Por Clênio Sierra de Alcântara
Uma nação constantemente refundada
Quando recorro aos meus manuais de História do Brasil vejo sempre e sempre renovada, no meu entendimento, a compreensão de que os brasileiros estamos diuturnamente de alguma
maneira ansiando por uma refundação deste país, dada a má qualidade dos homens
e mulheres públicos que temos.
No estudo A formação das
almas: o imaginário da República no Brasil, o historiador mineiro José Murilo
de Carvalho nos revela como foram, por assim dizer, incansáveis os esforços para
transformar os principais participantes do 15 de novembro de 1889 em heróis do
novo regime. Sendo assim, personalidades como os marechais Deodoro da Fonseca e
Floriano Peixoto e o também militar Benjamin Constant foram os candidatos colocados na linha de frente para serem alçados ao posto. Como bem lembra José Murilo, herói que se
preze tem de ter, de algum modo, “a cara da nação”: “Tem de responder a alguma
necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de
comportamento que corresponda a um modelo coletivamente valorizado. Na ausência
de tal sintonia, o esforço de mitificação de figuras políticas resultará vão. Os
pretendidos heróis serão, na melhor das hipóteses, ignorados pela maioria e, na
pior, ridicularizados” (José Murilo de Carvalho. A formação das almas: o
imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.
55-56).
José Murilo nos diz ainda
que a busca de um herói acabou tendo êxito onde não imaginavam muitos dos
participantes da proclamação da República: “Diante das dificuldades em promover
os protagonistas do dia 15, quem aos poucos se revelou capaz de atender às
exigências da mitificação foi Tiradentes” (José Murilo de Carvalho. Op. cit.,
p. 57). E assim foi que, sob os fundamentos positivistas da República que se
proclamou em 1889 – o “Ordem e Progresso” do pavilhão nacional é uma divisa do
ideário de Auguste Comte –, aos poucos e decisivamente eles reabilitaram e
ressignificaram a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes,
personagem mais lembrado da Inconfidência Mineira ocorrida em 1789. Não bastasse
– e talvez por força da intenção de uma, digamos, sacralização – a iconografia
que o fixa com o perfil de um Cristo que é, também ele, idealizado, Tiradentes
foi elevado à categoria e ao status de herói mais representativo da pátria
brasileira.
Como eu vinha dizendo lá no
início, parece que se mantém no seio da sociedade brasileira – pelo menos na
parte da sociedade não corrompida, aquela que trabalha e vive honestamente e que não é alienada – um
anseio de que esta nação seja refundada; e que, junto com essa refundação, o
país se veja livre de toda essa gente corrupta, insensível e cafajeste que se
lança sobre a coisa pública como uma alcateia feroz e insaciável.
Não faz muito tempo a Rede
Globo tanto fez e aconteceu que acabou incutindo nas cabecinhas ocas de muitos
que o piloto Ayrton Senna é um herói brasileiro. Herói de que, minha gente?! O que
foi que de importante esse homem fez pelo país? Eu procuro e não vejo nada,
porque, para mim, corridas de automóveis e quetais se inserem num rol de
bestialidades humanas que incluem as rinhas de cães e de galos, a vaquejada, a
caça esportiva e essas lutas em ringues que viraram espetáculos televisivos
milionários.
E o movimento de “construção
de heróis” não cessa por aqui. Prova disso é que, transcorrido mais de um
século de sua morte, Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro,
visto por muitos – inclusive por aqueles republicanos que heroicizaram
Tiradentes – como símbolo do atraso e do que de pior existia neste país e não
como um homem que lutou contra as desigualdades sociais e econômicas e as
imposições de um Estado que desconhecia a realidade em que viviam os
cidadãos nos rincões da nação, teve o seu nome inscrito no Livro dos Heróis e
Heroínas da Pátria em maio passado (Diário Oficial da União. Lei nº 13.829/19,
de 14 de maio de 2019).
