20 de outubro de 2018

Ruas com alma e identidade

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Arquivo do Autor
Dezenas de ruas do Recife ganharam placas de identificação que deram um colorido e um charme a muros e paredes onde foram fixadas


De um modo geral cada rua tem uma identidade própria. E isso não tem necessariamente que ver com o seu nome de batismo, porque, a bem da verdade, uma rua pode ser oficialmente chamada de Rua das Árvores e nela não haver árvore nenhuma – pelo menos não atualmente -; ou Av. Liberdade, como a que existe no bairro do Totó, no Recife, e que abriga um dos maiores complexos prisionais de Pernambuco. Querem outro exemplo curioso: no bairro de São José, também na capital pernambucana, existe uma Travessa de São Pedro que é popularmente conhecida – a placa, inclusive, apresenta os dois nomes – como Beco do Veado Branco. Mas, cargas-d’água, será que em tempos idos apareceu ou era visto por ali um veado branco? Será que se tratava de uma troça carnavalesca? Ou será que esse veado branco era, na realidade, um homossexual bastante conhecido na área?

É um fato indiscutível que normalmente o batismo oficial das ruas de uma cidade ocorre sem que os seus moradores sejam consultados; e, não raro, com nomes de pessoas que além de não serem conhecidas pelos habitantes do logradouro, nada dizem respeito à história daquele lugar. Daí por que muitas vezes os citadinos contrariam o batismo oficial que ignorou a tradição e o saber popular, e continuam a chamar a rua pelo nome que ela sempre teve, deixando de lado o que a Municipalidade estabeleceu e impôs.



Em dado trecho do poema “Evocação do Recife”, escrito por Manuel Bandeira sob encomenda de Gilberto Freyre para figurar no Livro do Nordeste, lançado em 1925, em comemoração aos cem anos de existência do Diario de Pernambuco e que depois apareceria na obra Libertinagem, de 1930, o ilustre e aclamado poeta pernambucano disse assim:


Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame Dr. Fulano de Tal) (Manuel Bandeira. “Evocação do Recife”. In Estrela da vida inteira. 20ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 134).

O próprio Gilberto Freyre, tão zeloso e defensor das tradições, escreveu a propósito dessa questão nas páginas do seu pioneiro Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, cuja edição princeps veio a lume em 1934:

O Recife começou a expandir-se em cidade com nomes de ruas e becos – Alecrim, Sol, Aurora, Saudade, Padre Inglês, Sarapatel, Peixe Frito, Cirigado, Encantamento, Livramento, Rosário – que mereciam ser eternos. Alguns entretanto têm sido substituídos por nomes de homens mais ou menos ilustres ou de datas mais ou menos gloriosas. Homenagens justas mas que deveriam realizar-se sem o sacrifício daqueles nomes impregnados de experiência recifense. Foi assim que a Rua dos Sete Pecados Mortais deixou assim de chamar-se para adquirir o rótulo oficial e, no caso, inexpressivo, de Rua Tobias Barreto (Gilberto Freyre. Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife. 5ª ed. São Paulo: Global, 2007, p. 46).




Carlos Drummond de Andrade, o mineiro de Itabira que versificava os pormenores do mundo, escreveu um poema que já no título traz a fixação da rua como parte da alma do passante. Em “A rua em mim”, do livro Menino antigo (Boitempo II), de 1973, ele passa e nos faz ver onze logradouros – isso, numa composição de dezessete versos apenas. Eis um trecho de sua caminhada:

Rua dos Monjolos, e me desfaço milho
pilhado lancinante em água.
Rua do Cascalho, arrastam meus despojos
feridos sempremente. Rua Major Laje,
salvai, parente velho, este menino
desintegrado (Carlos Drummond de Andrade. “A rua em mim”. In Nova reunião: 23 livros de poesia – volume 3. 3ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010, p. 37).

O cronista e dândi dos dândis brasileiros Paulo Barreto, que todos nós conhecemos mais como João do Rio – e ele usava outros pseudônimos – considerava a rua “um ser vivo e imóvel”; e dizia que as ruas “de todas as cidades” têm “vida e destinos iguais aos do homem” (João do Rio. “A rua”. In A alma encantadora das ruas. Raúl Antelo [org.]. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 53).

João do Rio adorava perambular pelas ruas porque era um verdadeiro flâneur, como o poeta francês Charles Baudelaire que no poema “O cisne”, dedicado a Victor Hugo, assim disse de sua cidade natal:

Paris mudou! porém minha melancolia
É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que socos (Charles Baudelaire. “O cisne”. In As flores do mal. Trad. Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 228).

