16 de novembro de 2018

Revendo Central do Brasil vinte anos depois

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Divulgação
                  Josué (Vinicius de Oliveira) e Dora (Fernanda Montenegro) no maravilhoso e inesquecível Central do Brasil, a obra-prima de Walter Salles

I

Considero 1998 um ano determinante de minha vida. Naquele ano tumultuado, como imagino que devem ter sido e sempre serão as vésperas de um fim de século, eu, particularmente, vivia numa roda-viva em que meus pensamentos a propósito de tantos assuntos, e até de mim mesmo, pareciam estar dentro de um liquidificador, tamanha era a agitação que me tomava. Na verdade, havia, habitava em mim certa perplexidade diante da materialidade de algumas circunstâncias em que eu me via submerso.

Foi em 1998 que o Recife fincou para todo o sempre em minha consciência a necessidade perene tanto de sua procura como do entendimento de minha pessoa, no estrito sentido, neste caso, de quem quer e busca se entender como fundamento para o alcance da liberdade.


II

Eu jamais vou esquecer a emoção que me invadiu e me tomou por completo quando assisti ao filme Central do Brasil pela primeira vez. E é bem certo isso: se nós ainda conseguimos de algum modo nos emocionar, é porque ainda não endurecemos por inteiro. E todo o caminho percorrido por Dora (Fernanda Montenegro absoluta, plena e magnetizante) e Josué (Vinicius de Oliveira, uma criança sendo revelada ao mundo da arte de modo tão intenso e desafiador) em mim pulsava como ferida que parece que não vai cicatrizar nunca.
Mas não só isso; o país, o Brasil que ali era mostrado, também me dizia do confronto com as existências precárias que orbitavam o cotidiano do subúrbio onde eu morava. Veja-se que a cidade e o campo ou o urbano e o rural exibidos no filme revelam realidades massacrantes: pessoas que não sabem ler, jovens e velhos analfabetos, dão o tom de miserabilidade social de um país arcaico. Na cidade, o trem superlotado; no interior, a boleia de um caminhão transportando gente como se fosse gado. Como tanto já vimos por aí, especialmente na literatura, embora em um ponto e outro eles se equivalam, a cidade é apresentada como o espaço do mal e o mundo rural como o do bem. Na cidade, que o filme apresenta em ambientes quase que só fechados, reinam a indiferença, a marginalidade, o levar vantagem em tudo – Dora engana as pessoas para as quais escreve cartas – e até o tráfico de crianças; enquanto no mundo rural, a vida transcorre em lentidão, as pessoas são religiosas por demais, veem-se planos abertos e até certa inocência como numa simples brincadeira de trava-língua. Transcorridos vinte anos do lançamento do filme, a miséria e a desigualdade social que assolam este país continuam a exibir ao mundo a nossa gigantesca pequenez moral e ética que dá de ombros para o bem comum.

No calor daquele momento, o filme grandioso de Walter Salles era uma espécie de retrato do que convulsionava a minha consciência de jovem um tanto quanto desorientado para compreender instâncias do seu passado e que, talvez por isso, se via perdido e mergulhado nas profundezas das noites recifenses.


III

Foi uma discussão feia, pesada e muito aflitiva a que eu travei com minha mãe antes de reunir meus troços e destroços, colocá-los numa camionete e me mudar para a casa da minha avó Maria da Conceição. Eu rompera os laços com a minha mãe da pior maneira possível, matando-a dentro de mim, cometendo um matricídio à medida que lançava sobre ela  a responsabilidade e a culpa por todos os males que haviam me atingido até aquela etapa de minha existência. Eu não queria mais saber dela. Eu não queria mais saber de nada daquela casa onde ela passara a morar com meu irmão que era ainda criança. Tudo estava tão escuro naqueles dias. Eu me via tão incapaz de acertar as contas com o meu passado, que não atinava sequer para o fato de que uma crueldade e uma aspereza e uma severidade e uma sequidão e uma ingratidão e uma indiferença imensamente grandes estavam expondo ao mundo um Clênio Sierra de Alcântara muito diferente do que até então se conhecera.

E esses sentimentos ruins me enrijeceram de tal forma que eu fui paulatinamente me desprendendo e me desapegando de pessoas que durante muito tempo estiveram presentes em minha vida, como os meus padrinhos Aleixo e Maria Lúcia, e cortei os laços com eles assim, sem dizer nada, sem dar explicações, sem manifestar insatisfações, sem dizer adeus. Eu saí da vida dessas pessoas assim como quem morre.


IV

Ainda que eu me considere órfão de pai – e espero que assim seja até o fim dos meus dias -, não foi com o Josué com quem eu me identifiquei e sim com a Dora. Aquela sequidão, aquele rancor, aquela rudeza, aquele amargor e aquela alma de pedra eram características que definiam a minha pessoa, até porque, a busca empreendida por Josué nunca nem ao menos passou pela minha cabeça realizar. O abandono paterno – e eu, igualmente ao meu pai, sou acusado de uma paternidade irresponsável -, não duvido disso, deve ter sido o causador de muitos infortúnios que eu vivi e das muitas atrocidades que aconteceram comigo e que eu fui capaz de em alguma medida replicar. Não demorei a perceber que, tal qual o meu pai, eu não valia muita coisa – e ontem, como hoje, havia e há quem dissesse e diga que eu, na verdade, não valia nem valho nada.

