21 de julho de 2018

Patrimônio abandonado e déficit habitacional


Por Clênio Sierra de Alcântara


Acontecimentos recentes envolvendo edificações expuseram a um só tempo dois grandes dramas que, não é de hoje, se multiplicam a olhos vistos por este país afora: o completo descaso para com a conservação de parte do patrimônio edificado; e a questão sempre urgente da falta de moradia, do déficit habitacional que acomete principalmente a população de baixa, baixíssima e nenhuma renda.

Na manhã do último dia 30 de abril, por volta das 10:20 h, na Rua da Matriz, no bairro da Boa Vista, área central do Recife, o telhado de um casarão antigo desabou deixando três pessoas feridas e provocando a interdição de outros três imóveis contíguos a ele. A área em questão concentra uma quantidade expressiva do patrimônio edificado da capital pernambucana e apresenta inúmeros prédios seriamente deteriorados.


Fotos: Arquivo do Autor
Recife, PE, 20 de julho de 2018. Conjunto de edificações da Rua da Matriz interditados pela Prefeitura do Recife. O prédio cujo telhado desabou é o terceiro a partir da esquerda. Todo o entorno está repleto de imóveis bastante deteriorados e sem perspectiva de que serão revitalizados

Ocupação Marielle Franco no Edifício Sulamérica, na Praça da Independência, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife. Dignidade tem valor?




Não muito distante dali, palafitas na margem do Rio Capibaribe, no bairro dos Coelhos, revelam também a precariedade da moradia de muita gente que sobrevive na capital pernambucana 

Na madrugada do último dia 1º de maio, na Rua Antônio de Godoy, no bairro de Santa Efigênia, centro da cidade de São Paulo, o Edifício Wilton Paes de Almeida, que há meses havia sido invadido e ocupado por dezenas pessoas, desabou inteiramente depois de entrar em colapso por causa de um incêndio. O desabamento do prédio, que provocou a morte de sete moradores, destruiu quase que por completo a Igreja Evangélica Luterana Martin Luther, considerada a primeira em estilo neogótico da capital paulista, uma construção de 1908 que ficava ao lado daquela edificação.

Conforme os fatos foram sendo apurados, o grande público foi tomando conhecimento de como eram precários e frágeis, para não dizer inúteis, não somente as informações que as Municipalidades detinham a respeito das edificações em si e de tantas outras em iguais condições, bem como os instrumentos legais que poderiam, digamos assim, ter evitado que os ditos sinistros tivessem ocorrido. A Prefeitura do Recife se limitou a divulgar que fizera diversas tentativas administrativas de exigir do proprietário do imóvel a recuperação da edificação cujo telhado desabou; e que judicializou o caso em 2013. No entanto, quando procurada pela reportagem do Diario de Pernambuco, a Municipalidade não informou o número de imóveis com risco de desabamento que existem na cidade, dado esse do qual, acredito, ela não disponha (Marcionila Teixeira. “Casarões ruídos e vidas arruinadas”. Diario de Pernambuco, Recife, 3 de maio de 2018, Local, p. B1). Já a Prefeitura de São Paulo começou com um jogo de empurra-empurra, atribuindo à União a responsabilidade pelo Edifício Wilton Paes de Almeida; e admitiu que não dispunha de um cômputo preciso revelando quantos prédios abandonados por seus proprietários existem naquela cidade que estão sendo ocupados por sem-tetos. De uma coisa eu não duvido: certamente tanto a Prefeitura do Recife quanto a de São Paulo devem saber com precisão e sem deixar margem para contestações, a quantidade exata de imóveis que até o presente momento se encontram com o pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) em atraso.



João Pessoa, PB, 07 de julho de 2018. Prédio onde funcionou o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (Ipase), localizado entre a Rua Duque de Caxias e a Avenida Guedes Pereira, no centro da capital da Paraíba. Removeram os sem-teto que ocupavam o prédio e ele continua abandonado. Comerciantes informais guardam suas mercadorias em salas do térreo. Desçam a ladeira ao lado dele e vão ver as condições de sobrevivência de muitos paraibanos lá no Porto do Capim