Foi esse mesmo Charles Baudelaire cheio de lirismo que o filósofo alemão Walter Benjamim – outro praticante da flânerie – analisou num dos seus textos mais conhecidos. E é de Benjamim a descrição a seguir:

A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde após o trabalho, observa o ambiente (Walter Benjamin. “O flâneur”. In Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. Obras escolhidas III. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p. 35. O texto de “O flâneur” foi traduzido por José Carlos Martins Barbosa).

E é igualmente desse admirável Walter Benjamin esta "epígrafe" do conjunto de textos intitulado "Rua de mão única" que é, para mim, de uma agudeza poética impactante ao mesmo tempo que diz muito da essência deste meu breve escrito: "Esta rua chama-se Rua Asja Lacis, em homenagem àquele que, na qualidade de engenheiro, a rasgou dentro do autor" (Walter Benjamin. "Rua de mão única". In Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. Obras escolhidas II. 5ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 9. O conjunto de textos "Rua de mão única" foi traduzido por Rubens Rodrigues Torres Filho).




Eu cheguei até aqui com essas referências um tanto quanto eruditas a respeito das ruas para falar de um projeto que teve início em 2015 por iniciativa do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP), uma instituição fundada em 1862, cuja sede fica na Rua do Hospício, no bairro da Boa Vista, área central do Recife. O idealizador do projeto A história nas paredes, que consiste em fixar painéis de cerâmica em paredes e muros identificando não somente determinadas ruas, mas também dizer, em breves narrativas, quem é o personagem que batiza o logradouro e em alguns casos, identificar a origem dos lugares, foi o advogado Sílvio Amorim, sócio do IAHGP, que o lançou, como já foi dito, três anos atrás.

Medindo 80X60 centímetros, os painéis de azulejos estão presentes em mais de cem ruas, em vários bairros recifenses; e a meta, pelo menos até agora, é de que se chegue a duas centenas. Personalidades como o Conde da Boa Vista, o Cardeal Arcoverde e o estudante de Direito Demócrito de Souza Filho já constam na lista de contemplados. Os relatos biográficos têm sido escritos por membros do próprio IAHGP. O projeto conta com o apoio da Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer da Prefeitura do Recife e recebe patrocínio de empresas, pessoas físicas, profissionais liberais e parentes dos homenageados.

Muito boa iniciativa, não é? Além de sinalizar as ruas da cidade e embelezar muros e paredes, o projeto de certa forma estimula as pessoas a querer tomar parte nele. E não é demais dizer que, além de esclarecer quem era a pessoa que identifica determinada via e identificar a origem de lugares, o A história nas paredes também tem afixado painéis indicando o imóvel onde residiu determinados personagens ilustres, como foi o caso de Manuel de Carvalho Paes de Andrade, que morou num amplo sobrado na Rua do Imperador, no bairro de Santo Antônio.



No artigo “Boa Viagem e Ernesto de Paula Santos”, abrigado no livro O Recife revisitado, o meu saudoso amigo Edson Nery da Fonseca discorre de modo fragmentar a propósito do tempo em que morou numa casa alugada na Rua Ernesto de Paula Santos, no bairro de Boa Viagem, e sobre a ocasião em que, certa feita, perguntou a si mesmo quem era o tal do Ernesto. Antes de informar ao seu leitor que Ernesto de Paula Santos era um poeta, Edson nos contempla com uma narrativa onde ele revela não apenas o seu espírito de flâneur e um pendor para uma escrita que é, quase toda ela, alinhada com uma clareza e com uma erudição exuberantes, como também o seu gosto vital pela chama da poesia:

Sempre me pareceu que o simples nome de pessoas em ruas e praças era uma homenagem que devia ser completada por breve identificação: abolicionista, republicano, governador, prefeito, deputado, vereador, jornalista, educador, arquiteto, maestro, pianista, poeta, romancista, pintor, etc. Impressionava-me o poema no qual Mario de Andrade confessou: “Nesta Rua Lopes Chaves/Envelheço, e envergonhado/Nem sei quem foi Lopes Chaves” (Edson Nery da Fonseca. “Boa Viagem e Ernesto de Paula Santos”. In O Recife revisitado. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN, 2002, p. 33. Em tempo: o poema citado de Mario de Andrade não tem título e aparece na obra Lira paulistana, publicada em 1945, ano da morte do poeta; e Joaquim Lopes Chaves, nascido em 1833, em Jacareí, São Paulo, foi advogado e político).


Acredito que os bonitos e informativos painéis do projeto A história nas paredes seriam bastante elogiados por um homem da inteligência, do refinamento e do muito apego aos detalhes como o era Edson Nery da Fonseca, recifense nascido em 1921, que foi bibliotecário, professor e escritor; personalidade essa, aliás, cujo nome cairia bem em qualquer charmosa avenida com vista para o mar, uma das coisas que mais lhe encantava.

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