13 de outubro de 2018

Feiras livres (17)

Por Clênio Sierra de Alcântara

                                              Fotos: Arquivo do Autor                                                      Entrada da feira livre de São Joaquim, que está mais para um grande mercado do que para feira livre

Comércio (Salvador – BA). De tanto vasculhar papéis e sítios da internet à procura da antiga feira livre de Água de Meninos eu acabei encontrando também informações a respeito da feira de São Joaquim, porque as histórias de ambas estão intrinsecamente ligadas, uma passou a existir porque a outra teve fim.

Localizada no bairro do Comércio, que faz parte da chamada Cidade Baixa, a feira livre de São Joaquim é uma atração à parte para a gente de fora que busca mais de Salvador, que quer ir além do Pelourinho, do Mercado Modelo e dos arredores do Farol da Barra que, também, claro, merecem e devem ser visitados, porque muito do que existe no terreiro soteropolitano é um convite à satisfação e ao prazer.









I

Foi vasculhando o blog História de Salvador – Cidades Baixa e Alta (www.salvadorcidadebaixa.blogspot.com) mantido durante muitos anos por um arguto e aguerrido Eduardo Gantois que eu comecei a conhecer e saber dos começos da feira livre de São Joaquim. Nos diversos textos sobre essa feira que ele postou no blog, além de nos contar que ela teve início depois que um incêndio – para muitos o sinistro foi criminoso – destruiu a de Água de Meninos, em 5 de setembro de 1964, e os seus feirantes começaram a ocupar a Enseada de São Joaquim, ele se põe a fazer descrições do local e a criticar a falta  de organização, a sujeira e a ocupação da área com moradias, não escondendo o seu desejo de que, algum dia, o poder público resolverá de uma vez por todas a situação dotando Salvador de um verdadeiro centro de abastecimento.

Na terça-feira 17 de novembro de 2009 e com o título “Feira de São Joaquim – 1ª parte”, Eduardo Gantois postou o primeiro de uma série de três artigos sobre a feira livre de São Joaquim. E nesse momento ele nos diz que a ocupação da enseada pelos feirantes se fez de forma desordenada “por vezes até pior que em Água de Meninos”. Comenta que novamente “os poderes competentes” perderam a oportunidade de construir na cidade um centro de abastecimento “realmente digno”, assim como fizera, na década de 1970, o prefeito José Falcão ao construir o de Feira de Santana. Eduardo Gantois reflete que talvez não seja propriamente por falta de interesse que a Municipalidade não construiu o tal centro de abastecimento e, sim, porque não tinha como se sobrepor aos interesses “muito mais poderosos” como os da Marinha e os das Docas da Bahia que, talvez, tivessem o propósito de, em algum momento, expandir o porto de Salvador. E comentou: “Se a Feira de São Joaquim, da mesma forma como foi o caso da Feira de Água de Meninos, concretizar-se como um ‘bem’ da cidade, algo realmente de peso urbanístico, ficará muito mais difícil a desapropriação. Como está, nem desapropriação terá”.








