28 de junho de 2019

Não esperem que eles aceitem tudo o que lhes propõem ou Cultura popular não rima só com mendigar

Por Clênio Sierra de Alcântara

Fotos: Coletivo I Hate Flash
Bom, se não deu para cirandar no São João, aqui em Pernambuco, Lia de Itamaracá foi abrilhantar uma festa junina muito, muito concorrida lá no Rio de Janeiro. E foi bom que só, não foi, Lia?





As relações de força, material e simbólica, sempre lançaram as suas mãos pesadas sobre os fazedores da cultura popular neste país. O próprio escaninho em que eles são colocados por uma, digamos, cultura tida como mais elevada e/ou erudita, por si só revela que as relações de força, desde o princípio, estabelecem o lugar desses artistas dentro da hierarquia cultural na sociedade.

Num depoimento concedido em junho de 1976, no Recife, o dramaturgo e escritor Hermilo Borba Filho disse assim: “O que é mais importante? A preservação do folclore ou a barriga cheia? Enquanto os organismos culturais não compreenderem de uma vez por todas a importância da cultura popular, desvinculando-se mais das comemorações de datas de vultos chamados históricos, para cuidar da coisa viva, palpável, atuante, vai acontecendo isto: para comer, o agrupamento faz qualquer negócio”.

O referido depoimento prestado pelo famoso intelectual palmarense integra o livro Arte popular e dominação – O caso de Pernambuco (1961/77), escrito a seis mãos por Ivan Maurício, Marcos Cirano e Ricardo de Almeida, que foi publicado pela Editora Alternativa, da capital pernambucana, em 1978, e que se constitui no libelo mais contundente que eu até hoje li contra a, por assim dizer, exploração dos fazedores da cultura popular.

Sou levado a crer que a senhora Leda Alves, decana das esferas culturais e secretária de Cultura da cidade do Recife – e viúva de Hermilo Borba Filho –, jamais leu essa obra referencial para a compreensão da realidade massacrante vivenciada por inúmeros representantes daquele estrato cultural. Digo isso acreditando que, caso ela tivesse lido aquele livro, saberia quão tidos como ingênuos e facilmente enganáveis eram os artistas do povo nele retratados; e, uma vez sabendo disso, ela não teria se arvorado em dizer numa cerimônia havida no Centro Cultural Cais do Sertão, em abril do ano passado, promovida por um ainda existente Ministério da Cultura, que o que atrapalha a vida dos artistas da cultura popular são os seus “intermediários” – denominação essa que ela deu aos produtores. Bem, se ela leu o livro não entendeu nada; e se não o leu, que é o mais provável, ainda dá tempo de lê-lo - ouviu, Dona Leda Alves? -, porque a gente aprende até morrer. Leia-o e a senhora tomará conhecimento de que, transcorridos tantos anos, de alguma forma, as instituições de um modo quase geral – as públicas e as privadas – e muitos indivíduos sem-noção continuam insistindo em tratar e remunerar os representantes da cultura popular como se eles fossem o rebotalho do universo cultural da sociedade, enxergando-os como algo de pouco e/ou nenhum valor; e que, justamente por essa razão, devem ser pagos com qualquer tostão.


Vamos todos cirandar? Não vamos não, senhor!


Em que pese o fato de que, aqui em Pernambuco, a cultura popular seja a um só tempo exaltada como uma riqueza cultural e um produto turístico relevante, ela é, por outro lado, rebaixada na hora em que os seus fazedores e brincantes são convocados e contratados para tomar parte principalmente em eventos como o Carnaval e o São João. Durante esses ciclos – o carnavalesco e o junino – esses artistas entram nas grades de programação apenas como elementos exóticos, sabem? Como atrações que aparecem nos polos e nos arraiais somente para completar um quadro e, ao menos institucionalmente, confirmar que Pernambuco “valoriza as suas raízes culturais populares”. Acontece que essa propagandeada "valorização", na verdade, é  fake, é falsa, porque a esses artistas sempre são pagos os menores cachês.

