5 de outubro de 2018

Lia de Itamaracá em São Paulo: enquanto ela brilha e é valorizada no lado de lá, a indiferença e o descaso para com ela e o seu Centro Cultural continuam reinando no lado de cá


Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: José de Holanda
Na terra da garoa cirandar tem sido uma coisa muito boa para Lia de Itamaracá


Eu acompanhei bem de perto a decisão que, em fins do ano passado, a cirandeira Lia de Itamaracá e o seu produtor Beto Hees tomaram de romper com a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) e ficar pelo menos um ano sem participar de eventos promovidos e/ou organizados por aquela instituição. A decisão, que não foi nada fácil de ser tomada, visto que, de certa forma significava perda de visibilidade no já diminuto e escasso cenário no qual a Fundarpe vinha inserindo Lia, teve como motivação o fato de essa grande representante da cultura popular brasileira e não apenas pernambucana estar, naquela ocasião, há quase doze meses sem receber cachês que lhe eram devidos por aquele órgão, como se as contas que Lia devia tivessem prazo indefinido para serem pagas e como se os compromissos assumidos por ela com inúmeras pessoas – entre as quais, claro, os integrantes do seu conjunto – pudessem esperar o tempo que fosse para serem honrados.

Por si só o atraso absurdo para o recebimento de cachês já seria um grande motivo para que Lia tomasse a decisão que tomou. A verdade inegável é que essa tomada de decisão veio no encalço e no rastro de uma insatisfação quase que generalizada que ela vinha sentindo – e em parte ainda sente – diante da constatação de que, do alto dos seus mais de sessenta anos de uma vida dedicada, por vezes a duras penas, à preservação, valorização e difusão do brinquedo ciranda, ela permanecesse tendo de amargar a triste, vergonhosa e por que não dizer humilhante situação de ter de sair por aí para cobrar o que lhe era devido.

Desde que o seu Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL), localizado na Praia de Jaguaribe, na ilha onde ela mora, ruiu completamente em janeiro de 2014, dias antes de ela completar setenta anos de vida, Lia vem batalhando para que ele ressurja inteiro naquela paisagem, porque é ali que ela gosta de ver a ciranda acontecendo, junto de sua comunidade e na terra onde ela nasceu e vive; tanto é assim que foi essencialmente para isso que ela resolveu criar o Centro Cultural Estrela de Lia há mais de dez anos atrás. De lá para cá a cirandeira e o seu produtor já gastaram muita sola de sapato e de sandália e dinheiro andando de um lado para outro a fim de conseguir licenças, autorizações e financiamento para a reconstrução do CCEL. Neste meio tempo, o deputado estadual Guilherme Uchoa, falecido recentemente e que era sogro do prefeito da Ilha de Itamamaracá Mosar Tato, destinou uma emenda parlamentar de R$ 100.000,00 para o Centro Cultural; e esse valor foi suficiente para erguer apenas o palhoção, faltando ainda saírem do papel outras dependências, como palco, camarins e banheiros.

É sabido que existia uma verba – outra emenda parlamentar do deputado Guilherme Uchoa, no valor de R$ 250.000,00 (https:www.jusbrasil.com.br/diários/129627070/AL-pe-02-11-2016-pg-12?ref=net_button) – destinada à retomada das obras do CCEL e que a Prefeitura da Ilha de Itamaracá  fez, inclusive, licitação para escolher a empresa que iria conduzi-las, isso em novembro do ano passado (https:/www.jusbrasil.com.br/diários/167959416/dousecao-3-13-11-2017-pg-194); a Prefeitura chegou até a mandar pôr tapumes na área do CCEL, sem comunicar nada a Lia e sinalizando que as obras dentro em pouco recomeçariam, mas até agora nada. Ficou, na verdade, pior do que estava, porque, com os tapumes, Lia ficou impedida de utilizar o espaço para suas cirandas. Como as reclamações de Lia quanto a isso não surtiram efeito junto à Prefeitura, ventos providenciais parecem que ouviram o clamor dela e trataram de pôr abaixo os tapumes; e à cirandeira restou apenas mandar fazer uma faxina na área, retirando o que restara do material que, em grande parte, já havia sido levado levado pela comunidade.

Agora a pergunta que não quer calar: que destino tomaram os recursos da emenda parlamentar de R$ 250.000,00 que seriam destinados às obras do CCEl e que motivaram a abertura de uma licitação? Será que a maresia, que corrói até ferro, corroeu também esse dinheiro? Nada disso. Os recursos que deveriam ser destinados à reconstrução do CCEL foram liberados em janeiro deste ano, ou seja, quando o nobre parlamentar Guilherme Uchoa ainda estava vivo, e foram empregados pela Prefeitura da Ilha de Itamaracá para efetuar quarenta e uma ordens de pagamento. Se não foi isso, creio que eu não soube ler e/ou interpretar os dados que encontrei na internet.

