13 de julho de 2019

Sergio Moro e a infâmia do atropelamento e do amesquinhamento da lei


Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Internet
O herói desconstruído: envolto em sombras e supostamente flagrado em diálogos nada republicanos, o senhor Sergio Moro viu sua aparente e inabalável imparcialidade e honestidade serem lançadas na lata de lixo da História




Uma nação constantemente refundada


Quando recorro aos meus manuais de História do Brasil vejo sempre e sempre renovada, no meu entendimento, a compreensão de que os brasileiros estamos diuturnamente de alguma maneira ansiando por uma refundação deste país, dada a má qualidade dos homens e mulheres públicos que temos.


No estudo A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, o historiador mineiro José Murilo de Carvalho nos revela como foram, por assim dizer, incansáveis os esforços para transformar os principais participantes do 15 de novembro de 1889 em heróis do novo regime. Sendo assim, personalidades como os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto e o também militar Benjamin Constant foram os candidatos colocados na linha de frente para serem alçados ao posto. Como bem lembra José Murilo, herói que se preze tem de ter, de algum modo, “a cara da nação”: “Tem de responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo coletivamente valorizado. Na ausência de tal sintonia, o esforço de mitificação de figuras políticas resultará vão. Os pretendidos heróis serão, na melhor das hipóteses, ignorados pela maioria e, na pior, ridicularizados” (José Murilo de Carvalho. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 55-56).


José Murilo nos diz ainda que a busca de um herói acabou tendo êxito onde não imaginavam muitos dos participantes da proclamação da República: “Diante das dificuldades em promover os protagonistas do dia 15, quem aos poucos se revelou capaz de atender às exigências da mitificação foi Tiradentes” (José Murilo de Carvalho. Op. cit., p. 57). E assim foi que, sob os fundamentos positivistas da República que se proclamou em 1889 – o “Ordem e Progresso” do pavilhão nacional é uma divisa do ideário de Auguste Comte –, aos poucos e decisivamente eles reabilitaram e ressignificaram a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, personagem mais lembrado da Inconfidência Mineira ocorrida em 1789. Não bastasse – e talvez por força da intenção de uma, digamos, sacralização – a iconografia que o fixa com o perfil de um Cristo que é, também ele, idealizado, Tiradentes foi elevado à categoria e ao status de herói mais representativo da pátria brasileira.


Como eu vinha dizendo lá no início, parece que se mantém no seio da sociedade brasileira – pelo menos na parte da sociedade não corrompida, aquela que trabalha e vive honestamente e que não é alienada – um anseio de que esta nação seja refundada; e que, junto com essa refundação, o país se veja livre de toda essa gente corrupta, insensível e cafajeste que se lança sobre a coisa pública como uma alcateia feroz e insaciável.


Não faz muito tempo a Rede Globo tanto fez e aconteceu que acabou incutindo nas cabecinhas ocas de muitos que o piloto Ayrton Senna é um herói brasileiro. Herói de que, minha gente?! O que foi que de importante esse homem fez pelo país? Eu procuro e não vejo nada, porque, para mim, corridas de automóveis e quetais se inserem num rol de bestialidades humanas que incluem as rinhas de cães e de galos, a vaquejada, a caça esportiva e essas lutas em ringues que viraram espetáculos televisivos milionários.


E o movimento de “construção de heróis” não cessa por aqui. Prova disso é que, transcorrido mais de um século de sua morte, Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, visto por muitos – inclusive por aqueles republicanos que heroicizaram Tiradentes – como símbolo do atraso e do que de pior existia neste país e não como um homem que lutou contra as desigualdades sociais e econômicas e as imposições de um Estado que desconhecia a realidade em que viviam os cidadãos nos rincões da nação, teve o seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em maio passado (Diário Oficial da União. Lei nº 13.829/19, de 14 de maio de 2019).


Mudança sem transformação


Dada a precariedade de nossos fundamentos morais e éticos, que faz com que desejemos que a sociedade seja beneficamente transformada sem que, por outro lado, nós assumamos e/ou contribuamos para isso, agindo rotineiramente com honestidade e pensando no bem comum, a aparição de um juiz que emergiu de um lamaçal onde impera tudo, menos uma Justiça real e verdadeiramente justa, um juiz que conseguia mandar para o xilindró gente muito endinheirada e, por isso, historicamente beneficiada pela Justiça injusta, que aceita um sem-número de chicanas, foi como a chegada de um salvador da pátria, um cidadão exercendo com rigor e valentia o seu papel, um indivíduo corajoso e determinado que fazia crer que este país tem jeito e que, dali para frente, tudo seria diferente, e que, a partir de então, o Brasil, como diria o jornalista Boris Casoy, finalmente seria passado a limpo.