Vistos de fora, por quem nada sabe do que rola nos bastidores desses eventos, as cores dos cartazes e os comerciais veiculados pela televisão realmente são encantadores e enchem os olhos de qualquer um. Mas quando se parte para ver de perto de que forma a coisa de fato é feita, aí, meu amigo, é que se toma conhecimento de que a cultura popular é uma espécie de primo pobre do espetáculo que é divulgado como sendo tão rico e grandioso, principalmente por conta das cotas de patrocínio que as empresas pagam para ter as suas marcas ligadas a ele.

Não posso falar por todos os artistas da cultura popular, mesmo porque eu não sou porta-voz de ninguém; aqui, neste meu espaço, eu escrevo sempre com o dever de ofício do pesquisador que, na realidade, eu sou. Dito isso, eu vou descrever neste artigo, caro leitor, um, apenas um caso, e, a partir dele, você tira as suas próprias conclusões sobre os aspectos que o integram. Decerto que há casos e casos; porém, aqui, tratarei de uma ocorrência que eu apurei.


Cadê tu, hein, Lia?!


Lia de Itamaracá, a nacional e internacionalmente conhecida cirandeira que é reconhecida por uma lei como um dos Patrimônios Vivos de Pernambuco, foi sondada pela Prefeitura do Recife para fazer duas apresentações durante o último Carnaval promovido pela Municipalidade: uma participação na pré-abertura, com os maracatuzeiros, na quinta-feira, no Marco Zero; e um show do conjunto completo dela no domingo, no Pátio de São Pedro. Ocorre que não houve acordo quanto ao pagamento dos cachês: a produção da artista pediu R$ 15.000,00 pela quinta-feira, considerando que aconteceriam dois ensaios – um na Rua da Moeda e outro no Marco Zero – e Lia teria de levar o naipe de sopros e o técnico de som, tendo de arcar, claro, com o transporte e a alimentação dessas pessoas, e R$ 25.000,00 pelo show do domingo. Acontece que, mesmo sabendo que a cirandeira tinha e tem como comprovar com notas fiscais o recebimento de cachês de R$ 37.000,00 e até de R$ 40.000,00, a proposta da Prefeitura do Recife foi de pagar respectivamente R$ 10.000,00 e R$ 15.000,00. Lia não fez nenhum muxoxo, mas recusou o que lhe foi proposto; e, assim, ficou de fora da festa.

Agora, no São João, a política de desvalorização do artista da cultura popular, que é mantida pela Prefeitura do Recife, quis repetir a dose junto à Lia de Itamaracá: ofereceu um cachê de R$ 15.000,00 por uma apresentação no dia 30, no Sítio da Trindade, acenando ainda com uma homenagem à cirandeira naquele tradicional arraial junino, como se homenagens pagassem contas e despesas e enchessem o bucho de alguém. E houve nova recusa: se não há uma linha justa de pagamento de cachês, não há ciranda, pelo menos não a ciranda de Lia de Itamaracá.


Por uma verdadeira política de valorização da cultura popular


A política de desvalorização dos artistas da cultura popular que se estabeleceu na Prefeitura do Recife – e, infelizmente, não só nela – é de tal modo imperiosa e pretensiosa, que os responsáveis pela programação dos grandes eventos que ela promove põem o nome do artista nos materiais de divulgação sem terem fechado com ele o valor que lhe pagarão. Desconfio que essa gente aja assim acreditando que o pobre, o desvalido, o esquecido e o menosprezado artista da cultura popular não é doido de recusar uma coisa dessa, afinal, artista da cultura popular que se preze está sempre vivendo à míngua e passando por necessidades.