Ainda no dia 17 de novembro Eduardo Gantois postou o segundo artigo da série com o título “Feira de São Joaquim – 2”. Nesse post ele informou que a feira teve sua ocupação regulamentada em 12 de outubro de 1964 em um acordo assinado entre a Municipalidade, a Capitania dos Portos, a Companhia das Docas da Bahia (Codeba) e o Sindicato dos Feirantes – o Termo de Cessão previa a ocupação do terreno por trinta anos; ou seja, em 12 de outubro de 1994 a cessão findara. Escrevendo em 2009, o nosso informante além de nos lembrar do fim do tempo de cessão, comentou que, por coincidência ou não, nos últimos meses voltara-se a falar na ampliação do porto; e  que a Prefeitura desapropriou toda a área que vai de São Joaquim até as proximidades do Forte de Monte Serrat. “Sinceramente, não achamos que a medida seja uma iniciativa exclusiva da Prefeitura. É muita coisa para ela! Afirmamos até que, possivelmente, órgãos federais devam estar por trás da iniciativa de desapropriação”, disse ele, completando seu raciocínio afirmando que os tais órgãos federais não seriam outros senão àqueles que assinaram o acordo em 1964. Por outro lado, segundo ele, atuando contra essas forças, agitava-se um movimento que envolvia a Universidade Federal da Bahia, o Sindicato dos Engenheiros, a Fundação Cultural Palmares e até a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial com o objetivo de que a feira livre de São Joaquim fosse tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como sendo “um bem cultural de natureza imaterial”. Também se discutia o possível caráter turístico que a feira poderia ter, muito embora, ressaltou Eduardo Gantois, órgãos estaduais que foram consultados a propósito, afirmaram que a feira não era um produto turístico. E o próprio autor sentenciou: “É difícil indicar para turistas um local sem nenhuma segurança, higiene e ordenamento”. Até aquele momento a configuração da feira de São Joaquim era esta: dez quadras, vinte e duas ruas numa área de 100 mil metros quadrados, onde existiam cerca de cinco mil boxes e trabalhavam perto de oito mil feirantes –“Alguns parecem residir no local”, escreveu Gantois.













No dia 18 de novembro a série foi encerrada com o artigo “Feira de São Joaquim – 3”. Nesse artigo Eduardo Gantois comentou que quem lera os dois textos anteriores poderia ter pensado que ele era contra a feira livre de São Joaquim, o que não era verdade, porque ele a frequentava há muitos anos – ele contou, inclusive, que foi assaltado duas vezes lá. O que ocorria era que ele apontava coisas que considerava ser deficiências de infraestrutura da feira, como o fato de naquele tempo em que postara o artigo, ela apresentava só e somente só “um mísero sanitário”. “Outra coisa difícil de entender e aceitar é a feira-residência ou feira-condomínio. Não há estrutura para isto”, ele declarou. Na avaliação feita por Eduardo Gantois, a feira livre de São Joaquim por aqueles dias abastecia meia Salvador e apresentava preços bem mais em conta do que os encontrados nas grandes redes de supermercados da cidade. E para reforçar o seu incômodo diante das falhas e deficiências encontradas por ele ali, o incansável narrador encerrou o artigo reiterando o seu sonho de ver todo o cenário modificado: “De uma vez por todas queremos deixar bem claro, queremos uma Feira de São Joaquim como sendo um Centro de Abastecimento moderno. Coberto! Uma Cantareira baiana”, disse ele se referindo ao Mercado Municipal da Cantareira, em São Paulo, que ele mencionara já no primeiro artigo.

É relevante comentar aqui que a feira livre de São Joaquim não somente preencheu o vazio deixado pela de Água de Meninos, como também conseguiu manter o posto que a outra tinha como principal feira livre da capital baiana e, quiçá, de toda a Bahia. No artigo do dia 18 de novembro, Eduardo Gantois, um frequentador assíduo daquele centro comercial, anotou que, quando a Prefeitura instalou o elevador na Calçada, não fez isso pensando no comércio atacadista desse bairro, mas tão somente planejou criar um acesso fácil à feira para os moradores da Liberdade, “talvez o bairro mais populoso de Salvador”. Já Angela Ramalho Vianna, que escreveu o artigo “Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador” com base numa pesquisa de campo realizada nos meses de julho e agosto de 1976, registrou que Salvador contava com dois importantes centros de abastecimento de alimentos: a feira de São Joaquim e o Ceasa, aos quais se dirigiam as mais diferentes camadas da população:

Na primeira, comerciantes independentes alugam boxes ou barracas da Prefeitura, compram suas mercadorias diretamente dos produtores, encarregando-se do transporte, ou compram-nas dos caminhões que vêm diretamente das fontes produtoras (os intermediários são pessoas ou firmas particulares).