Mudança sem transformação
Dada a precariedade de
nossos fundamentos morais e éticos, que faz com que desejemos que a sociedade
seja beneficamente transformada sem que, por outro lado, nós assumamos e/ou contribuamos para
isso, agindo rotineiramente com honestidade e pensando no bem comum, a aparição
de um juiz que emergiu de um lamaçal onde impera tudo, menos uma Justiça real e
verdadeiramente justa, um juiz que conseguia mandar para o xilindró gente muito
endinheirada e, por isso, historicamente beneficiada pela Justiça injusta, que
aceita um sem-número de chicanas, foi como a chegada de um salvador da pátria,
um cidadão exercendo com rigor e valentia o seu papel, um indivíduo corajoso e determinado que fazia crer que este país tem jeito e que, dali para frente, tudo seria diferente, e que, a partir de então, o Brasil, como diria o jornalista
Boris Casoy, finalmente seria passado a limpo.
Tendo em vista isso, ao
julgar e condenar figuraças como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o
ex-deputado federal Eduardo Cunha, investigados no âmbito da Operação
Lava-jato, ainda em andamento, o senhor Sergio Moro foi saudado como um ícone,
um semideus da Justiça. E não demorou para que ele estampasse capas de jornais,
livros e revistas e começasse a receber homenagens até no exterior. Os brasileiros
dos dias atuais, enfim, tinham alguém realmente de bem no qual se espelhar e um "herói" para chamar de seu, porque Sergio Moro fazia valer, a olhos vistos, a
máxima latina que diz: dura lex, sed lex.
Tudo seguia nesses conformes
ainda que, aqui e ali, um e outro inconformado com a atuação de procuradores e
juízes esperneasse em público apontando supostos excessos cometidos por essas
autoridades na condução da Operação Lava-jato. O bando de inconformados, claro,
era a gentalha que queria continuar aprontando maracutaias e exercendo seus
podres poderes para encher suas burras e repartirem seus butins sem ser
incomodada, enquanto o brasileiro de bem só via todo o quadro socioeconômico ir
de mal a pior, ouvindo a cantilena de que faltavam recursos para investir na
saúde, na educação e na segurança pública, ao mesmo tempo em que os nobres
políticos, em conluio com empresários igualmente desonestos, torravam o
dinheiro dos pagadores de impostos.
Rumo ao xeque-mate
Tudo ia bem para além das
grades da República de Curitiba; e o céu parecia ser o limite para o senhor
Sergio Moro. Mas aí o "herói nacional" começou a se movimentar na esfera pública
dando demonstração de que ocupar a função de juiz federal já não lhe bastava. Gozando
de imensa popularidade num cenário em que esquerdopatas e direitopatas não
cessavam de digladiarem, o senhor Sergio Moro largou a toga de juiz federal
para assumir a pasta do Ministério da Justiça e da Segurança Pública do governo
do presidente Jair Bolsonaro.