Acontece que, de 2017 para cá, a cirandeira Lia de Itamaracá não tem se rendido mais a essa ação governamental cujos parâmetros de contratação de artistas não são comprometidos pela valorização dos representantes da cultura popular; ação essa que segue mantendo uma avaliação injusta e que acredita, por exemplo, como fez o Governo do Estado neste ano, que, contratando uma Anitta e um Alok, por sabe-se lá quantos mil reais, torna a festa mais atraente e vistosa para o público. Nada contra que se pague tantos e quantos a artistas como esses, se bem que eu creia que eles não acrescentam nada às festividades juninas; mas, por que não pagar um cachê digno aos artistas da cultura popular? Será que é porque os promotores desses eventos permanecem acreditando que – e eu aqui retomo as palavras do Hermilo Borba Filho -, “para comer, o agrupamento faz qualquer negócio”?

Não é assim que a banda deve tocar. Não é mesmo. Por isso, longe, muito longe de ser vista como uma demonstração de esnobismo, de desfeita e de cusparada no prato no qual já comeu, a atitude tomada pela cirandeira Lia de Itamaracá e pelo seu produtor Beto Hees deve ser avaliada como um posicionamento corajoso e inteiramente consciente de quem acredita que é preciso dar um basta nisso; e que é necessário combater esse estado de coisas. É uma postura de quem chega e diz que não quer mais ser tratado dessa forma e que, por esse motivo, se recusa terminantemente a aceitar o que lhe é imposto; e se rebela; e exige reconhecimento de valor; e põe a si mesmo como um ato de resistência e de protesto, ao mesmo tempo em que anseia que os seus pares, mestres e mestras, brincantes e fazedores da cultura popular engrossem o coro de reivindicação e exijam, assim como ela vem fazendo, que seja estabelecida uma verdadeira política de valorização da chamada cultura popular tanto na esfera pública quanto na iniciativa privada.


Prestígio versus retaliação

Gente, Lia de Itamaracá é uma senhora de 75 anos, possuidora de uma carreira consagrada e que não tem mais idade para sair por aí dizendo que tem valor e cobrando cachês que lhe devem, muito embora ela ainda seja forçada a fazer isso, porque o desrespeito para com ela continua na ordem do dia. Lia é ovacionada como uma das maiores expressões da cultura popular brasileira, porém, muitas vezes, somente no plano simbólico, porque na hora do vamos ver, na hora da bufunfa, na hora do dindin, na hora do faz-me rir, muitos ainda querem enxergá-la como uma negra amostrada que nunca que deveria ter saído da sua senzala. Acredito que foi por Lia ter ido à Prefeitura da Ilha de Itamaracá cobrar o cachê de um show, no mês passado, e por ela ter recorrido ao Ministério Público para que fosse feito um pedido de esclarecimento a essa mesma Municipalidade sobre a verba de R$ 250.000,00 que deveria ser empregada na reconstrução do Centro Cultural Estrela de Lia e que está empacada na estrutura burocrática da atual gestão, que ela acabou ficando de fora da programação dos festejos juninos havidos  na ilha onde mora. Retaliações como essa é o preço a pagar por quem se recusa, repito, a baixar a cabeça e a aceitar o que querem lhe impor. “Estamos exaustos, cansados de hipocrisia”, desabafou Beto Hees numa conversa que tivemos dias atrás.

Recentemente Lia de Itamaracá, Toinho, que é seu companheiro de vida e de palco, e Beto Hees foram ao Rio de Janeiro, com todas as despesas pagas – o que incluiu hospedagem num hotel em Copacabana – e um cachê de R$ 10.000,00, para que a cirandeira tomasse parte num concorrido arraial, somente para convidados, promovido pela cerveja Praya, que aconteceu no Alto da Boa Vista e que foi, não por acaso, batizado, vejam só, de Cyranda Festa Junina. Na ocasião, durante uma apresentação que não se prolongou por mais de vinte e cinco minutos, Lia foi acompanhada pelo Sexteto Sucupira, Júlia Vargas e Marcelo Mimoso. E, até onde eu sei, naquele arraial ela recebeu tratamento e reconhecimento condizentes com o status de grande artista que é. Simples assim, sem tirar nem pôr. Prestígio e respeito deveriam redundar sempre nisso.




