Por Clênio Sierra de Alcântara
Acontecimentos recentes
envolvendo edificações expuseram a um só tempo dois grandes dramas que, não é
de hoje, se multiplicam a olhos vistos por este país afora: o completo descaso
para com a conservação de parte do patrimônio edificado; e a questão sempre urgente
da falta de moradia, do déficit habitacional que acomete principalmente a
população de baixa, baixíssima e nenhuma renda.
Na manhã do último dia 30 de
abril, por volta das 10:20 h, na Rua da Matriz, no bairro da Boa Vista, área
central do Recife, o telhado de um casarão antigo desabou deixando três pessoas
feridas e provocando a interdição de outros três imóveis contíguos a ele. A área
em questão concentra uma quantidade expressiva do patrimônio edificado da
capital pernambucana e apresenta inúmeros prédios seriamente deteriorados.
Ocupação Marielle Franco no Edifício Sulamérica, na Praça da Independência, no bairro de Santo Antônio, área central do Recife. Dignidade tem valor? |
Não muito distante dali, palafitas na margem do Rio Capibaribe, no bairro dos Coelhos, revelam também a precariedade da moradia de muita gente que sobrevive na capital pernambucana |
Na madrugada do último dia
1º de maio, na Rua Antônio de Godoy, no bairro de Santa Efigênia, centro da
cidade de São Paulo, o Edifício Wilton Paes de Almeida, que há meses havia sido
invadido e ocupado por dezenas pessoas, desabou inteiramente depois de entrar
em colapso por causa de um incêndio. O desabamento do prédio, que provocou a
morte de sete moradores, destruiu quase que por completo a Igreja Evangélica
Luterana Martin Luther, considerada a primeira em estilo neogótico da capital
paulista, uma construção de 1908 que ficava ao lado daquela edificação.
Conforme os fatos foram
sendo apurados, o grande público foi tomando conhecimento de como eram
precários e frágeis, para não dizer inúteis, não somente as informações que as
Municipalidades detinham a respeito das edificações em si e de tantas outras em
iguais condições, bem como os instrumentos legais que poderiam, digamos assim,
ter evitado que os ditos sinistros tivessem ocorrido. A Prefeitura do Recife se
limitou a divulgar que fizera diversas tentativas administrativas de exigir do
proprietário do imóvel a recuperação da edificação cujo telhado desabou; e que
judicializou o caso em 2013. No entanto, quando procurada pela reportagem do Diario de Pernambuco, a Municipalidade
não informou o número de imóveis com risco de desabamento que existem na cidade,
dado esse do qual, acredito, ela não disponha (Marcionila Teixeira. “Casarões
ruídos e vidas arruinadas”. Diario de
Pernambuco, Recife, 3 de maio de 2018, Local, p. B1). Já a Prefeitura de
São Paulo começou com um jogo de empurra-empurra, atribuindo à União a
responsabilidade pelo Edifício Wilton Paes de Almeida; e admitiu que não
dispunha de um cômputo preciso revelando quantos prédios abandonados por seus
proprietários existem naquela cidade que estão sendo ocupados por sem-tetos. De uma
coisa eu não duvido: certamente tanto a Prefeitura do Recife quanto a de São
Paulo devem saber com precisão e sem deixar margem para contestações, a
quantidade exata de imóveis que até o presente momento se encontram com o
pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) em atraso.