Tendo em vista isso, ao julgar e condenar figuraças como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-deputado federal Eduardo Cunha, investigados no âmbito da Operação Lava-jato, ainda em andamento, o senhor Sergio Moro foi saudado como um ícone, um semideus da Justiça. E não demorou para que ele estampasse capas de jornais, livros e revistas e começasse a receber homenagens até no exterior. Os brasileiros dos dias atuais, enfim, tinham alguém realmente de bem no qual se espelhar e um "herói" para chamar de seu, porque Sergio Moro fazia valer, a olhos vistos, a máxima latina que diz: dura lex, sed lex.


Tudo seguia nesses conformes ainda que, aqui e ali, um e outro inconformado com a atuação de procuradores e juízes esperneasse em público apontando supostos excessos cometidos por essas autoridades na condução da Operação Lava-jato. O bando de inconformados, claro, era a gentalha que queria continuar aprontando maracutaias e exercendo seus podres poderes para encher suas burras e repartirem seus butins sem ser incomodada, enquanto o brasileiro de bem só via todo o quadro socioeconômico ir de mal a pior, ouvindo a cantilena de que faltavam recursos para investir na saúde, na educação e na segurança pública, ao mesmo tempo em que os nobres políticos, em conluio com empresários igualmente desonestos, torravam o dinheiro dos pagadores de impostos.


Rumo ao xeque-mate


Tudo ia bem para além das grades da República de Curitiba; e o céu parecia ser o limite para o senhor Sergio Moro. Mas aí o "herói nacional" começou a se movimentar na esfera pública dando demonstração de que ocupar a função de juiz federal já não lhe bastava. Gozando de imensa popularidade num cenário em que esquerdopatas e direitopatas não cessavam de digladiarem, o senhor Sergio Moro largou a toga de juiz federal para assumir a pasta do Ministério da Justiça e da Segurança Pública do governo do presidente Jair Bolsonaro.


Traçar metas profissionais com vistas a alcançar o topo da carreira é do jogo, é algo natural que vai da ambição de qualquer pessoa. Acontece que, ao largar um posto onde vinha desempenhando tão excelente trabalho para exercer uma função tão instável como a de um ministro de Estado, o senhor Sergio Moro deixou parte da “plateia” a querer adivinhar qual seria o seu lance de xeque-mate no imenso tabuleiro sobre o qual ele estava se movimentando. Houve quem – e não apenas esquerdopatas – nem precisasse se lançar nessas coisas de antecipações de lances e adivinhações de jogadas. Assim que, ainda no ano passado, o nome do senhor Sergio Moro foi anunciado como titular daquela pasta ministerial, houve quem enxergasse ali, no calor mesmo do anúncio, com uma clareza cristalina, que o ministério seria tão somente um trampolim para que o então admirado “herói nacional” assumisse posteriormente uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF) e, quiçá, concorresse à presidência da República. E, para mais além dessa, digamos, obviedade de caminhada pela Esplanada dos Ministérios, houve quem tenha entendido o oferecimento do ministério ao magistrado como um pagamento pelos bons serviços prestados à nação. Ora, como assim?! Sob a ótica de quem pensou e avaliou o episódio desse modo, a explicação é simples e trivial: ao condenar figurões investigados e processados pelos procuradores da Operação Lava-jato - particularmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva -, o então juiz Sergio Moro engrossou o coro de “caça aos criminosos” do ainda candidato Jair Bolsonaro e pavimentou sua eleição, uma vez que inviabilizou a candidatura daquele ex-presidente, que estava bem cotado nas pesquisas de intenção de voto. O que pesa contra esse raciocínio, por mais que ao senhor Sergio Moro sejam atribuídas as pechas de “parcial”, “político” e “vendido, é que o magistrado – pelo menos até onde se sabe – não coagiu testemunhas e nem forjou provas para condenar e mandar para a prisão dezenas de salafrários, ladrões, corruptos e larápios do dinheiro público.


Os subterrâneos de uma investigação ou As duas faces do Dr. Sergio


Quem acompanha o noticiário político nacional sabe quão atabalhoada tem sido a atuação do senhor presidente da República Jair Bolsonaro, com disse me disse, com declarações estapafúrdias, com derrubadas de ministros, com medidas provisórias e decretos populistas contestados pelo próprio Congresso Nacional que não é bom exemplo de nada. Enfim, assistimos ao desenrolar de uma tragicomédia de erros protagonizada por uma das figuras mais insanas e execráveis que, a meu ver, já surgiu na fauna política brasileira, que é o senhor Jair Bolsonaro.


Desde o início visto como a única estrela a resplandecer gloriosa e fulgurante na Esplanada dos Ministérios, o senhor Sergio Moro viu, dias atrás, o seu brilho intenso ser ofuscado por uma forte denúncia feita pelo jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept Brasil. Precisamente no dia 9 de junho – e a ação de revelações tem sido feita a conta-gotas como que para escarnecer e prolongar os passos da via-crúcis do então todo de admirável, combatente, corajoso e impoluto “herói nacional” -, o The Intecept Brasil começou a divulgar supostas trocas de mensagens, feitas pelo aplicativo Telegram, entre o então juiz Sergio Moro e o chefe da Operação Lava-jato, o procurador Deltan Dallagnol. As mensagens deixaram ver até aqui que o juiz Sergio Moro extrapolava o seu campo de atuação, que era de estudar os processos, avaliar, julgar e absolver ou condenar os investigados, e dava orientações de como os procuradores deveriam proceder a respeito de uma coisa e outra no âmbito das investigações.