Traçar metas profissionais com vistas a
alcançar o topo da carreira é do jogo, é algo natural que vai da ambição de
qualquer pessoa. Acontece que, ao largar um posto onde vinha desempenhando tão
excelente trabalho para exercer uma função tão instável como a de um
ministro de Estado, o senhor Sergio Moro deixou parte da “plateia” a querer
adivinhar qual seria o seu lance de xeque-mate no imenso tabuleiro sobre o qual
ele estava se movimentando. Houve quem – e não apenas esquerdopatas – nem precisasse
se lançar nessas coisas de antecipações de lances e adivinhações de jogadas. Assim
que, ainda no ano passado, o nome do senhor Sergio Moro foi anunciado como
titular daquela pasta ministerial, houve quem enxergasse ali, no calor mesmo do
anúncio, com uma clareza cristalina, que o ministério seria tão somente um
trampolim para que o então admirado “herói nacional” assumisse posteriormente
uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF) e, quiçá, concorresse à presidência
da República. E, para mais além dessa, digamos, obviedade de caminhada pela Esplanada
dos Ministérios, houve quem tenha entendido o oferecimento do ministério ao
magistrado como um pagamento pelos bons serviços prestados à nação. Ora, como
assim?! Sob a ótica de quem pensou e avaliou o episódio desse modo, a explicação
é simples e trivial: ao condenar figurões investigados e processados pelos
procuradores da Operação Lava-jato - particularmente o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva -, o então juiz Sergio Moro engrossou o coro de “caça aos
criminosos” do ainda candidato Jair Bolsonaro e pavimentou sua eleição, uma vez
que inviabilizou a candidatura daquele ex-presidente, que estava bem cotado nas pesquisas de intenção de voto. O que pesa contra esse raciocínio,
por mais que ao senhor Sergio Moro sejam atribuídas as pechas de “parcial”, “político”
e “vendido, é que o magistrado – pelo menos até onde se sabe – não coagiu
testemunhas e nem forjou provas para condenar e mandar para a prisão dezenas de
salafrários, ladrões, corruptos e larápios do dinheiro público.
Os subterrâneos de uma
investigação ou As duas faces do Dr. Sergio
Quem acompanha o noticiário
político nacional sabe quão atabalhoada tem sido a atuação do senhor presidente
da República Jair Bolsonaro, com disse me disse, com declarações estapafúrdias,
com derrubadas de ministros, com medidas provisórias e decretos populistas contestados
pelo próprio Congresso Nacional que não é bom exemplo de nada. Enfim, assistimos
ao desenrolar de uma tragicomédia de erros protagonizada por uma das figuras
mais insanas e execráveis que, a meu ver, já surgiu na fauna política
brasileira, que é o senhor Jair Bolsonaro.
Desde o início visto como a
única estrela a resplandecer gloriosa e fulgurante na Esplanada dos
Ministérios, o senhor Sergio Moro viu, dias atrás, o seu brilho intenso ser
ofuscado por uma forte denúncia feita pelo jornalista Glenn Greenwald, do site
The Intercept Brasil. Precisamente no dia 9 de junho – e a ação de revelações tem
sido feita a conta-gotas como que para escarnecer e prolongar os passos da
via-crúcis do então todo de admirável, combatente, corajoso e impoluto “herói
nacional” -, o The Intecept Brasil começou a divulgar supostas trocas de
mensagens, feitas pelo aplicativo Telegram, entre o então juiz Sergio Moro e o
chefe da Operação Lava-jato, o procurador Deltan Dallagnol. As mensagens
deixaram ver até aqui que o juiz Sergio Moro extrapolava o seu campo de
atuação, que era de estudar os processos, avaliar, julgar e absolver ou
condenar os investigados, e dava orientações de como os procuradores deveriam
proceder a respeito de uma coisa e outra no âmbito das investigações.
Sabe aquele personagem de um
clássico da Sessão da Tarde, o protagonista de As sete faces do Dr. Lao, filme dirigido
por George Pal e lançado em 1964? Tão logo as mensagens supostamente trocadas
pelo senhor Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol vieram a público, foi
como uma versão do Dr. Lao que eu passei a enxergar o ainda ministro da
Justiça e da Segurança Pública Sergio Moro, porque, ao modo do Dr. Lao, que se
apresentava num circo encarnando ele próprio todas as atrações que eram vistas
ali, o senhor Sergio Moro, deixando de lado a imparcialidade e ultrapassando a
sua órbita de atuação, mandando para as cucuias o Código de Processo Penal,
agia ao mesmo tempo, por assim dizer, como julgador e investigador; ele
assobiava e chupava cana, como se diz aqui na minha terra.