Pessoas que não têm como pagar aluguel e nem financiar a aquisição de um imóvel que lhes sirva de moradia, se sujeitam – isso, minha gente, se chama estratégia de sobrevivência, como eu costumo dizer – a construir barracos em morros periclitantes, em palafitas – como as que existem no Recife -, sob viadutos e até invadir prédios abandonados, quer sejam esses imóveis particulares, quer sejam eles pertencentes aos governos municipal, estadual e federal. Porque o que importa é atender a uma necessidade que acompanha a humanidade desde sempre; uma necessidade, aliás, que grande parte dos animais também tem, porque é necessário se abrigar das intempéries e se esconder dos inimigos e dos predadores; é preciso ter um lugar onde se possa dormir, comer, enfim, temos uma necessidade que eu diria até que é instintiva, de termos um abrigo, seja ele uma caverna, uma palhoça, uma oca, um iglu ou um imponente Palácio da Alvorada. O déficit habitacional no Brasil é algo que, a meu ver, é tão sério quanto a questão igualmente premente da universalização do saneamento básico, duas frentes que, reconheçamos, programas como o Minha Casa, Minha Vida buscam solucionar de maneira muito tímida e vagarosa. E ao cidadão resta, como eu disse, se submeter a estratégias de sobrevivência; estratégias essas que minam paulatinamente a sua dignidade e que o expõe todo tempo a riscos irremediáveis.

Quanto à questão do descaso para com a conservação do patrimônio edificado é sobejamente sabido pelos que lidam com o tema – e, talvez, resida aí um dos empecilhos para que essa situação tome outro relevo, porque esse assunto deveria estar disseminado no seio da sociedade e não permanecer na esfera de ocupação e preocupação apenas de iniciados – que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e os seus congêneres em âmbito estadual e municipal não conseguem sozinhos deter a sanha de destruição que está entranhada não somente na cabeça do magnata do setor imobiliário que, por exemplo, quer erguer prédios e mais prédios em áreas de preservação histórica, mas também na do proprietário de uma casinha existente igualmente numa zona de conservação e que ele quer a todo custo botar abaixo e/ou alterar completamente. Como foi dito em linhas atrás a Prefeitura do Recife informou que o caso do prédio cujo telhado desabou está na Justiça desde 2013, ou seja, já se passaram cinco anos sem que se tenha conseguido uma solução; enquanto isso, os problemas só se agravam. E o que dizer do Edifício Wilton Paes de Almeida, projeto do arquiteto Roger Zmekhol, inaugurado em 1969? Basta que se diga que além de pertencer à União e ter sido abandonado por ela, o imóvel de arquitetura modernista foi tombado em 1992 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP).


Salvador, BA, 08 de dezembro de 2017. Ocupação Luísa Mahin no prédio do antigo Centro de Economia Solidária da Bahia, situado entre as ruas Conde D'Eu e da Polônia, no bairro do Comércio. A parte antiga da capital baiana está repleta de ruínas e as más condições de moradia da população de baixa renda se revelam nas muitas favelas que tomam conta da cidade em vários quadrantes



Os dois episódios que examinamos aqui – o da Rua da Matriz, no Recife, e o da Rua Antônio de Godoy, em São Paulo – evidenciaram também como estão  esquecidos e degradados os espaços de ocupação mais antiga de nossas capitais, algo que eu já verifiquei de muito perto em João Pessoa, São Luís e Salvador. E à medida que o abandono e a degradação se instalam, a cidade perde dia a dia pontos e aspectos referenciais de sua história.

As cidades brasileiras de um modo geral – as pequenas, médias e grandes, incluindo as capitais – enfrentam problemas de toda ordem, como carência de saneamento básico, congestionamento do tráfego de veículos, crescimento urbano desordenado, ineficiência no manejo com o lixo produzido por seus habitantes, poluição do meio ambiente, especulação imobiliária, falta de equipamentos culturais, déficit habitacional, etc. E, no meio disso tudo, no emaranhado dessa série de deficiências e ameaças à integridade das cidades, a discussão sobre a preservação do patrimônio edificado para muita gente, lamentavelmente, soa como algo que não deve ser realmente levado muito a sério dada a quantidade de urgências e necessidades a ser atendidas.

É uma pena que seja assim. E digo mais: é vergonhoso e ao mesmo tempo lamentável constatar que o grosso de nossa população, dada a indigência da educação formal que recebe, não consiga avaliar e por isso mesmo não parta em defesa do patrimônio histórico que este país abriga. Infelizmente muito já se perdeu e outro tanto corre sério risco de ter igual destino. Uma sociedade que é apegada somente às coisas do tempo presente facilmente esquece o seu passado.


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