15 de setembro de 2018

Angela Gutierrez: presença iluminada

Por Clênio Sierra de Alcântara


                                         Especialmente para Raimundo Nonato Bezerra Silva


Foto: Veja BH    Trabalho e devoção: Angela Gutierrez é uma dessas pessoas maravilhosas e admiráveis que compreendem a necessidade de preservação da memória do nosso país e, para tanto, despendem tempo, dinheiro, esforço e dedicação para que as coisas realmente aconteçam. Muitos vivas para ela!!


Não recordo claramente quando e nem como – se lendo ou vendo televisão – eu tomei conhecimento, tempos atrás, que a senhora Angela Gutierrez, possuidora de um inestimável acervo de arte sacra e outros mais, intencionava destinar a pelo menos um museu os artefatos que durante muitos anos ela, junto com seu pai, colecionou e cuidou com imensa devoção, de modo que eles chegassem a um grande público. O que me vem  à lembrança com límpida clareza é que, naquele exato momento, ao ficar sabendo da bendita iniciativa, eu me senti por um instante pertencer a um país verdadeiramente de valor, onde existiam pessoas como a senhora Angela Gutierrez, que não somente pensavam em salvaguardar de algum modo a memória desta nação mas também levar os seus cidadãos a conhecer e a apreciar e, quem sabe, se sentir orgulhosos de poder fazer parte de uma realidade que visava à proteção de fragmentos do nosso passado.

Só eu sei do tanto de entusiasmo com que me abasteci ao planejar a minha primeira viagem a Minas Gerais a fim de preencher umas lacunas de minha formação intelectual. A vontade de saber pulsava dentro de mim dando, na verdade, pulos de euforia. Eu pretendia encontrar naquelas terras mais alguns pedaços de conhecimento que conferissem à minha vida um senso ainda maior de prazer e de satisfação, de responsabilidade e de confiança em todas as coisas em que eu acredito e avalio como sendo preciosas e necessárias para fazer da minha existência um rio sinuoso, nem sempre sereno, mas completo, porque sabe exatamente para onde vai seguir. E o que eu posso lhes dizer é que essencialmente tudo o que eu fui procurar ali eu encontrei, todas as expectativas para com o que realmente importava para mim foram atendidas.

Durante o planejamento da viagem, que aconteceu no mês de outubro do ano passado, eu estabelecera como um dos pontos fundamentais dessa, digamos assim, missão intelectual, só para fazer eco das viagens que os modernistas de São Paulo, o franco-suíço Blaise Cendrars e o meu conterrâneo, o poeta Manuel Bandeira, empreenderam por aquelas terras na primeira metade do século passado, que eu, em hipótese alguma, deixaria de visitar os três museus concebidos a partir do acervo constituído fundamentalmente por Flávio Gutierrez (1925-1984), um dos três fundadores do grupo Andrade Gutierrez, e por sua filha Angela Gutierrez – sobre cada uma das instituições eu escreverei noutra ocasião -: o Museu do Oratório, em Ouro Preto, aberto em 1998, no mesmo ano em que foi estabelecido o Instituto Cultural Flávio Gutierrez para promover projetos museológicos e programas culturais; o Museu de Artes e Ofícios, em Belo Horizonte, de 2005; e o Museu de Sant’Ana, em Tiradentes, cujas portas foram abertas para o público em 2014. E cumpri o meu roteiro direitinho, visitando cada um deles com a gana mesma de quem quer ver diante dos seus olhos a matéria concreta e palpável de algo que até um tempo atrás era somente concepção guardada no pensamento. Poxa, como tudo é bonito e grandioso. E, como eu escrevi no livro de impressões de um deles, tudo aquilo é um motivo de orgulho não só para os mineiros, particularmente, mas para todos os brasileiros, porque instituições como aquelas indiscutivelmente engrandecem o nosso status enquanto povo e enquanto nação.

Cheguei à cidade de Tiradentes numa manhã ensolarada e em meio a um burburinho daqueles, parecendo até que aquele pedacinho das Minas Gerais estava em festa. Após o almoço, no meio da tarde eu fui, juntamente com o meu companheiro no passeio, Raimundo Nonato, visitar o Museu de Sant’Ana sem sequer imaginar que iria experimentar ali a maior emoção que eu senti em toda a viagem, uma viagem que, além de Tiradentes, incluiu São João Del Rey, Congonhas, Mariana, Ouro Preto, Diamantina, Sabará e Belo Horizonte.

