28 de julho de 2018

Ainda bem que eu não tenho moral e nem virtude alguma


Por Clênio Sierra de Alcântara

Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões [...]
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos [...]
Toda hipocrisia e toda afetação.
                                Perfeição. Renato Russo/Marcelo Bonfá/ Dado Villa-Lobos


A própria fé é o que destrói
Estes são dias desleais.
                                  Metal contra as nuvens. Renato Russo/Dado Villa-Lobos


Edvard Munch. O grito (1893)
Vamos gritar contra o preconceito, o racismo, a intolerância, o feminicídio, a corrupção, o falso pudor, a hipocrisia, o fundamentalismo religioso, a Justiça claudicante e tudo o mais que nos aterroriza, nos oprime e nos sufoca

Num país conturbado pela cancerígena política de baixíssimo nível que arruína paulatinamente qualquer mínima ideia e/ou proposta de um futuro benfazejo. Num país dominado por facções criminosas que dão ordens dentro e fora das cadeias e que põem cidadãos sob a mira de armas de grosso calibre para que eles e submetam às suas ordens. Num país onde se ateia fogo em moradores de rua e em terreiros de candomblé como se isso fosse a coisa mais banal do mundo. Num país onde mulheres são mortas, violentadas e espancadas diariamente, e às dezenas, sem que se consiga barrar essa tragédia. Num país onde se mantém milhares – talvez, milhões – de indivíduos trabalhando em condições análogas à escravidão. Num país que extermina homossexuais como quem pratica caça esportiva. Num país que possui mais de 10 milhões de analfabetos, gente sem nenhum nível de formação escolar, e outros tantos analfabetos funcionais, gente de formação educacional precária que não consegue interpretar e/ou compreender textos simples. Num país no qual vem a cada dia crescendo o número de miseráveis e aumentando progressivamente os índices de assassinatos. Num país em que se propõe a intervenção militar como panaceia para todos os males socioeconômicos e se cogita eleger para Presidente da República uma criatura do nível mental de um Jair Bolsonaro. Num país que está prestes a ter como presidente da sua mais alta corte da Justiça, que é o Supremo Tribunal Federal, um senhor que só chegou lá por indicação política, uma vez que seu “notório saber jurídico” o reprovou em dois concursos para juiz. Enfim, num país infeliz como este de tantos mandos e desmandos, de tantos conluios e maracutaias e de tantos preconceitos e perseguições de todo tipo, eis que se tentou conferir como tema da 28ª edição do Festival de Inverno da pernambucana cidade de Garanhuns “um viva à liberdade”. Contudo, entretanto e todavia, dado o clima de intolerância que vem vicejando em âmbito nacional, também ali, naquela agradável Garanhuns, o viva à liberdade logo deu lugar  a um viva à intolerância e ao obscurantismo. Vamos aos fatos.

Assim que foi divulgada a grade de eventos do festival e se tomou conhecimento de que nela fora incluída uma peça teatral que, vejam só, cometia o supremo pecado de ter como título O evangelho segundo Jesus, rainha do céu e que, ainda por cima, cometia a terrível, a monstruosa heresia de apresentar como protagonista uma atriz travesti, não demorou para que, à semelhança de Tomás de Torquemada, evocando a “fé cristã” da comunidade garanhuense, o prefeito da cidade, o nobre senhor Izaías Régis, certamente agindo como porta-voz sabe-se lá de quantos cidadãos tanto quanto ele zelosos da moral e dos bons costumes, dos valores da família tradicional e de tudo o mais que se evoca em momentos como esse, em que a fé religiosa se apresenta combativa, de arma em punho para acabar de imediato com o inimigo que está tentando contrariar a ordem estabelecida, disse em alto e bom som que, lá em Garanhuns, a depender a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), organizadora do festival, da estrutura municipal, podia ela desde aquele instante ficar ciente de que a maldita peça não seria encenada.

E o que se seguiu a partir daí foi um duelo entre as engrenagens que fazem parte de um mesmo Estado laico, como o é o brasileiro, segundo a letra de sua lei máxima, a Constituição, que, além de estabelecer a laicidade do Estado, diz que todos são iguais perante ela e que o indivíduo, qualquer um, deve gozar de liberdade de expressão. E assim foi que, durante o embate, a pedido do ilustríssimo Governador Paulo Câmara, a Fundarpe retirou a peça da grade oficial e foi, depois, obrigada pelo Ministério Público, representado na figura do Desembargador Silvio Neves Baptista Filho, a recolocá-la, sob pena de multa, e – haja coração, nervos e paciência – teve de encerrá-la, já sendo apresentada, porque outro membro do mesmíssimo Ministério Público, agora representado na pessoa do Desembargador Roberto da Silva Maia, acatou o pedido de uma certa Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região, e expediu um mandado de segurança no qual esclareceu que a “peça viola o direito líquido e certo ao sentimento religioso, ao retratar Jesus Cristo indevidamente”. Até onde se sabe, textualmente, a peça não ofende religião e nem crença alguma. Agora me digam: quem há de confiar numa Justiça claudicante como essa?

