Por Clênio Sierra de Alcântara
Fotos: Arquivo do Autor Entrada da feira livre de São Joaquim, que está mais para um grande mercado do que para feira livre |
Comércio
(Salvador
– BA). De tanto vasculhar papéis e sítios da internet à procura da antiga feira
livre de Água de Meninos eu acabei encontrando também informações a respeito da
feira de São Joaquim, porque as histórias de ambas estão intrinsecamente
ligadas, uma passou a existir porque a outra teve fim.
Localizada no bairro do
Comércio, que faz parte da chamada Cidade Baixa, a feira livre de São Joaquim é
uma atração à parte para a gente de fora que busca mais de Salvador, que quer
ir além do Pelourinho, do Mercado Modelo e dos arredores do Farol da Barra que,
também, claro, merecem e devem ser visitados, porque muito do que existe no
terreiro soteropolitano é um convite à satisfação e ao prazer.
I
Foi vasculhando o blog História de Salvador – Cidades
Baixa e Alta (www.salvadorcidadebaixa.blogspot.com)
mantido durante muitos anos por um arguto e aguerrido Eduardo Gantois que eu
comecei a conhecer e saber dos começos da feira livre de São Joaquim. Nos
diversos textos sobre essa feira que ele postou no blog, além de nos contar que ela teve início depois que um incêndio
– para muitos o sinistro foi criminoso – destruiu a de Água de Meninos, em 5 de
setembro de 1964, e os seus feirantes começaram a ocupar a Enseada de São
Joaquim, ele se põe a fazer descrições do local e a criticar a falta de organização, a sujeira e a ocupação da
área com moradias, não escondendo o seu desejo de que, algum dia, o poder público
resolverá de uma vez por todas a situação dotando Salvador de um verdadeiro
centro de abastecimento.
Na terça-feira 17 de
novembro de 2009 e com o título “Feira de São Joaquim – 1ª parte”, Eduardo
Gantois postou o primeiro de uma série de três artigos sobre a feira livre de
São Joaquim. E nesse momento ele nos diz que a ocupação da enseada pelos
feirantes se fez de forma desordenada “por vezes até pior que em Água de
Meninos”. Comenta que novamente “os poderes competentes” perderam a
oportunidade de construir na cidade um centro de abastecimento “realmente
digno”, assim como fizera, na década de 1970, o prefeito José Falcão ao
construir o de Feira de Santana. Eduardo Gantois reflete que talvez não seja
propriamente por falta de interesse que a Municipalidade não construiu o tal
centro de abastecimento e, sim, porque não tinha como se sobrepor aos
interesses “muito mais poderosos” como os da Marinha e os das Docas da Bahia
que, talvez, tivessem o propósito de, em algum momento, expandir o porto de
Salvador. E comentou: “Se a Feira de São Joaquim, da mesma forma como foi o
caso da Feira de Água de Meninos, concretizar-se como um ‘bem’ da cidade, algo
realmente de peso urbanístico, ficará muito mais difícil a desapropriação. Como
está, nem desapropriação terá”.
Ainda no dia 17 de novembro
Eduardo Gantois postou o segundo artigo da série com o título “Feira de São
Joaquim – 2”. Nesse post ele informou
que a feira teve sua ocupação regulamentada em 12 de outubro de 1964 em um
acordo assinado entre a Municipalidade, a Capitania dos Portos, a Companhia das
Docas da Bahia (Codeba) e o Sindicato dos Feirantes – o Termo de Cessão previa
a ocupação do terreno por trinta anos; ou seja, em 12 de outubro de 1994 a
cessão findara. Escrevendo em 2009, o nosso informante além de nos lembrar do fim
do tempo de cessão, comentou que, por coincidência ou não, nos últimos meses
voltara-se a falar na ampliação do porto; e
que a Prefeitura desapropriou toda a área que vai de São Joaquim até as
proximidades do Forte de Monte Serrat. “Sinceramente, não achamos que a medida
seja uma iniciativa exclusiva da Prefeitura. É muita coisa para ela! Afirmamos
até que, possivelmente, órgãos federais devam estar por trás da iniciativa de
desapropriação”, disse ele, completando seu raciocínio afirmando que os tais
órgãos federais não seriam outros senão àqueles que assinaram o acordo em 1964.
