Este artigo é especialmente dedicado à memória da prestigiada atriz negra Ruth de Souza (1921-2019)
Foto: Ytallo Barretto Além de mulher, negra, guerreira, merendeira e pop star, Lia de Itamaracá agora é também doutora. Ó praí!! |
Dando
brilho ao chão para o patrão pisar
Nas andanças que mantive e
continuo mantendo ao lado da senhora Maria Madalena Correia do Nascimento, que
todo pernambucano cioso e exaltador da cultura de sua terra conhece como Lia de
Itamaracá, em mais de uma ocasião, em várias entrevistas que ela concedeu para
jornalistas, pesquisadores e afins, eu ouvi ela prestar um depoimento que, a
meu ver, é bastante revelador do quanto pesa na história geral deste país e na
vida de gente negra como ela, o ranço, o lamento, a tristeza e por que não
dizer a vergonha do regime escravocrata que alicerçou o desenvolvimento da
nação brasileira e que até os dias de hoje vê-se refletido nas relações
sociais. Nesses depoimentos Lia de Itamaracá costuma relembrar os dias em que
ela e os irmãos, acompanhando a mãe na casa onde a matriarca trabalhava como
empregada doméstica, esfregavam o piso de tijolo de barro da residência com
casca de coco para que ele ficasse com algum brilho. Consciente da condição
servil em que vivia naquela casa, uma das pouquíssimas de alvenaria que
existiam à beira-mar da Praia de Jaguaribe, na Ilha de Itamaracá, em meados do
século XX, sem qualquer cerimônia Lia diz aos seus interlocutores que aquilo
ali “era mesmo que uma escravidão”.
No prefácio que escreveu
para o Dicionário da escravidão e
liberdade, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes
(1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018), o africanista Alberto da Costa
e Silva nos diz que, embora a escravidão seja tão antiga quanto o homem na
história e esteja presente no desenrolar de quase todas as culturas, “é com
extrema dificuldade que conseguimos estudá-la como algo que ficou no passado e
lhe pertence completamente”, e ainda mais aqui, no continente americano, onde “escravo
era sinônimo de negro” (Alberto da Costa e Silva. “Escravidão e liberdade”
[prefácio]. In Lilia Moritz Scwarcz e Flávio dos Santos Gomes. Op. cit., p.
14).
Seria bastante leviano que
eu e você leitor enxergássemos a experiência vivenciada por Lia de Itamaracá
como um trabalho escravo? De minha parte eu vejo isso envolvido por aquela maleável
e algo torpe benevolência que, em casos como esse, os senhores e as senhoras da
casa dizem que fulano e fulana são como gente da família, ainda que, como “gente
da família”, fulano e fulana durmam num quartinho lá nos fundos e que, se
tiverem de comer o que os seus “patrões-parentes” comem, que esperem para ver
se sobra alguma coisa do repasto.
O depoimento de Lia de
Itamaracá a respeito das atividades que desempenhava naquela casa, que ainda
existe na orla praieira, diz muito de uma vida precária e carente de diversas
necessidades e que, entre outras coisas, lhe tirou a possibilidade de ter tido
uma efetiva educação formal, mas não diz tudo. Por outro lado, dadas as
evidências históricas do quadro social que marcava a vida da população pobre da
ilha – com certeza o tempo da infância e da juventude de Lia foi pior do que o
que se vê hoje por lá, porque, naquela época, não havia qualquer amparo
governamental do tipo Bolsa Família -, eu entendo, eu compreendo perfeitamente
os sentimentos ambíguos que Lia guarda com relação aos antigos patrões de sua
mãe – que, por extensão, também eram seus – quando, por exemplo, ela por vezes
se refere ao antigo senhor como “pai”, porque, dada a precariedade em que ela,
seus irmãos e sua mãe viviam, ter ao menos um prato de comida para saciar a
fome era algo muito valoroso num ambiente em que a luta pela sobrevivência era
bastante desfavorável, especialmente para as mulheres.
Olhando para as trajetórias
de Lia de Itamaracá e de sua mãe Matilde Maria da Conceição, uma espoletinha
danada que batalhou muito para criar praticamente sozinha os tantos filhos que
teve, eu inevitavelmente faço uma relação, uma comparação com as de minha avó
materna, que era analfabeta, coitada, e de minha mãe que só estudou até a sexta
série do antigo 1º grau e que, mesmo sendo brancas, também comeram o pão que o
diabo amassou para tomarem conta de suas proles depois que foram abandonadas
por seus maridos – no caso de minha mãe, o sujeito a abandonou quando ela ainda
estava grávida. O abandono das mulheres num universo machista e fortemente
patriarcal, como o é o brasileiro, é, ele mesmo, um fator a dificultar a ascensão
social dessas pessoas que, apesar de todos os avanços conquistados pela luta
das feministas, continuam a ser vistas como cidadãos de segunda classe, ou,
como disse a historiadora francesa Michelle Perrot, muitos anos atrás, a
propósito das mulheres de um modo geral, elas são um dos “excluídos da História”
com H maiúsculo.
