Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende.
Primeiros erros. Kiko Zambianchi
Experimente
ser o que é e sentir o que sente. Habitualmente, em virtude de um
sem-número de razões e circunstâncias – regras de comportamento e de conduta,
crenças religiosas não necessariamente pessoais, nível socioeconômico, educação
familiar, relamentos, medo, etc. – nós somos levados a desempenhar papéis, a
tomar atitudes, a agir e a falar sem que, necessariamente, estejamos
expressando o que realmente pensamos a respeito disso e daquilo, sem que
digamos do que verdadeiramente gostamos e queremos, enfim, sem revelar o que,
na verdade, somos e sentimos.
Esse exercício de negação de
nossa natureza existencial costuma, no mais das vezes, fazer com que
paulatinamente não apenas adiemos a possibilidade de, de algum modo, termos uma
existência plena no sentido de poder viver sem as amarras de conceitos e
receitas prontas de vida, mas também faz com que, dia após dia, sigamos como
que acumulando, compulsoriamente, dentro de nós, insatisfações, queixas,
frustrações, aborrecimentos e tristezas, porque tudo ao redor de nós parece se
levantar contra a nossa individualidade, querendo que nos anulemos, que não
tenhamos gostos e vontades ou que os tenhamos desde que sejam gostos e vontades
alinhados e/ou iguais aos que sentem fulano, beltrano e sicrano, para não dizer
a maioria, como se, obrigatoriamente, devêssemos fazer parte da maioria,
seguindo no meio da manada, na direção que ela for.
Eu disse aqui do que chamei
de “exercício de negação de nossa natureza existencial” e deixei de mencionar –
e farei isso agora – as duas condições que eu entendo que são basilares para
esse se deixar levar no meio da manada: a falta de autocompreensão; e a não
autoaceitação de ser o que se é e de sentir o que se sente. Creio que seja muito difícil alguém
ter consciência de si e de reconhecer a pessoa que é, sem atentar para uma
consciência de mundo, porque cada um de nós é parte de um todo e esse todo não
é homogêneo. E, uma vez que nos falte a autocompreensão e a autoaceitação,
tendemos inexoravelmente a nos prender à ordem de um discurso que diz que temos
de ser assim e não de outro jeito, que temos de acreditar nisso e não naquilo,
e a toada segue nesse ritmo de dominação. E a fala e a postura dominantes têm
um peso descomunal quando são aceitas de maneira inquestionável, porque elas
fazem com que sejamos apenas um número com o qual se calcula a porcentagem
daqueles que fazem parte de uma pretensa realidade perfeita. E aí, caro leitor,
não há autopiedade e nem autoengano algum que consigam fazer dissipar a enorme
frustração, o permanente incômodo e a tamanha infelicidade que em nós farão
morada enquanto vida tivermos.
Aqui e ali eu encontro
pessoas que me dizem conseguir desempenhar papéis duplos na vida – e eu
não estou me restringindo aos que mantêm vida sexual dupla, seja o marido que
transa com homens e é casado com mulher, seja a esposa que mantém encontros
sexuais com mulheres e é casada com homem, sem conhecimento do cônjuge – e eu fico espantado com isso,
porque eu não consigo e nem passa pela minha cabeça sequer me imaginar agindo
desse modo. Eu não tenho estrutura para tanto. Eu desaprendi a negar o que eu
sou e o que eu sinto. Eu não mais dissimulo os meus sentimentos. Eu me recuso a
suportar a dor em silêncio. Eu não falo que gosto daquilo que eu não gosto só
para posar de “gentil” e de “educado”. Eu não mais digo que “está tudo bem”
enquanto uma coisa me corrói por dentro. Eu deixei de fazer contenção de choro.
E eu não convido mais a tristeza para ela vir me visitar, porque eu sei, eu
aprendi que uma hora ela vem, que uma hora ela chega, ainda que não tenha sido
convidada.
Muitos, muitos mesmo
acreditam que estão inteiramente seguros – e salvos – por se posicionarem no
meio da manada, ainda que essa tal suposta segurança – e salvação – cobre deles
a negação de suas individualidades e arranque deles toda e qualquer, mínima ou
grande, pretensão de existir plenamente e de algum modo ser e/ou estar satisfeitos
e/ou felizes sendo o que eles na verdade são e sentindo o que na realidade eles
sentem. E ser o que se é e sentir o que se sente exige de nós rebelião,
insubordinação e insubmissão, forças essa que os membros da manada de todas as
formas sempre procurarão arrancar de nós.
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