Por outro lado, segundo ele, atuando contra essas forças, agitava-se um
movimento que envolvia a Universidade Federal da Bahia, o Sindicato dos Engenheiros,
a Fundação Cultural Palmares e até a Secretaria Nacional de Promoção da
Igualdade Racial com o objetivo de que a feira livre de São Joaquim fosse
tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
como sendo “um bem cultural de natureza imaterial”. Também se discutia o
possível caráter turístico que a feira poderia ter, muito embora, ressaltou
Eduardo Gantois, órgãos estaduais que foram consultados a propósito, afirmaram
que a feira não era um produto turístico. E o próprio autor sentenciou: “É
difícil indicar para turistas um local sem nenhuma segurança, higiene e
ordenamento”. Até aquele momento a configuração da feira de São Joaquim era
esta: dez quadras, vinte e duas ruas numa área de 100 mil metros quadrados,
onde existiam cerca de cinco mil boxes e trabalhavam perto de oito mil
feirantes –“Alguns parecem residir no local”, escreveu Gantois.
No dia 18 de novembro a
série foi encerrada com o artigo “Feira de São Joaquim – 3”. Nesse artigo
Eduardo Gantois comentou que quem lera os dois textos anteriores poderia ter
pensado que ele era contra a feira livre de São Joaquim, o que não era verdade,
porque ele a frequentava há muitos anos – ele contou, inclusive, que foi
assaltado duas vezes lá. O que ocorria era que ele apontava coisas que
considerava ser deficiências de infraestrutura da feira, como o fato de naquele
tempo em que postara o artigo, ela apresentava só e somente só “um mísero
sanitário”. “Outra coisa difícil de entender e aceitar é a feira-residência ou
feira-condomínio. Não há estrutura para isto”, ele declarou. Na avaliação feita
por Eduardo Gantois, a feira livre de São Joaquim por aqueles dias abastecia
meia Salvador e apresentava preços bem mais em conta do que os encontrados nas
grandes redes de supermercados da cidade. E para reforçar o seu incômodo diante
das falhas e deficiências encontradas por ele ali, o incansável narrador
encerrou o artigo reiterando o seu sonho de ver todo o cenário modificado: “De
uma vez por todas queremos deixar bem claro, queremos uma Feira de São Joaquim
como sendo um Centro de Abastecimento moderno. Coberto! Uma Cantareira baiana”,
disse ele se referindo ao Mercado Municipal da Cantareira, em São Paulo, que
ele mencionara já no primeiro artigo.
É relevante comentar aqui
que a feira livre de São Joaquim não somente preencheu o vazio deixado pela de
Água de Meninos, como também conseguiu manter o posto que a outra tinha como
principal feira livre da capital baiana e, quiçá, de toda a Bahia. No artigo do
dia 18 de novembro, Eduardo Gantois, um frequentador assíduo daquele centro
comercial, anotou que, quando a Prefeitura instalou o elevador na Calçada, não
fez isso pensando no comércio atacadista desse bairro, mas tão somente planejou
criar um acesso fácil à feira para os moradores da Liberdade, “talvez o bairro
mais populoso de Salvador”. Já Angela Ramalho Vianna, que escreveu o artigo
“Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador” com base numa
pesquisa de campo realizada nos meses de julho e agosto de 1976, registrou que
Salvador contava com dois importantes centros de abastecimento de alimentos: a
feira de São Joaquim e o Ceasa, aos quais se dirigiam as mais diferentes
camadas da população:
Na
primeira, comerciantes independentes alugam boxes ou barracas da Prefeitura,
compram suas mercadorias diretamente dos produtores, encarregando-se do
transporte, ou compram-nas dos caminhões que vêm diretamente das fontes
produtoras (os intermediários são pessoas ou firmas particulares).
