Foto: Divulgação Josué (Vinicius de Oliveira) e Dora (Fernanda Montenegro) no maravilhoso e inesquecível Central do Brasil, a obra-prima de Walter Salles |
I
Considero 1998 um ano
determinante de minha vida. Naquele ano tumultuado, como imagino que devem ter
sido e sempre serão as vésperas de um fim de século, eu, particularmente, vivia
numa roda-viva em que meus pensamentos a propósito de tantos assuntos, e até de
mim mesmo, pareciam estar dentro de um liquidificador, tamanha era a agitação
que me tomava. Na verdade, havia, habitava em mim certa perplexidade diante da
materialidade de algumas circunstâncias em que eu me via submerso.
Foi em 1998 que o Recife
fincou para todo o sempre em minha consciência a necessidade perene tanto de
sua procura como do entendimento de minha pessoa, no estrito sentido, neste
caso, de quem quer e busca se entender como fundamento para o alcance da
liberdade.
II
Eu jamais vou esquecer a
emoção que me invadiu e me tomou por completo quando assisti ao filme Central do Brasil pela primeira vez. E é
bem certo isso: se nós ainda conseguimos de algum modo nos emocionar, é porque
ainda não endurecemos por inteiro. E todo o caminho percorrido por Dora
(Fernanda Montenegro absoluta, plena e magnetizante) e Josué (Vinicius de
Oliveira, uma criança sendo revelada ao mundo da arte de modo tão intenso e
desafiador) em mim pulsava como ferida que parece que não vai cicatrizar nunca.
Mas não só isso; o país, o
Brasil que ali era mostrado, também me dizia do confronto com as existências
precárias que orbitavam o cotidiano do subúrbio onde eu morava. Veja-se que a
cidade e o campo ou o urbano e o rural exibidos no filme revelam realidades
massacrantes: pessoas que não sabem ler, jovens e velhos analfabetos, dão o tom
de miserabilidade social de um país arcaico. Na cidade, o trem superlotado; no
interior, a boleia de um caminhão transportando gente como se fosse gado. Como
tanto já vimos por aí, especialmente na literatura, embora em um ponto e outro
eles se equivalam, a cidade é apresentada como o espaço do mal e o mundo rural
como o do bem. Na cidade, que o filme apresenta em ambientes quase que só
fechados, reinam a indiferença, a marginalidade, o levar vantagem em tudo –
Dora engana as pessoas para as quais escreve cartas – e até o tráfico de
crianças; enquanto no mundo rural, a vida transcorre em lentidão, as pessoas
são religiosas por demais, veem-se planos abertos e até certa inocência como
numa simples brincadeira de trava-língua. Transcorridos vinte anos do
lançamento do filme, a miséria e a desigualdade social que assolam este país
continuam a exibir ao mundo a nossa gigantesca pequenez moral e ética que dá de
ombros para o bem comum.
No calor daquele momento, o
filme grandioso de Walter Salles era uma espécie de retrato do que
convulsionava a minha consciência de jovem um tanto quanto desorientado para
compreender instâncias do seu passado e que, talvez por isso, se via perdido e
mergulhado nas profundezas das noites recifenses.
III
Foi uma discussão feia,
pesada e muito aflitiva a que eu travei com minha mãe antes de reunir meus
troços e destroços, colocá-los numa camionete e me mudar para a casa da minha
avó Maria da Conceição. Eu rompera os laços com a minha mãe da pior maneira
possível, matando-a dentro de mim, cometendo um matricídio à medida que lançava
sobre ela a responsabilidade e a culpa
por todos os males que haviam me atingido até aquela etapa de minha existência.
Eu não queria mais saber dela. Eu não queria mais saber de nada daquela casa
onde ela passara a morar com meu irmão que era ainda criança. Tudo estava tão
escuro naqueles dias. Eu me via tão incapaz de acertar as contas com o meu
passado, que não atinava sequer para o fato de que uma crueldade e uma aspereza
e uma severidade e uma sequidão e uma ingratidão e uma indiferença imensamente
grandes estavam expondo ao mundo um Clênio Sierra de Alcântara muito diferente
do que até então se conhecera.
E esses sentimentos ruins me
enrijeceram de tal forma que eu fui paulatinamente me desprendendo e me
desapegando de pessoas que durante muito tempo estiveram presentes em minha vida,
como os meus padrinhos Aleixo e Maria Lúcia, e cortei os laços com eles assim,
sem dizer nada, sem dar explicações, sem manifestar insatisfações, sem dizer
adeus. Eu saí da vida dessas pessoas assim como quem morre.
IV
Ainda que eu me considere
órfão de pai – e espero que assim seja até o fim dos meus dias -, não foi com o
Josué com quem eu me identifiquei e sim com a Dora. Aquela sequidão, aquele
rancor, aquela rudeza, aquele amargor e aquela alma de pedra eram
características que definiam a minha pessoa, até porque, a busca empreendida
por Josué nunca nem ao menos passou pela minha cabeça realizar. O abandono
paterno – e eu, igualmente ao meu pai, sou acusado de uma paternidade
irresponsável -, não duvido disso, deve ter sido o causador de muitos infortúnios
que eu vivi e das muitas atrocidades que aconteceram comigo e que eu fui capaz
de em alguma medida replicar. Não demorei a perceber que, tal qual o meu pai,
eu não valia muita coisa – e ontem, como hoje, havia e há quem dissesse e diga que eu, na
verdade, não valia nem valho nada.