Façamos um breve, digamos, flashback. Quando ocorreu o anúncio da retirada da peça da grade oficial do festival, várias pessoas, uma gente corajosa e destemida, se mobilizaram, arrecadaram dinheiro e garantiam que, mesmo às escondidas, mesmo na entoca, mesmo clandestinamente e longe dos olhos da Santa Inquisição, o espetáculo teatral teria duas apresentações, decisão essa mantida quando veio a primeira ordem da Justiça determinando a reincorporação da peça à grade. Com os ânimos ainda em ebulição, Daniela Mercury, ao se apresentar na madrugada do domingo passado no palco principal do festival, fez um discurso bastante inflamado, que circulou nas redes sociais, no qual, entre outras tantas coisas, ela disse que “a arte não tem dogma” e que “arte é reflexão sobre nós”, condenando veementemente a censura à peça protagonizada pela atriz Renata Carvalho que, reconheçamos, tem tido uma força e uma coragem absurdas para suportar as constantes bordoadas que tem recebido por este país afora, que partem sobretudo de fundamentalistas religiosos.

Dizem os cristãos – e eu não me encontro entre eles – que os homens foram criados à imagem e à semelhança da divindade nas quais eles acreditam. Partindo dessa crença, é claro, é evidente, é um óbvio ululante que Renata Carvalho, um ser que ficou na transição entre os gêneros masculino e feminino, jamais, em hipótese alguma poderia nem poderá ser vista como um ser humano, porque, aos olhos dessa gente, indivíduos como ela não passam de aberrações que as verdadeiras pessoas de bem, que leem a Bíblia e seguem à risca o que nela está contido, não podem tomar como sendo normais. Indivíduos como Renata Carvalho que, além de ser o que são, ousam representar o filho da divindade, devem ser execrados publicamente, excomungados, praguejados e lançados nas chamas do inferno.

A estupidez a ignorância, a opressão, o ódio, a perseguição, a intolerância e a tirania estão em toda parte, assim como o falso pudor, o desamor e a hipocrisia, entranhados que estão em pessoas que se apresentam, no entanto, como baluartes em plena defesa da moral, das virtudes e dos bons costumes, além, claro, do bem comum.

O brado é sempre este: “Jesus vem!”. Eles assim bradam e se põem em diligência para garantir que a sociedade como um todo mantenha obediência aos fundamentos religiosos e aos dogmas nos quais eles creem. E, enquanto esse Jesus não chega, a ordem permanece inalterada: é preciso de alguma maneira garantir que todas as verdades que foram inventadas sejam reconhecidas e aceitas mesmo por aqueles que nelas não acreditam; mesmo que para tanto eles tenham de recorrer às leis, à difamação, à perseguição, às ameaças, aos discursos de ódio, à execração pública, às fogueiras e às bombas.

Os episódios recentes havidos em Garanhuns em torno da peça teatral O evangelho segundo Jesus, rainha do céu não resultaram, felizmente, em uma outra “hecatombe”, como aquela ocorrida nessa cidade em janeiro de 1917, durante a qual várias pessoas foram covardemente assassinadas, história essa da qual eu tomei conhecimento lendo o livro Anatomia de uma tragédia: a hecatombe de Garanhuns, de autoria de Mário Márcio de Almeida Santos, lançado em 1992. Não se chegou a tanto desta vez. O que se viu ali foi a repetição e o recrudescimento de tudo o que a ignorância, o desrespeito à liberdade de expressão, a intolerância e o preconceito vêm promovendo em vários âmbitos e não somente contra as manifestações artísticas e os cidadãos homossexuais. Também se observou no meio disso tudo quão vacilante, mudável e precária tem sido a atuação dos magistrados no trato com as leis que regem o nosso país que, repito, é um Estado constitucionalmente laico.

Como eu não possuo moral e nem virtude alguma e sou um ímpio empedernido e um desregrado sexual incurável, tenho absoluta certeza de que há um cantinho reservado para mim num desses infernos que dizem existir por aí. Então, por favor, senhores, deixem que eu vá para o meu inferno em paz!

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