Por Clênio Sierra de
Alcântara
Foto: José de Holanda Na terra da garoa cirandar tem sido uma coisa muito boa para Lia de Itamaracá |
Eu acompanhei bem de perto a
decisão que, em fins do ano passado, a cirandeira Lia de Itamaracá e o seu
produtor Beto Hees tomaram de romper com a Fundação do Patrimônio Histórico e
Artístico de Pernambuco (Fundarpe) e ficar pelo menos um ano sem participar de
eventos promovidos e/ou organizados por aquela instituição. A decisão, que não
foi nada fácil de ser tomada, visto que, de certa forma significava perda de
visibilidade no já diminuto e escasso cenário no qual a Fundarpe vinha
inserindo Lia, teve como motivação o fato de essa grande representante da
cultura popular brasileira e não apenas pernambucana estar, naquela ocasião, há
quase doze meses sem receber cachês que lhe eram devidos por aquele órgão, como
se as contas que Lia devia tivessem prazo indefinido para serem pagas e como se
os compromissos assumidos por ela com inúmeras pessoas – entre as quais, claro,
os integrantes do seu conjunto – pudessem esperar o tempo que fosse para serem
honrados.
Por si só o atraso absurdo
para o recebimento de cachês já seria um grande motivo para que Lia tomasse a
decisão que tomou. A verdade inegável é que essa tomada de decisão veio no
encalço e no rastro de uma insatisfação quase que generalizada que ela vinha
sentindo – e em parte ainda sente – diante da constatação de que, do alto dos
seus mais de sessenta anos de uma vida dedicada, por vezes a duras penas, à
preservação, valorização e difusão do brinquedo ciranda, ela permanecesse tendo
de amargar a triste, vergonhosa e por que não dizer humilhante situação de ter
de sair por aí para cobrar o que lhe era devido.
Desde que o seu Centro
Cultural Estrela de Lia (CCEL), localizado na Praia de Jaguaribe, na ilha onde
ela mora, ruiu completamente em janeiro de 2014, dias antes de ela completar
setenta anos de vida, Lia vem batalhando para que ele ressurja inteiro naquela
paisagem, porque é ali que ela gosta de ver a ciranda acontecendo, junto de sua
comunidade e na terra onde ela nasceu e vive; tanto é assim que foi
essencialmente para isso que ela resolveu criar o Centro Cultural Estrela de
Lia há mais de dez anos atrás. De lá para cá a cirandeira e o seu produtor já
gastaram muita sola de sapato e de sandália e dinheiro andando de um lado para
outro a fim de conseguir licenças, autorizações e financiamento para a reconstrução
do CCEL. Neste meio tempo, o deputado estadual Guilherme Uchoa, falecido
recentemente e que era sogro do prefeito da Ilha de Itamamaracá Mosar Tato,
destinou uma emenda parlamentar de R$ 100.000,00 para o Centro Cultural; e esse
valor foi suficiente para erguer apenas o palhoção, faltando ainda saírem do
papel outras dependências, como palco, camarins e banheiros.
É sabido que existia uma
verba – outra emenda parlamentar do deputado Guilherme Uchoa, no valor de R$
250.000,00 (https:www.jusbrasil.com.br/diários/129627070/AL-pe-02-11-2016-pg-12?ref=net_button)
– destinada à retomada das obras do CCEL e que a Prefeitura da Ilha de
Itamaracá fez, inclusive, licitação para
escolher a empresa que iria conduzi-las, isso em novembro do ano passado
(https:/www.jusbrasil.com.br/diários/167959416/dousecao-3-13-11-2017-pg-194); a
Prefeitura chegou até a mandar pôr tapumes na área do CCEL, sem comunicar nada
a Lia e sinalizando que as obras dentro em pouco recomeçariam, mas até agora
nada. Ficou, na verdade, pior do que estava, porque, com os tapumes, Lia ficou
impedida de utilizar o espaço para suas cirandas. Como as reclamações de Lia quanto a isso não surtiram efeito junto à Prefeitura, ventos providenciais parecem que ouviram o clamor dela e trataram de pôr abaixo os tapumes; e à cirandeira restou apenas mandar fazer uma faxina na área, retirando o que restara do material que, em grande parte, já havia sido levado levado pela comunidade.
Agora a pergunta que não quer calar: que destino tomaram os recursos da emenda parlamentar de R$ 250.000,00 que seriam destinados às obras do CCEl e que motivaram a abertura de uma licitação? Será que a maresia, que corrói até ferro, corroeu também esse dinheiro? Nada disso. Os recursos que deveriam ser destinados à reconstrução do CCEL foram liberados em janeiro deste ano, ou seja, quando o nobre parlamentar Guilherme Uchoa ainda estava vivo, e foram empregados pela Prefeitura da Ilha de Itamaracá para efetuar quarenta e uma ordens de pagamento. Se não foi isso, creio que eu não soube ler e/ou interpretar os dados que encontrei na internet.
Agora a pergunta que não quer calar: que destino tomaram os recursos da emenda parlamentar de R$ 250.000,00 que seriam destinados às obras do CCEl e que motivaram a abertura de uma licitação? Será que a maresia, que corrói até ferro, corroeu também esse dinheiro? Nada disso. Os recursos que deveriam ser destinados à reconstrução do CCEL foram liberados em janeiro deste ano, ou seja, quando o nobre parlamentar Guilherme Uchoa ainda estava vivo, e foram empregados pela Prefeitura da Ilha de Itamaracá para efetuar quarenta e uma ordens de pagamento. Se não foi isso, creio que eu não soube ler e/ou interpretar os dados que encontrei na internet.