No Ceasa, os produtores dispõem de um armazém de estoque e de um “ponto” para vender por atacado (funcionando então como intermediários). Há uma feira livre no Ceasa, no próprio local do mercado, cujos preços são muito mais altos do que em qualquer outro local [...] (Angela Ramalho Vianna. “Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador. In Guaraci Adeodato Alves e Vilmar Faria [orgs.]. Bahia de todos os pobres. Petrópolis: Editora Vozes/CEBRAP, 1980. [Caderno CEBRAP nº 34], p. 191-192. O artigo completo vai da página 185 até 214).









Depois de um hiato de um ano e três meses, Eduardo Gantois tornou a escrever “sobre” a feira livre de São Joaquim. Sob o título “Igreja de Santo Antônio e a feira de São Joaquim”, o artigo publicado no dia 27 de fevereiro de 2011, na verdade, trata da antiga feira de Água de Meninos e traz uma explicação do autor sobre a origem desse nome. Quase um ano depois foi que, de fato, Eduardo Gantois voltou a tratar daquela feira ao postar, no dia 29 de janeiro de 2012, o artigo “Inicia-se a nova feira de São Joaquim”. Depois de, mais uma vez, contar a origem dessa feira, ele, lá pelas tantas, nos diz que, “no mês passado”, ou seja, em dezembro de 2011, fora inaugurado um espaço que já estavam chamando de “a nova Feira de São Joaquim”. E que espaço era esse? Eduardo Gantois nos conta que aproveitaram um galpão da Companhia das Docas da Bahia e transferiram para ele cerca de quinhentos feirantes; e que havia planos de uma reestruturação completa do local, englobando os demais feirantes, até o ano de 2014. A partir desse ponto, o narrador se põe a militar em defesa de construções que não dessem as costas para o mar e sim que o utilizassem como elemento decorativo; e, dizendo-se preocupado com a “confecção do projeto do restante da feira”, o qual, talvez, não contemplasse o seu anseio, ele não tece qualquer comentário a respeito da nova área de parte da feira, apesar de ter postado fotos do novo ambiente.










II

Na manhã do sábado dia 9 de dezembro de 2017, na minha segunda estada em Salvador, eu deixei o hostel onde me hospedara no dia anterior, no Pelourinho, e fui caminhando até a feira de São Joaquim para ir conhecê-la bem de perto.

Chamou a minha atenção, primeiramente, ver o nome Água de Meninos estampado numa parede, o que me fez pensar que, talvez, a própria Municipalidade tenha com isso buscado reavivar a lembrança da feira que um dia existiu naquela área. E, à medida que eu fui me aproximando do local da feira propriamente dita, senti certa frustração ao constatar que, assim como vem ocorrendo em outras cidades, a exemplo do Recife, também ali trataram de disciplinar, higienizar, normatizar, ordenar e, por assim dizer, prender a feira livre de São Joaquim. Aos meus olhos e segundo o meu entendimento, construir um grande galpão e dividi-lo em boxes é fazer, na verdade, um mercado e não propriamente conservar uma feira livre.







É muito nítida a separação entre a área reformada da feira e a que foi deixada de lado, como atestam esta e outras fotos aqui postas mostrando, entre outras coisas, o teto com telhas do tipo brasilit






Ao longo da Av. Engenheiro Oscar Pontes, que dá acesso à feira de São Joaquim, eu vi vários caminhões carregados de coco verde. Disseram-me que esse produto vem principalmente das cidades sergipanas de Estância e Lagarto.

Antes de entrar na feira tão conhecida, parei por um instante para tomar água de coco e recuperar o fôlego depois da longa caminhada até ali.








O lixo da discórdia: ora, e não é para mostrar?!