Espia só, esse povo todo dançando ciranda. Mas não foi em Pernambuco, não,  foi lá no Rio de Janeiro. Êta arraiá porreta!!


Anteontem ocorreu a coletiva de imprensa da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte). Foi anunciado que os homenageados deste ano da feira, que terá início na quarta-feira que vem, no Centro de Convenções, em Olinda, serão a ciranda e três dos seus ícones: Lia de Itamaracá, Dona Duda e Mestre Baracho, já falecido, que será representado por suas filhas Biu e Dulce. A coletiva teve lugar no auditório do Centro de Artesanato de Pernambuco, no Recife Antigo. Na ocasião Lia de Itamaracá e Beto Hees disseram aos jornalistas que se o Governo do Estado não pagasse os cachês dos shows ocorridos no Carnaval, a cirandeira não iria nem dar as caras na Fenearte, que dirá se apresentar no palco no dia 13, como vai expresso na programação do evento. E não é que a cobrança feita em tom de boicote surtiu efeito?! Ou será que foi mera coincidência? O fato foi que ontem foram pagos dois dos três cachês que estavam devendo à Lia. Estão vendo a que nível o desrespeito ao artista da cultura popular chegou aqui em Pernambuco? E se eu lhe disser, leitor, que Lia já chegou a ficar oito meses esperando por pagamentos de cachês, você acredita?

Dizem os versos de uma muito conhecida canção que o artista “tem de ir aonde o povo está”. Sim, o artista tem de ir aonde o povo está, mas desde que, para chegar lá, ele receba o cachê que merece e que seja tratado com o respeito e com a dignidade que lhe são devidos. Lia de Itamaracá está aí, firme e decidida, a nos dizer que, seja no Carnaval, seja no São João, seja no que tempo que for, a cultura popular não rima só com mendigar, mas também com reivindicar, batalhar, cobrar, protestar, recusar, denunciar e não se calar, jamais se calar.

7 comentários:

  1. É uma vergonha o que fazem com a cultura do país esses governantes de barriga cheia. Enquanto isso, a cultura vive a mingua.a barbárie cultural principalmente irá entrar em um verdadeiro escarnicio com esse governo de jumentos adestrados e inconsequentes. Porém, independente de seu incentivo, para os amantes da cultura, sempre irá prevalecer a cultura, pois um país sem cultura é um país sem identidade. E viva lia curandeiros.

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  2. Muito bom, tudo que eu gostaria dizer, mas ainda melhor e com classe....

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  3. Muito importante esse desabafo denúncia. Me da uma tristeza ver ainda os artistas daqui abrindo show pra um artistas da "midia sucesso do momento"e serem tratados como um qualquer.

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  4. Parabéns pelo excelente texto!
    Sou Dario, sou presidente do Afoxé Afoxé Omô Nilê Ogunjá,Pernambuco, e nós sabemos muito bem o que acontece com a nossa mais estimada Cirandeira. Em 2016 nós nos recusamos a aceitar a proposta da prefeitura de pagar o mesmo cachê que nos últimos 04 carnavais do Recife. Interessante que, com a postura de Capitão do Mato, o produtor responsável nos chamos para prestarmos esclarecimentos sobre os motivos de nossa não participação. Pra nós ficiu claro o sentimento central do texto agora comentado por nós. Elea não aceitam nem a gente se negar, como se fosse certa a nossa fome e cede, o que nos obrigaria a participação. Contudo, aqui é também importatnte frisar que, ficamos de fora sustentando a proposta de valorização e não fomos acompanhado com o mesmo posicionamento por nenhum artista local.

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  5. A salvaguarda das culturas popular e tradicional está longe de ocorrer.

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