Enquanto ia parando para apreciar as peças me chegaram à lembrança as palavras de Angela Gutierrez de anos atrás explicando emocionada o porquê da coleção de imagens de Sant’Ana e de sua devoção; e então a minha imersão naquele lugar se deu por completa, porque eu senti que minha admiração pelos feitos da Angela não residiam tão somente no fato de ela ter arduamente conseguido conceber aquele e os outros museus e ela própria, ao longo do seu convívio com obras de arte sacra, ter se tornado uma restauradora dessas peças, por um instante o que me tocou profundamente foi me ver tomado pelo entendimento de que algo como aquele só poderia ter sido realizado por alguém que fez do ofício ao qual  se entregou uma verdadeira profissão de fé; profissão de fé essa estendida para com o cuidado de também estar à frente de publicações de relevo, como o belo livro de fotografias Alcântara: cantos do silêncio, sobre a histórica cidade do Maranhão, lançado sob sua coordenação e patrocínio da Construtora Andrade Gutierrez, em 1987, pela Spala Editora, do Rio de Janeiro, justa  e merecidamente dedicado ao Flávio Gutierrez, “parceiro da defesa de Alcântara e pioneiro de seu futuro” (p. 8) – um exemplar desse livro repousa na estante como uma das joias de minha biblioteca.

Mas tinha mais pela frente. Em dado momento uma das monitoras do museu abordou a mim e ao Nonato diante de uma coluna onde estava fixada a inscrição “Ausência iluminada”, explicando que atrás da coluna havia fones de ouvido para que pudéssemos acompanhar um depoimento da Angela Gutierrez com o qual ela esclarecia o porquê daquela “ausência”. Sentamos e começamos a ouvir a sua voz serena discorrer sobre um episódio em que ela contava quando, num certo dia em que foi avisada que um fazendeiro estava para vender tudo o que se encontrava na sede de sua fazenda, o que incluía uma imagem de Sant’Ana, ela, Angela, a devota que durante anos e anos, com um amor nascido desde a infância, passara a garimpar e buscar, aonde quer fosse, imagens da santa de sua devoção, se dirigiu para o lugar e num lance que eu classifico como  sendo de admirável e louvável desprendimento – quem é colecionador, como eu sou de certas coisas, sabe como é difícil conter o ímpeto para conseguir peças e exemplares dos objetos desejados e ambicionados, pelos quais, às vezes, movemos céus e terras – e, sobretudo, de respeito ao sentimento alheio, abriu mão de adquirir aquela peça da fazenda. Antes que o depoimento chegasse ao fim eu já estava me derramando em lágrimas, compenetrado em minha pequenez e me dando conta de que, em meu coração e em meu pensamento, Angela Gutierrez se alojara definitivamente para deles nunca mais sair.

Foi o iluminado Carlos Drummond de Andrade, tão mineiro quanto Angela Gutierrez – ele de Itabira e ela de Belo Horizonte – que no poema “Procurar o quê” escreveu essa sentença repleta do que eu diria ser uma instintiva esperança: “A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém. Há de ser invisível para todo mundo, menos para mim que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder”.

Cara Angela Gutierrez, se algum dia eu a encontrar pessoalmente e tiver a oportunidade de fazê-lo, lhe darei um daqueles abraços afetuosos que tanto quanto de afeto, carregam junto consigo carinho, agradecimento, satisfação, gratidão e muita, muita admiração e respeito que esse encontro de braços e corpos pode nos proporcionar, porque abraço, eu acredito, também pode ser um confortável abrigo.

Naquela tarde em Tiradentes, visitando aquele prédio que um dia já foi uma prisão, eu me vi sendo tomado por uma instigante e acalentadora sensação de liberdade.

Um comentário:

  1. A princípio, quero externar meus agradecimentos, pela oportunidade e honra que tive de presenciar grandes acervos colecionados por esta tão importante mulher, a Ângela Gutierrez. Por outro lado, agradecer a grande homenagem do autor Clênio Sierra de Alcânctara pelo carinho neste momento, tão triste pelo qual venho passando. A esta homenagem veio preencher e me fazer relembrar estes grandes momentos de tê-lo sua presença nesta experiência fantástica. Quanto a emoção que passamos, de fato foi e é inesquecível, em aprender que as vezes, se faz necessário abrir mão daquilo que o colecionador mais preza, a arte em seu seu valor inestimável, principalmente quando se trata da imagem de Sant'ana. Lembro como se fosse hoje a emoção dos olhos lacrimejantes deste autor e minha também, por que não dizer, ao ouvir esta grande mensagem feita por uma pessoa tão especial quanto aquela.Fica o aprendizado, a saudade . obrigado Clênio Sierra de Alcântara.
    Há ! quando lanceres o livro, não esqueça o meu.

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