No
Ceasa, os produtores dispõem de um armazém de estoque e de um “ponto” para
vender por atacado (funcionando então como intermediários). Há uma feira livre
no Ceasa, no próprio local do mercado, cujos preços são muito mais altos do que
em qualquer outro local [...] (Angela Ramalho Vianna.
“Estratégias de sobrevivência num bairro pobre de Salvador”. In Guaraci Adeodato Alves e Vilmar Faria [orgs.]. Bahia de todos os pobres. Petrópolis:
Editora Vozes/CEBRAP, 1980. [Caderno CEBRAP nº 34], p. 191-192. O artigo
completo vai da página 185 até 214).
Depois de um hiato de um ano
e três meses, Eduardo Gantois tornou a escrever “sobre” a feira livre de São
Joaquim. Sob o título “Igreja de Santo Antônio e a feira de São Joaquim”, o
artigo publicado no dia 27 de fevereiro de 2011, na verdade, trata da antiga
feira de Água de Meninos e traz uma explicação do autor sobre a origem desse
nome. Quase um ano depois foi que, de fato, Eduardo Gantois voltou a tratar
daquela feira ao postar, no dia 29 de janeiro de 2012, o artigo “Inicia-se a
nova feira de São Joaquim”. Depois de, mais uma vez, contar a origem dessa
feira, ele, lá pelas tantas, nos diz que, “no mês passado”, ou seja, em
dezembro de 2011, fora inaugurado um espaço que já estavam chamando de “a nova
Feira de São Joaquim”. E que espaço era esse? Eduardo Gantois nos conta que
aproveitaram um galpão da Companhia das Docas da Bahia e transferiram para ele
cerca de quinhentos feirantes; e que havia planos de uma reestruturação
completa do local, englobando os demais feirantes, até o ano de 2014. A partir
desse ponto, o narrador se põe a militar em defesa de construções que não
dessem as costas para o mar e sim que o utilizassem como elemento decorativo;
e, dizendo-se preocupado com a “confecção do projeto do restante da feira”, o
qual, talvez, não contemplasse o seu anseio, ele não tece qualquer comentário a
respeito da nova área de parte da feira, apesar de ter postado fotos do novo
ambiente.
II
Na manhã do sábado dia 9 de
dezembro de 2017, na minha segunda estada em Salvador, eu deixei o hostel onde
me hospedara no dia anterior, no Pelourinho, e fui caminhando até a feira de
São Joaquim para ir conhecê-la bem de perto.
Chamou a minha atenção,
primeiramente, ver o nome Água de Meninos estampado numa parede, o que me fez
pensar que, talvez, a própria Municipalidade tenha com isso buscado reavivar a
lembrança da feira que um dia existiu naquela área. E, à medida que eu fui me
aproximando do local da feira propriamente dita, senti certa frustração ao
constatar que, assim como vem ocorrendo em outras cidades, a exemplo do Recife,
também ali trataram de disciplinar, higienizar, normatizar, ordenar e, por
assim dizer, prender a feira livre de São Joaquim. Aos meus olhos e segundo o
meu entendimento, construir um grande galpão e dividi-lo em boxes é fazer, na
verdade, um mercado e não propriamente conservar uma feira livre.
É muito nítida a separação entre a área reformada da feira e a que foi deixada de lado, como atestam esta e outras fotos aqui postas mostrando, entre outras coisas, o teto com telhas do tipo brasilit |
Ao longo da Av. Engenheiro
Oscar Pontes, que dá acesso à feira de São Joaquim, eu vi vários caminhões
carregados de coco verde. Disseram-me que esse produto vem principalmente das
cidades sergipanas de Estância e Lagarto.
Antes de entrar na feira tão
conhecida, parei por um instante para tomar água de coco e recuperar o fôlego
depois da longa caminhada até ali.