A
maresia corroeu muita coisa em Itamaracá, mas não a determinação de Lia
Nascer negro, no Brasil, já
é vir ao mundo certo de que tudo, a partir dali, será mais difícil; e que a
pessoa precisará se esforçar o dobro ou talvez o triplo que um indivíduo branco
para conseguir “ser alguém na vida”. Como mulher, negra, semianalfabeta e
periférica, Lia de Itamaracá sabe muito bem o que é isso. E eu por vezes fico a
me perguntar o que seria dessa criatura se ela não tivesse enveredado pelo
campo da arte e não tivesse feito da música e da ciranda o seu cajado para
continuar caminhando nas estradas tortuosas de sua existência.
Segundo conta a própria
cirandeira, ela ainda trabalhava na casa dos patrões quando começou a se
interessar e se envolver com a ciranda, um canto e uma dança que foi ganhando
relevo e se espalhando por várias cidades da Região Metropolitana do Recife e
do interior pernambucano, tudo leva a crer, a partir da década de 1950. Seu envolvimento
com o canto e a dança chamados ciranda ganhou tal proporção que seu nome e sua
fama chegaram sem demora à capital na década de 1970;e tanto que, por essa
época, ela começou a participar de festivais e gravou um lp, sendo apresentada
ao público de todo o país, em 1977, como “a rainha da ciranda”.
A partir daí Lia de
Itamaracá se veria numa verdadeira montanha-russa até pelo menos a primeira
metade da década de 1990. Tempo esse em que ela se deu conta de que fama não
significava necessariamente ganho de dinheiro, como pensara quando gravou seu
disco; de modo que ela continuava vivendo de maneira muito humilde e, o que é
pior, fazendo uso frequente de bebida alcoólica, problema esse do qual só se livraria completamente
já no novo século. Novo século que, pouco antes de estrear, viu entrar na vida
da cirandeira um sujeito valente e bom de briga chamado Beto Hees, que tratou
de conduzir Lia de Itamaracá ao patamar de um reconhecimento artístico e
cultural irrestrito, como poucas vezes se viu no universo da cultura popular.
Lia, a mulher negra da
periferia, a artista representante da cultura popular que, sem conseguir se
sustentar apenas com o seu talento, trabalhou como cozinheira num restaurante e
com a sua fama obteve dois empregos públicos como merendeira de escola e obteve
de um político a construção de uma casa de alvenaria para morar num terreno que
ela comprou com a venda de uma carga de cimento que ganhou quando o casebre em que
morava foi destruído por um incêndio, começou a descrever nos anos 2000 uma nova
etapa de sua carreira. Empresariada por Beto Hees, ela, a bem da verdade, não
conseguiu superar de todo as dificuldades que os poderes públicos e privados
costumam destinar aos fazedores da cultura popular – ainda hoje Beto briga,
discute, bate boca e cobra para que sejam pagos cachês realmente dignos e,
principalmente, que não demorem uma eternidade para entrar na conta -, mas, por
outro lado, matando um leão por dia, ela foi conseguindo preencher o seu
destino com grandes conquistas: gravou dois cd’s, Eu sou Lia (2000) e Ciranda
de ritmos (2008); estabeleceu em sua comunidade o Centro Cultural Estrela
de Lia, atualmente à espera de recursos para ser reconstruído; recebeu a
comenda da Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura (2004); e foi
reconhecida como um Patrimônio Vivo de Pernambuco (2005), distinção essa que
lhe garante uma pensão vitalícia de quase dois salários mínimos. Reconheçamos
que, para alguém que teve a sua infância roubada esfregando o chão de uma casa
com casca de coco, a negona chegou muito longe, não foi? Mas Lia de Itamaracá
não parou por aí, não. Neste 2019, ocasião em que ela está festejando seus 75
anos de vida, a filha talentosa da corajosa e igualmente admirável Matilde
Maria da Conceição, que era festeira que só ela, desde o dia 11 de janeiro,
véspera do seu aniversário, vem recebendo uma homenagem atrás da outra, teve
parte de sua vida contada em livro e gravou um novo disco que está quase saindo
do forno, uma prova de que o seu talento em par com a sua resistência e o apoio
de “muitas mãos amigas e generosas”, como costuma dizer Beto Hees, conseguiram
se sobrepor e ultrapassar vários obstáculos para alcançar o reconhecimento
absoluto que conquistou por méritos próprios.
