Por Clênio Sierra de Alcântara
Imagem: Divulgação Um dos ícones da capital francesa, a Catedral de Notre-Dame há de ressurgir das cinzas para continuar atravessando os séculos imponente e magnífica |
Numa obra que é um
referencial nos estudos daquilo que se compreende e se defende como sendo um
monumento histórico, Alois Riegl esclarece que “todo monumento de arte, sem
exceção”, caracteriza-se por ser ao mesmo tempo um monumento histórico, uma vez
que ele representa “uma determinada escala na evolução das artes plásticas”; e
que, de forma inversa, “todo monumento histórico é também um monumento de arte”
(Alois Riegl. O culto moderno aos
monumentos: a sua essência e a sua origem. Trad. Werner Rothschild Davidsohn
e Anat Falbel. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 33).
Outro estudioso, o italiano
Giulio Carlo Argan, escreveu no clássico História
da arte como história da cidade que a obra de arte não tem para nós o mesmo
valor que tinha para o artista que a fez e para os homens da sua época: “A obra
é sempre a mesma, mas as consciências mudam” (Giulio Carlo Argan. História da
arte como história da cidade. Trad. Pier Luigi Cabra. 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. 25).
Foi pensando principalmente
nessas assertivas de Riegl e de Argan que, com os olhos marejados, eu assisti,
na última segunda-feira, às imagens do incêndio que devastou parte considerável
da Catedral de Notre-Dame, em Paris, um dos monumentos mais visitados e
conhecidos do mundo.
Já no capítulo inicial do
seu monumental estudo A cidade na
história, Lewis Mumford nos diz como, desde os seus princípios, os
aglomerados humanos que dariam origem a núcleos citadinos estiveram
acompanhados de um interesse e de uma necessidade de também agregar à ocupação um
espaço para os rituais fúnebres e sagrados: “Assim, antes mesmo que a cidade
seja um lugar de residência fixa, começa como um ponto de encontro aonde
periodicamente as pessoas voltam: o ímã precede o recipiente, e essa faculdade
de atrair os não–residentes para o intercurso e o estímulo espiritual, não
menos do que para o comércio, continua sendo um dos critérios essenciais da
cidade, testemunho do seu dinamismo inerente, em oposição à forma da aldeia
mais fixa e contida em si mesma, hostil ao forasteiro” (Lewis Mumford. A cidade na história: suas origens,
transformações e perspectivas. Trad. Neil R. da Silva. 4ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 16). Daí por que, desde a Antiguidade, os templos
religiosos surgiam nos lugares numa escala construtiva muito mais elevada do
que as dos prédios que pouco a pouco iam ocupando o seu entorno; porque o poder
espiritual e o sagrado deveriam estar acima de tudo e de todos; a escala
monumental expressa exatamente isso.
A construção da Catedral de
Notre-Dame teve início em 1163; e atravessou décadas até ser concluída. Com arquitetura
em estilo gótico, com suas quimeras e gárgulas e vitrais em rosácea, a
Notre-Dame, que saltou de um romance de Victor Hugo – Notre-Dame de Paris, que eu ainda não li – para os estúdios de Walt
Disney, onde inspirou o desenho animado O
corcunda de Notre-Dame, lançado em 1996, que contribuiu ainda mais para
fazer do monumento francês um ícone pop, sobreviveu às obras de reconstrução de
uma Paris castigada pelas guerras religiosas e o sítio de Henrique IV – de 1589
a 1594 -, o novo rei que, nos quinze anos seguintes, iniciou um amplo programa
de obras públicas; às investidas destruidoras dos insurretos da Revolução
Francesa, a partir de 1789; e até à ação levada a cabo por Georges-Eugène
Haussmann que, na condição de prefeito da capital francesa, pôs meia Paris
abaixo, a partir de 1853, para abrir 95 quilômetros de novas ruas e fazer
desaparecer 50 quilômetros de ruas antigas: “Nenhuma cidade europeia se
transforma de maneira tão completa e coerente como Paris”, avaliou assim outro
estudioso italiano a Era Haussmanniana (Leonardo Benevolo. História da cidade. Trad. Silvia Mazza. 3ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003, p. 607). Por incrível que pareça, a Catedral de Notre-Dame sobreviveu
também à haussmannização que, como uma epidemia, se alastrou por várias partes
do mundo provocando, inclusive, o desaparecimento de monumentos e casarios
antigos em cidades como o Rio de Janeiro e o Recife nas primeiras décadas do
século XX.
Os que estão na lida diária
de alguma maneira lutando pela preservação e conservação do patrimônio
histórico edificado sabemos que não são poucos os inimigos das políticas e das ações
de salvaguarda de tais edificações. Ao lado da falta de verbas e da inépcia do
poder público frente ao embate permanente – sim, porque preservar e conservar
um patrimônio edificado exige vigilância constante – de proteção aos monumentos
se postam a indiferença de parte da sociedade, o comportamento daninho de
muitos moradores de sítios históricos que não aceitam as determinações impostas
por lei pelos órgãos de preservação, as ideologias políticas e as crenças religiosas
que concorrem para destruir os patrimônios, como fazem os membros do grupo
terrorista Estado Islâmico, que chegaram mesmo a comemorar o sinistro que
acometeu a Catedral de Notre-Dame, e a ação de vândalos e desocupados que de
maneira criminosa atacam as edificações, sejam elas religiosas ou civis – tudo leva
a crer que foram pessoas dessa laia que atearam fogo numa das portas da Igreja
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Ouro Preto, Minas Gerais, no
último dia 11 de março, e que incendiaram, na madrugada de hoje, a Igreja
Matriz do Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Monte Santo, na Bahia.
Afora a comemoração estúpida
expressada pelo Estado Islâmico, o que se viu foi uma comoção quase que geral
de pessoas ao redor do mundo lamentando a tragédia que atingiu a Catedral de
Notre-Dame que, diga-se de passagem, estava passando por uma ampla ação de
restauro. Grandes empresários, a própria Walt Disney Animation e gente muito
rica como Lily Safra, que é brasileira, anunciaram a doação de milhões de
dólares para que a Notre-Dame seja restaurada. Esses anúncios de doação de
recursos financeiros e a procissão do povo francês no entorno da catedral, foi
algo que me emocionou muitíssimo, porque, até então, eu nunca vira uma
mobilização de tal magnitude que unisse uma corrente de pesar à outra, de
solidariedade, visando ao restabelecimento de um patrimônio histórico
edificado. O Museu Nacional, que foi consumido pelo fogo no ano passado, até onde eu sei, não recebeu nem sequer dois milhões de reais de doações até agora para a sua restauração.
Daqui a alguns anos a
Catedral de Notre-Dame voltará a abrir as suas portas para receber novamente as
multidões de Victor Hugos e de Quasímodos que não se cansam de lutar por sua
exaltação e, sobretudo, por sua preservação ao longo de mais de oito séculos.
É sabido do descaso que o poder público tem com o patrimônio histórico que existe no mundo. Entretanto, é sempre bom essa corrente do bem unida para resgatar a história e cultura do patrimônio, pena que com o museu nacional se tem pouca generosidade.
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