometia a terrível, a monstruosa heresia de apresentar
como protagonista uma atriz travesti, não demorou para que, à semelhança de Tomás
de Torquemada, evocando a “fé cristã” da comunidade garanhuense, o prefeito da
cidade, o nobre senhor Izaías Régis, certamente agindo como porta-voz sabe-se
lá de quantos cidadãos tanto quanto ele zelosos da moral e dos bons costumes,
dos valores da família tradicional e de tudo o mais que se evoca em momentos
como esse, em que a fé religiosa se apresenta combativa, de arma em punho para acabar
de imediato com o inimigo que está tentando contrariar a ordem estabelecida,
disse em alto e bom som que, lá em Garanhuns, a depender a Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), organizadora do
festival, da estrutura municipal, podia ela desde aquele instante ficar ciente
de que a maldita peça não seria encenada.
E o que se seguiu a partir
daí foi um duelo entre as engrenagens que fazem parte de um mesmo Estado laico,
como o é o brasileiro, segundo a letra de sua lei máxima, a Constituição, que,
além de estabelecer a laicidade do Estado, diz que todos são iguais perante ela
e que o indivíduo, qualquer um, deve gozar de liberdade de expressão. E assim
foi que, durante o embate, a pedido do ilustríssimo Governador Paulo Câmara, a
Fundarpe retirou a peça da grade oficial e foi, depois, obrigada pelo
Ministério Público, representado na figura do Desembargador Silvio Neves
Baptista Filho, a recolocá-la, sob pena de multa, e – haja coração, nervos e
paciência – teve de encerrá-la, já sendo apresentada, porque outro membro do
mesmíssimo Ministério Público, agora representado na pessoa do Desembargador
Roberto da Silva Maia, acatou o pedido de uma certa Ordem dos Pastores
Evangélicos de Garanhuns e Região, e expediu um mandado de segurança no qual esclareceu
que a “peça viola o direito líquido e certo ao sentimento religioso, ao
retratar Jesus Cristo indevidamente”. Até onde se sabe, textualmente, a peça
não ofende religião e nem crença alguma. Agora me digam: quem há de confiar
numa Justiça claudicante como essa?
Façamos um breve, digamos, flashback. Quando ocorreu o anúncio da
retirada da peça da grade oficial do festival, várias pessoas, uma gente
corajosa e destemida, se mobilizaram, arrecadaram dinheiro e garantiam que,
mesmo às escondidas, mesmo na entoca, mesmo clandestinamente e longe dos olhos
da Santa Inquisição, o espetáculo teatral teria duas apresentações, decisão
essa mantida quando veio a primeira ordem da Justiça determinando a
reincorporação da peça à grade. Com os ânimos ainda em ebulição, Daniela
Mercury, ao se apresentar na madrugada do domingo passado no palco principal do
festival, fez um discurso bastante inflamado, que circulou nas redes sociais,
no qual, entre outras tantas coisas, ela disse que “a arte não tem dogma” e que
“arte é reflexão sobre nós”, condenando veementemente a censura à peça protagonizada
pela atriz Renata Carvalho que, reconheçamos, tem tido uma força e uma coragem
absurdas para suportar as constantes bordoadas que tem recebido por este país
afora, que partem sobretudo de fundamentalistas religiosos.
Dizem os cristãos – e eu não me encontro entre eles – que os homens foram criados à imagem e à
semelhança da divindade nas quais eles acreditam. Partindo dessa crença, é
claro, é evidente, é um óbvio ululante que Renata Carvalho, um ser que ficou na
transição entre os gêneros masculino e feminino, jamais, em hipótese alguma
poderia nem poderá ser vista como um ser humano, porque, aos olhos dessa gente,
indivíduos como ela não passam de aberrações que as verdadeiras pessoas de bem,
que leem a Bíblia e seguem à risca o que nela está contido, não podem tomar
como sendo normais. Indivíduos como Renata Carvalho que, além de ser o que são,
ousam representar o filho da divindade, devem ser execrados publicamente,
excomungados, praguejados e lançados nas chamas do inferno.
A estupidez a ignorância, a
opressão, o ódio, a perseguição, a intolerância e a tirania estão em toda
parte, assim como o falso pudor, o desamor e a hipocrisia, entranhados que
estão em pessoas que se apresentam, no entanto, como baluartes em plena defesa
da moral, das virtudes e dos bons costumes, além, claro, do bem comum.
O brado é sempre este: “Jesus
vem!”. Eles assim bradam e se põem em diligência para garantir que a sociedade
como um todo mantenha obediência aos fundamentos religiosos e aos dogmas nos
quais eles creem. E, enquanto esse Jesus não chega, a ordem permanece
inalterada: é preciso de alguma maneira garantir que todas as verdades que
foram inventadas sejam reconhecidas e aceitas mesmo por aqueles que nelas não
acreditam; mesmo que para tanto eles tenham de recorrer às leis, à difamação, à
perseguição, às ameaças, aos discursos de ódio, à execração pública, às
fogueiras e às bombas.
Os episódios recentes
havidos em Garanhuns em torno da peça teatral O evangelho segundo Jesus, rainha do céu não resultaram,
felizmente, em uma outra “hecatombe”, como aquela ocorrida nessa cidade em
janeiro de 1917, durante a qual várias pessoas foram covardemente assassinadas,
história essa da qual eu tomei conhecimento lendo o livro Anatomia de uma tragédia: a hecatombe de Garanhuns, de autoria de
Mário Márcio de Almeida Santos, lançado em 1992. Não se chegou a tanto desta
vez. O que se viu ali foi a repetição e o recrudescimento de tudo o que a
ignorância, o desrespeito à liberdade de expressão, a intolerância e o
preconceito vêm promovendo em vários âmbitos e não somente contra as
manifestações artísticas e os cidadãos homossexuais. Também se observou no meio
disso tudo quão vacilante, mudável e precária tem sido a atuação dos
magistrados no trato com as leis que regem o nosso país que, repito, é um
Estado constitucionalmente laico.
Como eu não possuo moral e
nem virtude alguma e sou um ímpio empedernido e um desregrado sexual incurável,
tenho absoluta certeza de que há um cantinho reservado para mim num desses
infernos que dizem existir por aí. Então, por favor, senhores, deixem que eu vá
para o meu inferno em paz!
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