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Foto: Divulgação Os bacurauruenses não estão para brincadeira, não! |
No sábado dia 5 de outubro,
eu fui ao Cinema São Luiz, localizado na área central do Recife, prestigiar, na
sessão das 17:20 h – sessão bem concorrida, por sinal -, o novo filme do diretor
Kleber Mendonça Filho que, em que pese a sua fama de egocêntrico e centralizador,
dividiu a direção e o roteiro do seu mais recente longa com Juliano Dornelles.
Sob muitos aspectos em que
seja analisado o filme Bacurau é um
verdadeiro petardo e igualmente um libelo contra uma série de vícios, cânceres
e quejandos que, em realidade, contaminaram e, em metástase, se disseminaram
por entre as profundezas medonhas, sinistras e abjetas da vida pública
brasileira tal qual ela cotidianamente nos é revelada na TV, nos sites de
notícias e afins.
Calhou de Bacurau, uma
singela vila onde habitam poucos moradores, estar cravada num interior bem
remoto do Nordeste brasileiro. Mas, apesar da paisagem ardentemente ensolarada
e do drama secular do precário sistema de abastecimento de água, algo que ainda
hoje serve como plataforma de campanhas eleitorais, como se fosse um problema
insolúvel, Bacurau é a representação de todo e qualquer lugar deste país onde
amiúde a atividade política - e também a empresarial - é praticada unicamente
com o sentido de locupletação por arrivistas que não estão nem aí para o alcance de um
verdadeiro desenvolvimento socioeconômico do país e o bem-estar da população,
daí por que eles se lançam em operações fraudulentas, em negócios escusos, em
adulterações e em tudo o mais que as mentes criminosas são capazes de
engendrar.
Ressabiados que só eles
mesmos, os bacurauruenses sabem como poucos de que são trançados os tecidos da
politicagem, porque eles têm como prefeito um espécime chamado Tony Júnior, um
praticante aplicadíssimo da política delinquente e ruinosa que até à oferta de
donativos, digamos assim – e donativos com prazos de validade vencidos, ainda
por cima -, recorre para tentar angariar a simpatia dos seus eleitores.
Acontece que, apesar de estar localizada num rincão, Bacurau, que tem um quê do
reduto que Antônio Conselheiro estabeleceu no interior da Bahia no século XIX,
é, ao mesmo tempo, a representação de um país arcaico de um lado – a selvageria
e a evocação da barbárie que foi imposta aos cangaceiros de Lampião são um evidente flagrante disso – e de
outro com um pé fincado no progresso, pelo menos no progresso tecnológico, algo
que a posse de telefones celulares, tablets
e a rádio comunicação deixam evidentes. Outros exemplos da coexistência do
progresso e da modernidade com o arcaico e o primitivo naquele lugar é a
exaltação da educação escolar e as ruas de terra batida; a compreensão da
necessidade da preservação da memória social – o Museu Histórico possui um
acervo significativo; e o recado que ele dá em determinado momento é poderoso:
é com elementos do passado preservado que se faz e se enfrenta o presente e se
vislumbra o futuro – e um chefe do executivo municipal corrupto e mau caráter.
Tony Júnior, o prefeito, é o
símbolo do atraso e do que de pior existe na vida pública daquele interiorzão;
e, mesmo sabendo que o povo de Bacurau é nó cego, valente, resistente, belicoso
e que não está ali para brincadeira, o cabra safado entra em conluio com
alienígenas – alienígena, como se sabe, é também sinônimo de estrangeiro; e eu
preferi usar aqui aquele termo a este porque no filme aparece um drone em forma de disco voador e, aqui e ali, a narrativa por vezes tem um quê de "ficção científica" – para
exterminar uma a uma cada pessoa que mora naquela vila insubmissa. Tony Júnior
é um prodígio cuja desenvoltura se encaixa perfeitamente num julgamento
cáustico feito pelo supercáustico jornalista Paulo Francis: “Toda ação política
é intrinsecamente criminosa. Sua benevolência ocasional é contingente ao crime
essencial de sua existência, cuja razão de ser é o poder, que, pela própria
natureza, coage e elimina o ser humano que não se submeta” (Paulo Francis. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e
vivi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 173).
É bastante emblemático que,
no filme, a estrangeirada sinta um insaciável prazer em matar, se julgue seres humanos eugenicamente superiores aos
nordestinos bacurauruenses – há, inclusive, uma referência à Alemanha nazista -
e que fale a língua inglesa, como um certo xenófobo chamado Donald Trump. Assim
como é significativa a leitura que se faz ali de que, no próprio país, no
próprio Brasil, vigora um discurso de superioridade "racial": um julgamento do Norte
como essencialmente retrógrado e mestiço em permanente confronto com um Sul bem
desenvolvido e europeiamente branqueado.
Não consegui ver nada se
processando de modo sutil na narrativa de Bacurau.
Muito pelo contrário. O que eu enxerguei nele foi muita crueza, porque tudo ali
me pareceu sangrento, visceral, incisivo, pulsante e sem arrodeios, como
dizemos por aqui. Bacurau, a mim me
parece, é um retrato 3X4 de uma realidade que nos é muito familiar, dada tanto,
repito, a corrupção que assola os mundos político e empresarial nestas plagas –
e não só eles – e o que aparenta ser uma propensão natural que os brasileiros
sentimos para ceifarmos as vidas uns dos outros, mantendo em dia a estatística assombrosa
de um assassinato a cada doze minutos, sem que, para tanto nem precisemos –
pelo menos a maioria de nós – recorrer a psicotrópicos do tipo que é ofertado
pelo homem muitíssimo prático que é o senhor Tony Júnior e nem a "pílulas" como as que os bacurauruenses ingerem antes de entrar em combate. Bacurau é, a bem dizer – e ainda que contida numa 3X4 -, a paisagem
de um Brasil inteiro onde o que se considera como primitivo e o que é tomado
como moderno duelam o tempo todo, provocando a inércia material, moral e social de quase toda a nação; e solapando, assim, todo e qualquer projeto que almeje conceder
um mínimo que seja de dignidade a cada cidadão de bem deste país, sobretudo, daqueles que se encontram nas camadas economicamente mais baixas da sociedade.
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