O lixo da discórdia: ora, e não é para mostrar?! |
A feira é enorme, mas é,
como eu disse, um mercado, um mercadão, conforme o planejamento da chamada
modernização conferida pela reforma que, aliás, não foi concluída. O cenário do
mar que ladeia o espaço comercial é bonito de se ver. Feia é a nítida separação
entre o que se poderia chamar de “feira velha” e “feira nova”, que a reforma
inconclusa deixou muito evidente. A área que ainda não foi “domesticada” e
“higienizada”, digamos assim, é mais autêntica, porém, mesmo ela não é igual a
uma feira livre que acontece num espaço sem paredes e a descoberto. Os
feirantes que ficam do lado de fora do galpão, à margem da autopista – lá
dentro certamente não há espaço para eles -, junto aos automóveis estacionados,
são o que mais lembram as típicas feiras livres nordestinas, com seus produtos
no mais das vezes arrumados no chão.
Comi um gostoso de bolo de carimã, enrolado em folha de bananeira, e comecei a percorrer a famigerada feira de São
Joaquim mirando com atenção tudo o que os meus olhos curiosos focavam; e
parando aqui e ali para fazer registros fotográficos.
Podemos dizer, como se
costuma falar aqui no Nordeste, que a feira de São Joaquim “tem de um tudo”:
legumes, frutas e verduras, ervas e temperos, carnes, peixes, crustáceos,
utensílios domésticos, ferramentas, pastel de vento, roupas e calçados, azeite de
dendê e uma infinidade de outras coisas.
Talvez mais do que em
qualquer outro lugar do país, na Bahia, em geral, e em Salvador, em particular,
as religiões de matriz africana demarcaram um espaço de muita intensidade no
cotidiano das pessoas. E eu considero como uma das provas inequívocas dessa
realidade, o fato de que, na feira de São Joaquim vários boxes serem ocupados
com produtos que são muito procurados por adeptos dessas religiões. Naquela
feira essas pessoas podem encontrar desde vestimentas, passando por ervas,
ornamentos e instrumentos litúrgicos feitos de metal, animais vivos e toda
sorte de coisas que dão um colorido muito vivo e expressivo a uma parte daquele
centro comercial.
E por falar em animais
vivos, caro leitor, eu senti um misto de espanto e de incômodo, ao me deparar
com um espaço enorme que abrigava uma grande variedade de bichos: bodes, galos,
galinhas, pombos, gansos, pavões, preás, codornas, coelhos, periquitos.
Afastei-me dali sem querer fotografá-los. E me dirigi para ver os bares e
restaurantes.
Atravessei a “feira nova” e
a “feira velha” mais de uma vez. Um sujeito com cara de poucos amigos censurou
o fato de eu estar fotografando uma área repleta de lixo na “feira velha”,
dizendo a um seu conhecido: “Ó praí, o cara vem aqui e fica fotografando a
sujeira da feira”. Eu deveria era ter me afastado deles sem dizer nada, porque
nunca se sabe do que gente mal-humorada e grosseira é capaz de fazer àqueles
que ousam lhes contrariar. Mas eu falei. Eu disse: “Eu fotografei porque quero
mostrar que este lado da feira está abandonado”. E ele: “Vá, fotografe, pra
você ganhar o seu dinheiro”. Não dei mais trela àquela criatura. E me ausentei
daquele pedaço sem nem olhar para atrás.
Bolo de carimã (em rolinho), manuê, tapioca e pamonha: eta quanta coisa gostosa! |
Quem assistiu ao filme Cidade Baixa, de 2005, obra do diretor
Sérgio Machado protagonizada por Alice Braga, Lázaro Ramos e Wagner Moura, deve
se lembrar que algumas de suas cenas se passaram na feira de São Joaquim; na efervescente feira de São
Joaquim que eu fui conhecer numa manhã de sábado de dezembro, um dia após eu
ter presenciado parte dos festejos e dos louvores à Nossa Senhora da Conceição;
na muito procurada feira de São Joaquim, então dividida entre uma “feira nova”
e uma “feira velha” onde eu encontrei uma vendedora de artigos religiosos que,
aparentando ser devota do Senhor do Bonfim, me disse esperançosa: “Bem, eles
prometeram que iam reformar a outra parte também”. Axé, meus amigos, axé!
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