10 de novembro de 2018

A peleja da família de Abelardo contra a indiferença se prolongou até a última hora

Por Clênio Sierra de Alcântara
Fotos: Arquivo do Autor
Painel na Casa da Universitária Paraibana
Acolhido pela boa e respeitosa Paraíba, o acervo deixado por Abelardo da Hora será seguramente uma das atrações imperdíveis para quem for visitar João Pessoa


Quando a minha consciência frente às questões estéticas, de entendimento e apreciação das artes, começou a aflorar durante o tempo da formação acadêmica, um dos primeiros nomes que se impuseram sob o meu olhar foi o de Abelardo da Hora. O talento. A longevidade e a enormidade da obra. A pluralidade. O compromisso de fazer da expressão artística também um manifesto contra a miséria e as desigualdades sociais deixando de lado o conceito da “arte pela arte”. A permanência da instância da coerência na labuta diária. A clareza de entendimento de sua realidade mantida até os últimos anos de sua vida. A defesa de seu fazer artístico sem ceder a modismos. O bom trato e a exaltação do ser feminino. A coerência ideológica. Tudo isso fez com que eu me tornasse um apreciador da obra desse admirável Abelardo da Hora, que eu conheci primeiramente vendo-a exposta ao ar livre em diversos recantos do Recife, mas também em espaços de museus e galerias.

Um dos meus lamentos é de não ter tido o tino de ir visitá-lo em seu ateliê. Nunca me encontrei pessoalmente com Abelardo. Mas, talvez como modo de estar de alguma forma ao lado dele, eu me juntei às pessoas, parentes e admiradores, que conduziram o seu féretro no Cemitério de Santo Amaro, no Recife, na manhã do dia 24 de setembro de 2014.


Nesta e nas fotos seguintes, as musas voluptuosas do mestre pernambucano que se encontram na Estação Cabo Branco fazendo pose ao lado do prédio projeto por Oscar Niemeyer



Nos seus últimos anos de vida, Abelardo batalhou incansavelmente para ver construído no bairro da Boa Vista, área central da capital pernambucana, onde ele morava, um instituto em terreno por ele adquirido, que abrigasse sua obra e fosse, além disso, um lugar destinado a pesquisas, exposições, debates, enfim, um ambiente de efervescência artística e cultural. Infelizmente isso não aconteceu. E após o falecimento dele, seus filhos tentaram repassar o acervo completo deixado pelo pai para o Instituto Ricardo Brennand e não lograram êxito. Entendimentos outros foram feitos com o próprio Governo de Pernambuco e nada se concretizou. E eis que, na semana passada, veio a notícia de que a família do grande Abelardo da Hora doou o acervo ao estado da Paraíba, cujo Governo se comprometeu a fazer um memorial no Espaço Cultural José Lins do Rego para abrigá-lo.

Não sei de minúcias sobre os entendimentos e/ou desentendimentos havidos entre os herdeiros de Abelardo da Hora com o Governo de Pernambuco e com Instituto Ricardo Brennand. O fato é que nada mais há para se fazer a não ser lamentar que Pernambuco tenha feito essa desfeita para com o legado de um homem que foi um dos maiores nomes das artes de todo o século XX não só de Pernambuco e do Nordeste, mas de todo o país. A obra vigorosa, crítica, pungente, denunciadora e sensual de Abelardo da Hora é, sem dúvida alguma, um marco dentro das representações artísticas em nossa sociedade; e atravessa um arco temporal que cobre várias décadas sem perder a essência de seu intento criador.

Devo-lhe dizer, leitor, que considero a Paraíba o meu segundo chão, porque há naquela terra parte do que fez brotar em mim o vínculo vital com as expressões artísticas que norteiam o meu caminhar. Contudo, eu não esperava que Pernambuco, a nação multicultural, fosse abrir mão do acervo de um dos seus filhos mais talentosos e comprometidos não somente com um apurado fazer artístico, bem como com a cidadania e a conscientização do indivíduo frente às ações de cerceamento da liberdade e, como já foi dito aqui, às desigualdades sociais.

A mim me pareceu que, ao deixar que a obra de Abelardo fosse acolhida pela boa e respeitosa Paraíba, o Governo de Pernambuco tenha primado por uma demonstração bastante clara e equivocada de desprezo e descaso para com o legado desse artista. Muito triste isso. Muito desrespeitoso até para com um cidadão que tanto fez pela arte e pela cultura pernambucana desde antes do seu engajamento no Movimento de Cultura Popular ao lado de personalidades como Miguel Arraes e Paulo Freire. E tal episódio inevitavelmente me fez recordar de outro, igualmente lamentável, ocorrido na década de 1970, quando o colecionador de arte sacra Abelardo Rodrigues tudo fez para que o seu acervo ficasse em Pernambuco e, quando ele faleceu, sua família destinou a coleção ao estado da Bahia, onde ela pode ser vista no Museu Abelardo Rodrigues, no bairro do Pelourinho, em Salvador.






Não é de hoje que a obra de Abelardo da Hora integra o patrimônio artístico e cultural da Paraíba. Na Casa da Universitária Paraibana (Residência Universitária Feminina), localizada na área central de João Pessoa, há um belo painel de sua autoria, pouco conhecido e datado de 1956 (o painel está na parede voltada para a Av. Dom Pedro II; a instituição fica na esquina dessa artéria com a Rua Diogo Velho); e nas áreas livres da Estação Cabo Branco, no bairro Cabo Branco, que já abrigou uma grande exposição de seus trabalhos, se exibem, cheias de si, seis esculturas de bronze, produzidas em 2011, de mulheres de curvas voluptuosas, uma das obsessões do pernambucano nascido em São Lourenço da Mata. E por falar em São Lourenço da Mata me aprece pertinente esta indagação: por que também essa cidade não lutou para ficar com as obras do filho famoso?
Mesmo considerando a ligação afetiva de Abelardo da Hora com a Paraíba, uma vez que sua esposa Margarida Lucena era paraibana da cidade de Guarabira, eu não me conformo com o fato de o acervo do ilustre artista pernambucano ter ido parar lá. Parece até que as autoridades governamentais de Pernambuco não são muito chegadas aos que se chamam Abelardo: a coleção do Rodrigues foi parar na Bahia; o Barbosa, vulgo Chacrinha, cujo centenário de nascimento foi completado no ano passado, passou em branca nuvem por aqui, sem comemoração; e agora o acervo do da Hora foi destinado à Paraíba.






Não sei dizer por que tem reinado neste Pernambuco tanta indiferença; indiferença que nem mesmo as lutas mais renhidas têm conseguido derrotar. Contudo, de minha parte, aonde quer que eu vá, eu digo dos verdadeiros valores de minha terra, destacando que pernambucano modesto nasce morto; e que Abelardo da Hora era/é certamente uma de nossas maiores glórias.

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