Nos discursos da Prefeitura da Ilha de Itamaracá e do Governo do Estado, Lia é a rainha da ciranda, é isso e aquilo, é a “rainha da cocada preta”, como a própria artista costuma dizer; e em época de campanha eleitoral, então, ela é bastante cortejada para dar apoio a fulano e a sicrano com a promessa de liberação de verbas para a reconstrução do CCEL e de que tudo será diferente com a eleição deste e daquele candidato. Querem mais uma prova de que tudo mudou para continuar da mesma forma que estava? Como eu vinha dizendo, no discurso e no blá-blá-blá Lia é isso e aquilo, mas na hora de contratar Lia e o seu conjunto a bichinha logo perde a realeza, o valor e a importância; e tanto o Estado como a Prefeitura de Itamaracá querem remunerá-la como se ela fosse uma ilustre desconhecida, uma maria-ninguém, uma artista que está em começo de carreira e querendo aparecer e que, para tanto, deve se sujeitar a receber uma ninharia, uma merreca qualquer sem previsão de pagamento e dar-se por satisfeita. No último dia 7 de setembro a grande estrela da chamada festa de Abertura de Verão de Itamaracá foi a cantora Solange Almeida, que cobrou a bagatela de R$ 140.000,00 para se apresentar – só ela, e ainda teve vários outros artistas. Lia não foi chamada para a tal festa. Agora procurem saber quanto é que a Prefeitura paga à Anjinha do Coco, à Totinha do Coco e à Lia de Itamaracá, senhoras mestras de seus brinquedos que fazem parte do arcabouço artístico e cultural da Ilha de Itamaracá. Para que vocês não tenham o trabalho de sair por aí procurando, eu vou logo lhes dizer: a Prefeitura da Ilha de Itamaracá vem pagando à Lia - na pressão, porque eu tenho quase certeza que a vontade dessa gente é de pagar bem menos - um cachê de meros R$ 5.000,00, quase igual ao da Solange Almeida, não é? Fazendo uma continha elementar chegamos a isto: Lia de Itamaracá precisaria se apresentar vinte e oito vezes para conseguir obter o mesmo valor do cachê recebido por Solange Almeida. Vocês podem enumerar uma série de razões para justificar o fato de Solange Almeida receber um cachê maior do que o de Lia e explicar como quiserem essa distorção porque isso, para mim, só tem um nome: injustiça.

Lia é detentora da Ordem do Mérito Cultural, comenda conferida pelo Ministério da Cultura, e reconhecida por lei como Patrimônio Vivo de Pernambuco. Contudo, tais reconhecimentos, concedidos em 2004 e 2005, respectivamente, não a livraram até hoje de maus bocados e nem de ser alvo da falta de respeito muitas vezes advindo do próprio poder público que ora lhe estende a mão, ora lhe dá rasteiras. Ou vocês concordam que alguém deve esperar quase um ano para receber um cachê? Ou vocês acreditam que está mesmo havendo empenho para que o CCEL seja finalizado?

Outra verdade seja dita, Lia é reconhecida como Patrimônio Vivo de Pernambuco, mas isso não significa dizer que ela seja uma artista exclusiva de Pernambuco. Nada disso. Lia é uma artista do Brasil. E digo mais: Lia é uma artista do mundo. E se aqui, em sua querida terra natal, ela não tem andado bem cotada, em São Paulo, por exemplo, Lia só tem feito brilhar. Eu diria até que, extraoficialmente, este 2018 está sendo o Ano Lia de Itamaracá em São Paulo. E sabem por quê? Porque Lia esteve por lá com toda pompa e circunstância de sua majestosa realeza, encantando e pondo o público paulista para dançar e cantar ciranda seguidas vezes em meses recentes. Duas apresentações ocorreram em junho: uma no Sesc Campinas, em Campinas; e outra no Sesc 24 de Maio, na capital. No início de agosto Lia retornou a São Paulo, agora para tomar parte num dos espetáculos em comemoração aos vinte anos do grupo A Barca. E no último dia 22 de setembro lá estava Lia de novo na terra de Mario de Andrade, desta vez para apresentar o seu show Ciranda de Ritmos no Sesc Santo André dentro da programação da exposição (Re)inventar – Artistas criadores.

E não custa acrescentar que durante essas estadas em São Paulo, Lia e o seu conjunto, além dos shows, tomaram parte também em vivências de ciranda e de outros ritmos pernambucanos sempre contando com plateias significativas, e concederam entrevistas a uma rádio, eventos esses amplamente divulgados pela imprensa, como atestou um levantamento realizado pela Agência Frida dias atrás. E tem mais: a ilustre representante da cultura popular protagonizou um ensaio fotográfico incrível posando para as lentes de José de Holanda.

Lia de Itamaracá tem ido frequentemente a São Paulo mostrar seu trabalho apurado em décadas de uma árdua labuta. Lia de Itamaracá vive modesta e dignamente de sua aposentadoria como merendeira e da pensão vitalícia que o título de Patrimônio Vivo lhe concedeu, entrando os cachês que recebe de shows e outros eventos como ocasionais suplementos de renda, visto que as apresentações ocorrem de tempos em tempos, umas vezes mais, outras vezes menos. Lia de Itamaracá nunca que trocaria a sua terra natal por qualquer outro lugar. Lia de Itamaracá tem sido uma verdadeira sensação em São Paulo; e, enquanto ela é festejada e ovacionada no lado de lá, a indiferença e o descaso para com ela e o seu Centro Cultural seguem reinando no lado de cá.

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