Cultura
popular como instrumento de reforma social
Há quem pense que a cultura
popular é assunto alheio ao ambiente acadêmico. Não, não é. Embora com um
sentido muito mais amplo do que o que eu vinha utilizando até aqui, o conceito
de cultura popular que começou a circular no meio intelectual brasileiro,
grosso modo, a partir da década de 1960, era carregado de um viés, digo melhor,
de uma proposta ambiciosa de revolução social ou para fazer uso de uma
expressão utilizada por Ferreira Gullar ao examinar o que se processava naquele
período, cultura popular era, “antes de mais nada, consciência revolucionária”
(Ferreira Gullar. “Cultura popular”. In Osmar Fávero [org.]. Cultura popular e educação popular: memória
dos anos 60. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 52). Então, com
tal substância e propósito foi que a cultura popular entrou no radar dos
intelectuais e acadêmicos, por exemplo, no chamado Movimento de Cultura Popular
havido no Recife, que, para além de, digamos, “catalogar” e “divulgar”
expressões artísticas como o maracatu e a ciranda, visava também uma ampla obra
de alfabetização do povo através do Método Paulo Freire.
Retomando aqui o conceito de
cultura popular no sentido que eu vinha fazendo uso, qual seja, o de um
segmento da cultura, no campo das artes, produzido pelo homem e pela mulher
comum do povo, para mim é interessante destacar que os intelectuais lotados
e/ou egressos da academia, como eu, fazem interpretações e tecem considerações
a respeito das manifestações da chamada cultura popular que, em verdade, não são
necessariamente alcançadas e/ou compreendidas pelos fazedores dessa expressão cultural,
geralmente cidadãos de baixíssimo ou nenhum nível de escolaridade. Contudo,
esta, por assim dizer, falta de compreensão e de entendimento que tem o artista
da cultura popular do que é produzido na academia a propósito de seu fazer
artístico não significa dizer que ele não respeite e nem tenha entendimento da
importância de suas produções para as pessoas que vez por outra batem à sua
porta em busca de uma entrevista ou de um esclarecimento, ainda que, como eu tantas
vezes já vi e li, alguns artistas, mesmo que a entrevista e o esclarecimento
sejam para dar base a estudos e não necessariamente para dar corpo a algo que
será vendido, se sintam explorados, porque, quase sempre – e não é raro
encontrar casos de gente que foi realmente enganada e explorada – eles associam
fama à obtenção de dinheiro, uma vez que, o que eles fazem, normalmente eles tomam
conscientemente como a única possibilidade que eles têm de ganhar alguma grana
e sobreviver.
Dito isso, foi sentindo uma
dessas satisfações por demais transbordantes que eu fui, na manhã da última
terça-feira, ao Teatro Guararapes, no Centro de Convenções, em Olinda,
acompanhar a sessão solene de outorga do título de Doutora Honoris Causa da
Universidade Federal de Pernambuco à cirandeira Lia de Itamaracá.
Rainha
e também doutora
Revelando um total desconhecimento
da importância que aquela cerimônia poderia significar para meninos e meninas
da terra natal de Lia ao presenciarem uma mulher, uma negra, uma pessoa sem
muita instrução escolar recebendo uma titulação de tamanho valor e, por isso,
podendo ser vista como um grande exemplo de vida, por sua força, garra e
superação, a Prefeitura Municipal da Ilha de Itamaracá, por desinteresse e/ou
falta de recursos, não disponibilizou uma condução para que os estudantes
pudessem ir ao evento. Porém, como a força do querer muitas vezes faz coisas
boas acontecerem, a coordenação da Escola Estadual Alberto Augusto de Morais Pradines,
que fica bem defronte à sede do executivo itamaracaense, conseguiu um ônibus
com a Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Itapissuma e levou um
grupo de alunos para as dependências do Teatro Guararapes.