A feira é enorme, mas é, como eu disse, um mercado, um mercadão, conforme o planejamento da chamada modernização conferida pela reforma que, aliás, não foi concluída. O cenário do mar que ladeia o espaço comercial é bonito de se ver. Feia é a nítida separação entre o que se poderia chamar de “feira velha” e “feira nova”, que a reforma inconclusa deixou muito evidente. A área que ainda não foi “domesticada” e “higienizada”, digamos assim, é mais autêntica, porém, mesmo ela não é igual a uma feira livre que acontece num espaço sem paredes e a descoberto. Os feirantes que ficam do lado de fora do galpão, à margem da autopista – lá dentro certamente não há espaço para eles -, junto aos automóveis estacionados, são o que mais lembram as típicas feiras livres nordestinas, com seus produtos no mais das vezes arrumados no chão.

Comi um gostoso de bolo de carimã, enrolado em folha de bananeira, e comecei a percorrer a famigerada feira de São Joaquim mirando com atenção tudo o que os meus olhos curiosos focavam; e parando aqui e ali para fazer registros fotográficos.











Podemos dizer, como se costuma falar aqui no Nordeste, que a feira de São Joaquim “tem de um tudo”: legumes, frutas e verduras, ervas e temperos, carnes, peixes, crustáceos, utensílios domésticos, ferramentas, pastel de vento, roupas e calçados, azeite de dendê e uma infinidade de outras coisas.

Talvez mais do que em qualquer outro lugar do país, na Bahia, em geral, e em Salvador, em particular, as religiões de matriz africana demarcaram um espaço de muita intensidade no cotidiano das pessoas. E eu considero como uma das provas inequívocas dessa realidade, o fato de que, na feira de São Joaquim vários boxes serem ocupados com produtos que são muito procurados por adeptos dessas religiões. Naquela feira essas pessoas podem encontrar desde vestimentas, passando por ervas, ornamentos e instrumentos litúrgicos feitos de metal, animais vivos e toda sorte de coisas que dão um colorido muito vivo e expressivo a uma parte daquele centro comercial.













E por falar em animais vivos, caro leitor, eu senti um misto de espanto e de incômodo, ao me deparar com um espaço enorme que abrigava uma grande variedade de bichos: bodes, galos, galinhas, pombos, gansos, pavões, preás, codornas, coelhos, periquitos. Afastei-me dali sem querer fotografá-los. E me dirigi para ver os bares e restaurantes.

Atravessei a “feira nova” e a “feira velha” mais de uma vez. Um sujeito com cara de poucos amigos censurou o fato de eu estar fotografando uma área repleta de lixo na “feira velha”, dizendo a um seu conhecido: “Ó praí, o cara vem aqui e fica fotografando a sujeira da feira”. Eu deveria era ter me afastado deles sem dizer nada, porque nunca se sabe do que gente mal-humorada e grosseira é capaz de fazer àqueles que ousam lhes contrariar. Mas eu falei. Eu disse: “Eu fotografei porque quero mostrar que este lado da feira está abandonado”. E ele: “Vá, fotografe, pra você ganhar o seu dinheiro”. Não dei mais trela àquela criatura. E me ausentei daquele pedaço sem nem olhar para atrás.









Bolo de carimã (em rolinho), manuê, tapioca e pamonha: eta quanta coisa gostosa!





Quem assistiu ao filme Cidade Baixa, de 2005, obra do diretor Sérgio Machado protagonizada por Alice Braga, Lázaro Ramos e Wagner Moura, deve se lembrar que algumas de suas cenas se passaram na feira  de São Joaquim; na efervescente feira de São Joaquim que eu fui conhecer numa manhã de sábado de dezembro, um dia após eu ter presenciado parte dos festejos e dos louvores à Nossa Senhora da Conceição; na muito procurada feira de São Joaquim, então dividida entre uma “feira nova” e uma “feira velha” onde eu encontrei uma vendedora de artigos religiosos que, aparentando ser devota do Senhor do Bonfim, me disse esperançosa: “Bem, eles prometeram que iam reformar a outra parte também”. Axé, meus amigos, axé!

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