Sabe aquele personagem de um clássico da Sessão da Tarde, o protagonista de As sete faces do Dr. Lao, filme dirigido por George Pal e lançado em 1964? Tão logo as mensagens supostamente trocadas pelo senhor Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol vieram a público, foi como uma versão do Dr. Lao que eu passei a enxergar o ainda ministro da Justiça e da Segurança Pública Sergio Moro, porque, ao modo do Dr. Lao, que se apresentava num circo encarnando ele próprio todas as atrações que eram vistas ali, o senhor Sergio Moro, deixando de lado a imparcialidade e ultrapassando a sua órbita de atuação, mandando para as cucuias o Código de Processo Penal, agia ao mesmo tempo, por assim dizer, como julgador e investigador; ele assobiava e chupava cana, como se diz aqui na minha terra.

Desde aquele fatídico dia 9 de junho a opacidade foi pouco a pouco se lançando sobre o brilho do senhor Sergio Moro. Em que pese o empenho dele mesmo para se defender de um lado e atacar de outro a ação criminosa de hackers que teriam fornecido as informações ao jornalista Glenn Greenwald, da força de vontade do presidente Jair Bolsonaro de continuar acreditando que o seu ministro não fez nada daquilo que o The Intercept Brasil revelou e, se o fez, sob a ótica presidencial, o fez muito bem, porque mandou muitos ladrões graúdos para a cadeia, e dos ataques que aliados do presidente e do ministro fazem aos esquerdopatas, a verdade é que, num plano social mais amplo, creio eu, a figura, o personagem, a pessoa, o heroicizado Sergio Moro foi diminuído consideravelmente.

Heróis para quê?

Será que os fins justificam os meios? Será isso tudo verdade mesmo? Será que as mensagens até agora divulgadas pelo The Intercept Brasil não passam de montagens para desmoralizar o senhor Sergio Moro e desacreditar a Operação Lava-jato? Mas o que dizer dos testemunhos e de todas as provas que foram colhidas contra os malfeitores que vinham dilapidando e fazendo e acontecendo com recursos públicos? E o que dizer da dinheirama que até agora foi repatriada e que estava em contas secretas dos honoráveis bandidos?

Considerando o nosso amplo e vergonhoso histórico de falcatruas, dossiês falsos encomendados a peso de ouro para destruir reputações, esquemas, armações e tramoias, não seria ingenuidade e tampouco imprudência ficarmos com as barbas de molho enquanto essa narrativa escabrosa segue se desenrolando.

De minha parte eu não vou me perder nos labirintos das conjeturas. A serem autênticas – e tudo levar a crer que sejam – as mensagens trocadas pelo então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, o fato de elas terem sido conseguidas de maneira criminosa por um ou mais hackers não invalida e nem minimiza a verdade imperiosa de que, agindo como agiram, juiz e procurador vilipendiaram a lei, a moral, a ética e os fundamentos de suas profissões. Guardadas as devidas medidas e distâncias, no meu simplório entendimento, juiz e procurador foram tão desonestos e imorais quanto o até agora anônimo e suposto hacker que é apontado como o único criminoso dessa história.

No discurso intitulado “Em louvor da magistratura”, que o magistrado, escritor, político e homem de ação José Américo de Almeida proferiu em 1956, em sua Paraíba natal, ele disse assim para uma plateia onde se encontravam majoritariamente desembargadores, juízes e promotores: “Vossa missão é julgar. Esta manifestação é um julgamento. Sem compromissos que não sejam os da própria consciência, blindados de uma independência que é uma linha profissional, só sabeis fazer justiça” (José Américo de Almeida. “Em louvor da magistratura”. In Discursos do seu tempo. 2ª ed. João Pessoa: Universidade da Paraíba, 1965, p. 63).

Ainda em andamento, sem que saibamos no que isso resultará, algo já está mais do que evidente: o episódio de divulgação de supostas mensagens trocadas pelo então juiz Sergio Moro com o procurador-chefe da Operação Lava-jato Deltan Dallagnol fez com que para o grande público, não necessariamente alinhado com esquerdopatas e direitopatas, o agora ministro Sergio Moro perdesse o epíteto de “herói nacional” que uns e outros se esforçaram para pregar nele. E, assim, ele foi reconduzido à condição do que na realidade era: um funcionário público cumpridor dos seus deveres e obrigações, como todos e cada um deveriam ser, mas que, lamentavelmente, extrapolou as suas funções talvez pensando que nunca veria os seus passos em falso serem revelados, ainda mais da maneira que foram.

Dito isso, não custa recordar aqui as sábias palavras atribuídas ao dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Ai do povo que necessita de heróis”.


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