Quando pela primeira vez eu vi
Dora entrar no banheiro daquele restaurante, passar um batom nos lábios,
retornar à mesa, perceber que sua pretensa possibilidade de redenção e
felicidade, ainda que tardia, havia deixado ela para trás, levando-a a cair no
choro, eu também me vi ali e desabei em lágrimas. Para mim não há sequência em Central do Brasil que seja mais
arrebatadora, tocante, marcante e grandiloquente como expressão artística do
que essa.
Dora e Josué cruzam meio
país para chegar ao interior de Pernambuco à procura do pai que o menino nunca
viu. Sim, é uma viagem de expurgo e de repensar a vida para a professora
aposentada Dora, que tanto ensinou aos seus alunos sobre as coisas do mundo e
tanto demorou a compreender a si mesma dentro do seu universo particular.
V
Não foi nada fácil a
reaproximação com minha mãe, porque havia muito rancor em ambas as partes.
Passamos novamente a coabitar num mesmo lar, mas não de maneira harmoniosa.
Possessiva, autoritária e principalmente dominadora, minha mãe além de não
aceitar que eu já não era mais uma criança que ela podia controlar e que eu
tivesse vida própria, não suportou o meu enfrentamento e o meu grito de
libertação. Numa discussão muito mais feia, pesada e aflitiva do que a que
ocorrera anos atrás, eu passei a minha vida vivida ao lado dela a limpo,
expondo todas as minhas insatisfações, todos os meus rancores, todas as minhas
mágoas, todas as minhas frustrações. Deixei tudo às claras, pus todas as cartas
na mesa e todos os pontos nos is para que não restasse na cabeça dela mais
nenhuma dúvida quanto a pessoa em que eu resultei, quanto a minha natureza
sexual, quanto aos meus interesses, quanto a minha independência financeira e
de consciência e, sobretudo, quanto a minha liberdade. Rompemos relações
novamente. Posso dizer, sem dúvida alguma, que este rompimento marcou em
definitivo um momento de inflexão em minha vida, porque ele fez com que eu
enxergasse em mim uma enorme força de viver e uma convicção mais firme nas verdades nas
quais eu acreditava e que seriam responsáveis pelo alcance de certa paz interior que de uns tempos para cá passou a residir em mim. Reconciliei-me com minha mãe e, desde então, eu não tenho feito outra
coisa com relação a ela, que não seja buscar compreendê-la e protegê-la. Eu sou
parte dela; e isso para mim diz tudo.
Talvez a maior lição da vida seja esta: conseguir de alguma maneira se reerguer e se refazer após as intempéries.
Talvez a maior lição da vida seja esta: conseguir de alguma maneira se reerguer e se refazer após as intempéries.
VI
Quando eu vi na programação
da XI Janela Internacional de Cinema do
Recife que no sábado, 10 de novembro, iria ocorrer a exibição de Central do Brasil, celebrando os vinte
anos do seu lançamento, eu de pronto marquei na agenda o compromisso de estar
lá, no Cinema São Luiz, no coração de um Recife que me é tão caro, para ver
mais uma vez a obra-prima de Walter Salles.
Cheguei à capital
pernambucana pouco depois das 16:00 h; e tratei logo de comprar o meu ingresso
para a sessão anunciada para ter início às 18:50 h.
Dei uma volta nos arredores.
Conheci um ser encantador que lançou ainda mais cor àquele meu dia ao me
ofertar carinho, brilho nos olhos, serenidade, franqueza e outras dessas coisas
que, juntas, misturadas e bem dosadas nos dão muito prazer e tornam certos
encontros inesquecíveis. Jantei. E retornei ao cinema.
A fila estava enorme. Aderbal
Lima me telefonou para trocarmos figurinhas: gravei um áudio no qual eu lhe
disse dos sentimentos que me levaram até ali para rever Central do Brasil. E quando, enfim, eu me vi na plateia, com atraso
de mais de meia hora, ouvi Kleber Mendonça Filho pedir desculpas a todos
dizendo que houve problemas técnicos e, por isso, a sessão atrasou. Falou Kleber.
Falou Vinicius de Oliveira para um público numeroso e fervilhante. Falou Walter
Salles em um depoimento gravado especialmente para aquele momento – depoimento que
nem chegou ao fim por alguma falha técnica. E teve início o filme.
Passaram-se vinte anos desde
o lançamento de Central do Brasil. Estar
naquela sessão foi uma espécie de revisão do que aconteceu na minha vida
durante todos esses anos. Foi, a bem da verdade, uma catarse para mim. As cenas
se desenrolavam na tela e, em par com elas, outras se passavam na minha cabeça,
rodando o filme do que foi a minha vida nessas duas décadas. Chorei quase que
durante toda a sessão. Senti saudades de minha avó, que faleceu em novembro do
ano passado. Pensei muito em minha mãe. E foi de algum modo libertador e reconfortante
me perceber de cabeça erguida e fortalecido depois de tudo de ruim que eu vivi
até aqui.
Central
do Brasil é para mim um clássico irretocável que eu hei de sempre
rever tomado de muita emoção. Diferentemente de Dora, eu não tenho saudade de
tudo, mas tenho saudade de muitas coisas.
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