Nos discursos da Prefeitura
da Ilha de Itamaracá e do Governo do Estado, Lia é a rainha da ciranda, é isso
e aquilo, é a “rainha da cocada preta”, como a própria artista costuma dizer; e
em época de campanha eleitoral, então, ela é bastante cortejada para dar apoio
a fulano e a sicrano com a promessa de liberação de verbas para a reconstrução
do CCEL e de que tudo será diferente com a eleição deste e daquele candidato.
Querem mais uma prova de que tudo mudou para continuar da mesma forma que
estava? Como eu vinha dizendo, no discurso e no blá-blá-blá Lia é isso e
aquilo, mas na hora de contratar Lia e o seu conjunto a bichinha logo perde a
realeza, o valor e a importância; e tanto o Estado como a Prefeitura de
Itamaracá querem remunerá-la como se ela fosse uma ilustre desconhecida, uma
maria-ninguém, uma artista que está em começo de carreira e querendo aparecer e
que, para tanto, deve se sujeitar a receber uma ninharia, uma merreca qualquer sem
previsão de pagamento e dar-se por satisfeita. No último dia 7 de setembro a
grande estrela da chamada festa de Abertura de Verão de Itamaracá foi a cantora
Solange Almeida, que cobrou a bagatela de R$ 140.000,00 para se apresentar – só
ela, e ainda teve vários outros artistas. Lia não foi chamada para a tal festa.
Agora procurem saber quanto é que a Prefeitura paga à Anjinha do Coco, à
Totinha do Coco e à Lia de Itamaracá, senhoras mestras de seus brinquedos que
fazem parte do arcabouço artístico e cultural da Ilha de Itamaracá. Para que
vocês não tenham o trabalho de sair por aí procurando, eu vou logo lhes dizer:
a Prefeitura da Ilha de Itamaracá vem pagando à Lia - na pressão, porque eu
tenho quase certeza que a vontade dessa gente é de pagar bem menos - um cachê
de meros R$ 5.000,00, quase igual ao da Solange Almeida, não é? Fazendo uma
continha elementar chegamos a isto: Lia de Itamaracá precisaria se apresentar
vinte e oito vezes para conseguir obter o mesmo valor do cachê recebido por
Solange Almeida. Vocês podem enumerar uma série de razões para justificar o
fato de Solange Almeida receber um cachê maior do que o de Lia e explicar como
quiserem essa distorção porque isso, para mim, só tem um nome: injustiça.
Lia é detentora da Ordem do
Mérito Cultural, comenda conferida pelo Ministério da Cultura, e reconhecida
por lei como Patrimônio Vivo de Pernambuco. Contudo, tais reconhecimentos,
concedidos em 2004 e 2005, respectivamente, não a livraram até hoje de maus
bocados e nem de ser alvo da falta de respeito muitas vezes advindo do próprio
poder público que ora lhe estende a mão, ora lhe dá rasteiras. Ou vocês
concordam que alguém deve esperar quase um ano para receber um cachê? Ou vocês
acreditam que está mesmo havendo empenho para que o CCEL seja finalizado?
Outra verdade seja dita, Lia
é reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco, mas isso não significa dizer
que ela seja uma artista exclusiva de Pernambuco. Nada disso. Lia é uma artista
do Brasil. E digo mais: Lia é uma artista do mundo. E se aqui, em sua querida
terra natal, ela não tem andado bem cotada, em São Paulo, por exemplo, Lia só
tem feito brilhar. Eu diria até que, extraoficialmente, este 2018 está sendo o
Ano Lia de Itamaracá em São Paulo. E sabem por quê? Porque Lia esteve por lá
com toda pompa e circunstância de sua majestosa realeza, encantando e pondo o
público paulista para dançar e cantar ciranda seguidas vezes em meses recentes.
Duas apresentações ocorreram em junho: uma no Sesc Campinas, em Campinas; e
outra no Sesc 24 de Maio, na capital. No início de agosto Lia retornou a São Paulo, agora para
tomar parte num dos espetáculos em comemoração aos vinte anos do grupo A Barca.
E no último dia 22 de setembro lá estava Lia de novo na terra de Mario de
Andrade, desta vez para apresentar o seu show Ciranda de Ritmos no Sesc Santo André dentro da programação da
exposição (Re)inventar – Artistas
criadores.
E não custa acrescentar que
durante essas estadas em São Paulo, Lia e o seu conjunto, além dos shows,
tomaram parte também em vivências de ciranda e de outros ritmos pernambucanos
sempre contando com plateias significativas, e concederam entrevistas a uma
rádio, eventos esses amplamente divulgados pela imprensa, como atestou um
levantamento realizado pela Agência Frida dias atrás. E tem mais: a ilustre
representante da cultura popular protagonizou um ensaio fotográfico incrível posando
para as lentes de José de Holanda.
Lia de Itamaracá tem ido
frequentemente a São Paulo mostrar seu trabalho apurado em décadas de uma árdua
labuta. Lia de Itamaracá vive modesta e dignamente de sua aposentadoria como
merendeira e da pensão vitalícia que o título de Patrimônio Vivo lhe concedeu,
entrando os cachês que recebe de shows e outros eventos como ocasionais
suplementos de renda, visto que as apresentações ocorrem de tempos em tempos,
umas vezes mais, outras vezes menos. Lia de Itamaracá nunca que trocaria a sua
terra natal por qualquer outro lugar. Lia de Itamaracá tem sido uma verdadeira
sensação em São Paulo; e, enquanto ela é festejada e ovacionada no lado de lá,
a indiferença e o descaso para com ela e o seu Centro Cultural seguem reinando
no lado de cá.
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