Desde aquele fatídico dia 9
de junho a opacidade foi pouco a pouco se lançando sobre o brilho do senhor
Sergio Moro. Em que pese o empenho dele mesmo para se defender de um lado e
atacar de outro a ação criminosa de hackers que teriam fornecido as informações
ao jornalista Glenn Greenwald, da força de vontade do presidente Jair Bolsonaro
de continuar acreditando que o seu ministro não fez nada daquilo que o The
Intercept Brasil revelou e, se o fez, sob a ótica presidencial, o fez muito
bem, porque mandou muitos ladrões graúdos para a cadeia, e dos ataques que
aliados do presidente e do ministro fazem aos esquerdopatas, a verdade é que,
num plano social mais amplo, creio eu, a figura, o personagem, a pessoa, o heroicizado
Sergio Moro foi diminuído consideravelmente.
Heróis para quê?
Será que os fins justificam
os meios? Será isso tudo verdade mesmo? Será que as mensagens até agora
divulgadas pelo The Intercept Brasil não passam de montagens para desmoralizar
o senhor Sergio Moro e desacreditar a Operação Lava-jato? Mas o que dizer dos
testemunhos e de todas as provas que foram colhidas contra os malfeitores que
vinham dilapidando e fazendo e acontecendo com recursos públicos? E o que dizer
da dinheirama que até agora foi repatriada e que estava em contas secretas dos
honoráveis bandidos?
Considerando o nosso amplo e
vergonhoso histórico de falcatruas, dossiês falsos encomendados a peso de ouro
para destruir reputações, esquemas, armações e tramoias, não seria ingenuidade
e tampouco imprudência ficarmos com as barbas de molho enquanto essa narrativa
escabrosa segue se desenrolando.
De minha parte eu não vou me
perder nos labirintos das conjeturas. A serem autênticas – e tudo levar a crer
que sejam – as mensagens trocadas pelo então juiz Sergio Moro e o procurador
Deltan Dallagnol, o fato de elas terem sido conseguidas de maneira criminosa
por um ou mais hackers não invalida e nem minimiza a verdade imperiosa de que,
agindo como agiram, juiz e procurador vilipendiaram a lei, a moral, a ética e
os fundamentos de suas profissões. Guardadas as devidas medidas e distâncias,
no meu simplório entendimento, juiz e procurador foram tão desonestos e imorais
quanto o até agora anônimo e suposto hacker que é apontado como o único
criminoso dessa história.
No discurso intitulado “Em
louvor da magistratura”, que o magistrado, escritor, político e homem de ação
José Américo de Almeida proferiu em 1956, em sua Paraíba natal, ele disse assim
para uma plateia onde se encontravam majoritariamente desembargadores, juízes e
promotores: “Vossa missão é julgar. Esta manifestação é um julgamento. Sem compromissos
que não sejam os da própria consciência, blindados de uma independência que é
uma linha profissional, só sabeis fazer justiça” (José Américo de Almeida. “Em
louvor da magistratura”. In Discursos do seu tempo. 2ª ed. João Pessoa:
Universidade da Paraíba, 1965, p. 63).
Ainda em andamento, sem que
saibamos no que isso resultará, algo já está mais do que evidente: o episódio
de divulgação de supostas mensagens trocadas pelo então juiz Sergio Moro com o
procurador-chefe da Operação Lava-jato Deltan Dallagnol fez com que para o grande público, não necessariamente alinhado com esquerdopatas e direitopatas, o agora ministro Sergio Moro perdesse o epíteto de “herói
nacional” que uns e outros se esforçaram para pregar nele. E, assim, ele foi
reconduzido à condição do que na realidade era: um funcionário público
cumpridor dos seus deveres e obrigações, como todos e cada um deveriam ser, mas
que, lamentavelmente, extrapolou as suas funções talvez pensando que nunca
veria os seus passos em falso serem revelados, ainda mais da maneira que foram.
Dito isso, não custa
recordar aqui as sábias palavras atribuídas ao dramaturgo alemão Bertolt Brecht:
“Ai do povo que necessita de heróis”.
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