Pessoas que não têm como
pagar aluguel e nem financiar a aquisição de um imóvel que lhes sirva de moradia,
se sujeitam – isso, minha gente, se chama estratégia de sobrevivência, como eu costumo dizer – a construir barracos em morros periclitantes, em palafitas –
como as que existem no Recife -, sob viadutos e até invadir prédios
abandonados, quer sejam esses imóveis particulares, quer sejam eles
pertencentes aos governos municipal, estadual e federal. Porque o que importa é
atender a uma necessidade que acompanha a humanidade desde sempre; uma
necessidade, aliás, que grande parte dos animais também tem, porque é
necessário se abrigar das intempéries e se esconder dos inimigos e dos
predadores; é preciso ter um lugar onde se possa dormir, comer, enfim, temos
uma necessidade que eu diria até que é instintiva, de termos um abrigo, seja
ele uma caverna, uma palhoça, uma oca, um iglu ou um imponente Palácio da Alvorada. O déficit
habitacional no Brasil é algo que, a meu ver, é tão sério quanto a questão
igualmente premente da universalização do saneamento básico, duas frentes que,
reconheçamos, programas como o Minha Casa, Minha Vida buscam solucionar de
maneira muito tímida e vagarosa. E ao cidadão resta, como eu disse, se submeter
a estratégias de sobrevivência; estratégias essas que minam paulatinamente a
sua dignidade e que o expõe todo tempo a riscos irremediáveis.
Quanto à questão do descaso
para com a conservação do patrimônio edificado é sobejamente sabido pelos que
lidam com o tema – e, talvez, resida aí um dos empecilhos para que essa situação
tome outro relevo, porque esse assunto deveria estar disseminado no seio da
sociedade e não permanecer na esfera de ocupação e preocupação apenas de iniciados
– que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e os
seus congêneres em âmbito estadual e municipal não conseguem sozinhos deter a
sanha de destruição que está entranhada não somente na cabeça do magnata do
setor imobiliário que, por exemplo, quer erguer prédios e mais prédios em áreas
de preservação histórica, mas também na do proprietário de uma casinha
existente igualmente numa zona de conservação e que ele quer a todo custo botar
abaixo e/ou alterar completamente. Como foi dito em linhas atrás a Prefeitura
do Recife informou que o caso do prédio cujo telhado desabou está na Justiça
desde 2013, ou seja, já se passaram cinco anos sem que se tenha conseguido uma solução;
enquanto isso, os problemas só se agravam. E o que dizer do Edifício Wilton
Paes de Almeida, projeto do arquiteto Roger Zmekhol, inaugurado em 1969? Basta
que se diga que além de pertencer à União e ter sido abandonado por ela, o
imóvel de arquitetura modernista foi tombado em 1992 pelo Conselho Municipal de
Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São
Paulo (CONPRESP).
Os dois episódios que
examinamos aqui – o da Rua da Matriz, no Recife, e o da Rua Antônio de Godoy,
em São Paulo – evidenciaram também como estão
esquecidos e degradados os espaços de ocupação mais antiga de nossas
capitais, algo que eu já verifiquei de muito perto em João Pessoa, São Luís e
Salvador. E à medida que o abandono e a degradação se instalam, a cidade perde
dia a dia pontos e aspectos referenciais de sua história.
As cidades brasileiras de um
modo geral – as pequenas, médias e grandes, incluindo as capitais – enfrentam problemas
de toda ordem, como carência de saneamento básico, congestionamento do tráfego
de veículos, crescimento urbano desordenado, ineficiência no manejo com o lixo
produzido por seus habitantes, poluição do meio ambiente, especulação
imobiliária, falta de equipamentos culturais, déficit habitacional, etc. E, no
meio disso tudo, no emaranhado dessa série de deficiências e ameaças à
integridade das cidades, a discussão sobre a preservação do patrimônio
edificado para muita gente, lamentavelmente, soa como algo que não deve ser
realmente levado muito a sério dada a quantidade de urgências e necessidades a
ser atendidas.
É uma pena que seja assim. E
digo mais: é vergonhoso e ao mesmo tempo lamentável constatar que o grosso de
nossa população, dada a indigência da educação formal que recebe, não consiga
avaliar e por isso mesmo não parta em defesa do patrimônio histórico que este país
abriga. Infelizmente muito já se perdeu e outro tanto corre sério risco de ter
igual destino. Uma sociedade que é apegada somente às coisas do tempo presente
facilmente esquece o seu passado.
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