Quando pela primeira vez eu vi Dora entrar no banheiro daquele restaurante, passar um batom nos lábios, retornar à mesa, perceber que sua pretensa possibilidade de redenção e felicidade, ainda que tardia, havia deixado ela para trás, levando-a a cair no choro, eu também me vi ali e desabei em lágrimas. Para mim não há sequência em Central do Brasil que seja mais arrebatadora, tocante, marcante e grandiloquente como expressão artística do que essa.

Dora e Josué cruzam meio país para chegar ao interior de Pernambuco à procura do pai que o menino nunca viu. Sim, é uma viagem de expurgo e de repensar a vida para a professora aposentada Dora, que tanto ensinou aos seus alunos sobre as coisas do mundo e tanto demorou a compreender a si mesma dentro do seu universo particular.


V

Não foi nada fácil a reaproximação com minha mãe, porque havia muito rancor em ambas as partes. Passamos novamente a coabitar num mesmo lar, mas não de maneira harmoniosa. Possessiva, autoritária e principalmente dominadora, minha mãe além de não aceitar que eu já não era mais uma criança que ela podia controlar e que eu tivesse vida própria, não suportou o meu enfrentamento e o meu grito de libertação. Numa discussão muito mais feia, pesada e aflitiva do que a que ocorrera anos atrás, eu passei a minha vida vivida ao lado dela a limpo, expondo todas as minhas insatisfações, todos os meus rancores, todas as minhas mágoas, todas as minhas frustrações. Deixei tudo às claras, pus todas as cartas na mesa e todos os pontos nos is para que não restasse na cabeça dela mais nenhuma dúvida quanto a pessoa em que eu resultei, quanto a minha natureza sexual, quanto aos meus interesses, quanto a minha independência financeira e de consciência e, sobretudo, quanto a minha liberdade. Rompemos relações novamente. Posso dizer, sem dúvida alguma, que este rompimento marcou em definitivo um momento de inflexão em minha vida, porque ele fez com que eu enxergasse em mim uma enorme força de viver e uma convicção mais firme nas verdades nas quais eu acreditava e que seriam responsáveis pelo alcance de certa paz interior que de uns tempos para cá passou a residir em mim. Reconciliei-me com minha mãe e, desde então, eu não tenho feito outra coisa com relação a ela, que não seja buscar compreendê-la e protegê-la. Eu sou parte dela; e isso para mim diz tudo.

Talvez  a maior lição da vida seja esta: conseguir de alguma maneira se reerguer e se refazer após as intempéries.


VI

Quando eu vi na programação da XI Janela Internacional de Cinema do Recife que no sábado, 10 de novembro, iria ocorrer a exibição de Central do Brasil, celebrando os vinte anos do seu lançamento, eu de pronto marquei na agenda o compromisso de estar lá, no Cinema São Luiz, no coração de um Recife que me é tão caro, para ver mais uma vez a obra-prima de Walter Salles.

Cheguei à capital pernambucana pouco depois das 16:00 h; e tratei logo de comprar o meu ingresso para a sessão anunciada para ter início às 18:50 h.

Dei uma volta nos arredores. Conheci um ser encantador que lançou ainda mais cor àquele meu dia ao me ofertar carinho, brilho nos olhos, serenidade, franqueza e outras dessas coisas que, juntas, misturadas e bem dosadas nos dão muito prazer e tornam certos encontros inesquecíveis. Jantei. E retornei ao cinema.

A fila estava enorme. Aderbal Lima me telefonou para trocarmos figurinhas: gravei um áudio no qual eu lhe disse dos sentimentos que me levaram até ali para rever Central do Brasil. E quando, enfim, eu me vi na plateia, com atraso de mais de meia hora, ouvi Kleber Mendonça Filho pedir desculpas a todos dizendo que houve problemas técnicos e, por isso, a sessão atrasou. Falou Kleber. Falou Vinicius de Oliveira para um público numeroso e fervilhante. Falou Walter Salles em um depoimento gravado especialmente para aquele momento – depoimento que nem chegou ao fim por alguma falha técnica. E teve início o filme.

Passaram-se vinte anos desde o lançamento de Central do Brasil. Estar naquela sessão foi uma espécie de revisão do que aconteceu na minha vida durante todos esses anos. Foi, a bem da verdade, uma catarse para mim. As cenas se desenrolavam na tela e, em par com elas, outras se passavam na minha cabeça, rodando o filme do que foi a minha vida nessas duas décadas. Chorei quase que durante toda a sessão. Senti saudades de minha avó, que faleceu em novembro do ano passado. Pensei muito em minha mãe. E foi de algum modo libertador e reconfortante me perceber de cabeça erguida e fortalecido depois de tudo de ruim que eu vivi até aqui.

Central do Brasil é para mim um clássico irretocável que eu hei de sempre rever tomado de muita emoção. Diferentemente de Dora, eu não tenho saudade de tudo, mas tenho saudade de muitas coisas.

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