A plateia não era numerosa
porque, acredito, o horário e o dia do evento não eram muito convidativos. Entretanto,
aposto que os que foram até lá para assistirem àquele momento tão especial e
importante para Lia, o fizeram, no mínimo, por um sentimento de admiração pela
artista. Dessa forma, em meio aos estudantes entre outros se encontravam
cantores como Carlos Zens e Ed Carlos, o Maestro Formiga, o historiador Marcelo
Renan, a produtora cultural Sara da Ilha, a jornalista Michelle Assumpção, que
está preparando um perfil biográfico da cirandeira, alguns dos músicos que acompanham
Lia em seus shows e um animado grupo de senhorinhas tietes de Lia, que
compareceram ao local trajando camisetas estampadas com uma imagem da aclamada
e vitoriosa artista, abaixo da qual se encontravam uns versos do hino da
ciranda pernambucana: “Essa ciranda quem me deu foi Lia, que mora na Ilha de
Itamaracá”.
Eu olhei no relógio: foi
precisamente às 10:25 h que o cerimonial teve início. Após a composição da mesa
e a chegada da homenageada para completá-la, o reitor Anísio Brasileiro fez uma
fala protocolar e, em seguida, o professor Francisco Barros fez a leitura do
panegírico. Nossa, que texto fraco. A impressão que me deu foi que, no dia
anterior, ele pinçou uma coisa e outra na internet, juntou uma breve memória de
si mesmo – recordou a ocasião em que, na Ilha de Itamaracá, dançou ciranda numa
casa de praia com parentes, ouvindo Lia cantando numa rádio – e completou sua
narrativa com platitudes e obviedades como dizer que a ciranda une as pessoas,
porque não se dança ciranda sozinho. Ele até chegou a chorar em dado momento. E,
humilde, pediu desculpas a Lia por ter escrito algo sem maiores referências
bibliográficas. Não foi apenas isso que faltou ao seu panegírico: faltou biografia,
faltou vida, faltou, enfim, Lia naquela apresentação enfadonha. Não duvido que
qualquer uma daquelas tietes de Lia que ali se encontravam teria feito um
discurso laudatório com alma, cor e substância realmente à altura da
homenageada.
O panegírico que, nessas
cerimônias, é um dos seus pontos principais, não o foi naquela manhã. Mas,
porém, contudo, entretanto e todavia ele não conseguiu tirar o brilho, o peso,
o valor e o simbolismo daquele momento ímpar na carreira de Lia; um momento
ímpar porque todos nós que nos encontrávamos naquele imenso teatro presenciamos
o instante que aquela imponente senhora de origem humilde e de pouquíssima
instrução atingiu um patamar normalmente alcançado por grandes estudiosos das
ciências. No preciso momento em que o reitor Anísio Brasileiro colocou o capelo
na cabeça de Lia e os aplausos ecoaram fortemente naquele recinto, me bateu uma
emoção desmedida. Olhei para Beto Hees, que se encontrava bem afastado de mm, e
fiquei a imaginar a avalanche de sentimentos que deve ter lhe tomado naquela
hora ao ver a luz de sua artista, de sua estrela brilhar de forma muitíssimo
intensa no palco recebendo um reconhecimento daquele; ele que já vivenciou ao
lado dela umas poucas e boas e nunca, nunca deixou de lutar para que ela fosse e
continue sendo tratada, reconhecida e valorizada pelo seu real valor de face,
que é o seu talento, a sua honestidade, o seu carisma e a defesa e exaltação
que ela faz da ciranda, porque, verdade seja dita, embora os palcos de sua
longa vida artística nem sempre estiveram iluminados, uma vez que, aqui e ali,
ela topou com a indiferença, a precariedade social, o desprezo, a
desonestidade, o engano e o descaso, a luz própria e o brilho de Lia de
Itamaracá jamais se apagaram.
No breve discurso que fez na
ocasião, mesmo porque ela não é de falar muito e sim de cantar, Lia agradeceu
pelo título que recebeu sem, talvez, ter uma clara ideia da dimensão de mais essa
sua conquista. Acredito eu que Lia, talvez, não tenha nem noção de tudo o que
ela e a sua ciranda representam e o quanto que a sua pessoa é importante e
valiosa para a cultura brasileira, para as políticas de afirmação da população
negra, para os incentivos de valorização da cultura popular e para a difusão do
princípio de fraternidade entre as pessoas, que é estender a mão ao outro, como
numa roda de ciranda. O fato foi que, tendo noção disso ou não, ela pôs todo
mundo para cirandar no hall do teatro tão logo o cerimonial chegou ao fim. A
negona Lia de Itamaracá é sabida demais.
Título mais que merecido a esta grande mulher que representa a Cultura viva de Pernambuco e em especial a cidade de Itamaracá. E viva a estrela lia!
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