26 de outubro de 2019

A resistência é uma arma quente

Por Clênio Sierra de Alcântara

Foto: Divulgação
Os bacurauruenses não estão para brincadeira, não!



No sábado dia 5 de outubro, eu fui ao Cinema São Luiz, localizado na área central do Recife, prestigiar, na sessão das 17:20 h – sessão bem concorrida, por sinal -, o novo filme do diretor Kleber Mendonça Filho que, em que pese a sua fama de egocêntrico e centralizador, dividiu a direção e o roteiro do seu mais recente longa com Juliano Dornelles.
Sob muitos aspectos em que seja analisado o filme Bacurau é um verdadeiro petardo e igualmente um libelo contra uma série de vícios, cânceres e quejandos que, em realidade, contaminaram e, em metástase, se disseminaram por entre as profundezas medonhas, sinistras e abjetas da vida pública brasileira tal qual ela cotidianamente nos é revelada na TV, nos sites de notícias e afins.

Calhou de Bacurau, uma singela vila onde habitam poucos moradores, estar cravada num interior bem remoto do Nordeste brasileiro. Mas, apesar da paisagem ardentemente ensolarada e do drama secular do precário sistema de abastecimento de água, algo que ainda hoje serve como plataforma de campanhas eleitorais, como se fosse um problema insolúvel, Bacurau é a representação de todo e qualquer lugar deste país onde amiúde a atividade política - e também a empresarial - é praticada unicamente com o sentido de locupletação por arrivistas que não estão nem aí para o alcance de um verdadeiro desenvolvimento socioeconômico do país e o bem-estar da população, daí por que eles se lançam em operações fraudulentas, em negócios escusos, em adulterações e em tudo o mais que as mentes criminosas são capazes de engendrar.

Ressabiados que só eles mesmos, os bacurauruenses sabem como poucos de que são trançados os tecidos da politicagem, porque eles têm como prefeito um espécime chamado Tony Júnior, um praticante aplicadíssimo da política delinquente e ruinosa que até à oferta de donativos, digamos assim – e donativos com prazos de validade vencidos, ainda por cima -, recorre para tentar angariar a simpatia dos seus eleitores. Acontece que, apesar de estar localizada num rincão, Bacurau, que tem um quê do reduto que Antônio Conselheiro estabeleceu no interior da Bahia no século XIX, é, ao mesmo tempo, a representação de um país arcaico de um lado – a selvageria e a evocação da barbárie que foi imposta aos cangaceiros de Lampião são um evidente flagrante disso – e de outro com um pé fincado no progresso, pelo menos no progresso tecnológico, algo que a posse de telefones celulares, tablets e a rádio comunicação deixam evidentes. Outros exemplos da coexistência do progresso e da modernidade com o arcaico e o primitivo naquele lugar é a exaltação da educação escolar e as ruas de terra batida; a compreensão da necessidade da preservação da memória social – o Museu Histórico possui um acervo significativo; e o recado que ele dá em determinado momento é poderoso: é com elementos do passado preservado que se faz e se enfrenta o presente e se vislumbra o futuro – e um chefe do executivo municipal corrupto e mau caráter.

Tony Júnior, o prefeito, é o símbolo do atraso e do que de pior existe na vida pública daquele interiorzão; e, mesmo sabendo que o povo de Bacurau é nó cego, valente, resistente, belicoso e que não está ali para brincadeira, o cabra safado entra em conluio com alienígenas – alienígena, como se sabe, é também sinônimo de estrangeiro; e eu preferi usar aqui aquele termo a este porque no filme aparece um drone em forma de disco voador e, aqui e ali, a narrativa por vezes tem um quê de "ficção científica" – para exterminar uma a uma cada pessoa que mora naquela vila insubmissa. Tony Júnior é um prodígio cuja desenvoltura se encaixa perfeitamente num julgamento cáustico feito pelo supercáustico jornalista Paulo Francis: “Toda ação política é intrinsecamente criminosa. Sua benevolência ocasional é contingente ao crime essencial de sua existência, cuja razão de ser é o poder, que, pela própria natureza, coage e elimina o ser humano que não se submeta” (Paulo Francis. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 173).

É bastante emblemático que, no filme, a estrangeirada sinta um insaciável prazer em matar, se julgue seres humanos eugenicamente superiores aos nordestinos bacurauruenses – há, inclusive, uma referência à Alemanha nazista - e que fale a língua inglesa, como um certo xenófobo chamado Donald Trump. Assim como é significativa a leitura que se faz ali de que, no próprio país, no próprio Brasil, vigora um discurso de superioridade "racial": um julgamento do Norte como essencialmente retrógrado e mestiço em permanente confronto com um Sul bem desenvolvido e europeiamente branqueado.

Não consegui ver nada se processando de modo sutil na narrativa de Bacurau. Muito pelo contrário. O que eu enxerguei nele foi muita crueza, porque tudo ali me pareceu sangrento, visceral, incisivo, pulsante e sem arrodeios, como dizemos por aqui. Bacurau, a mim me parece, é um retrato 3X4 de uma realidade que nos é muito familiar, dada tanto, repito, a corrupção que assola os mundos político e empresarial nestas plagas – e não só eles – e o que aparenta ser uma propensão natural que os brasileiros sentimos para ceifarmos as vidas uns dos outros, mantendo em dia a estatística assombrosa de um assassinato a cada doze minutos, sem que, para tanto nem precisemos – pelo menos a maioria de nós – recorrer a psicotrópicos do tipo que é ofertado pelo homem muitíssimo prático que é o senhor Tony Júnior e nem a "pílulas" como as que os bacurauruenses ingerem antes de entrar em combate. Bacurau é, a bem dizer – e ainda que contida numa 3X4 -, a paisagem de um Brasil inteiro onde o que se considera como primitivo e o que é tomado como moderno duelam o tempo todo, provocando a inércia material, moral e  social de quase toda a nação; e solapando, assim, todo e qualquer projeto que almeje conceder um mínimo que seja de dignidade a cada cidadão de bem deste país, sobretudo, daqueles que se encontram nas camadas economicamente mais baixas da sociedade.

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