19 de outubro de 2019

Caminhabilidade nas calçadas do Recife


Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Arquivo do Autor
Calçadas largas e desobstruídas deveriam ser um imperativo e não exceções nas cidades, principalmente naquelas onde imperam trânsitos caóticos



No clássico estudo sobre Urbanismo que é Morte e vida de grandes cidades, a norte-americana Jane Jacobs teceu uma série de comentários a respeito das ruas e das calçadas no capítulo inicial da primeira parte de sua obra, que é intitulado “Os usos das calçadas: segurança”. Sim, a autora constrói a sua narrativa com ênfase na questão da violência e do medo que, segundo ela, rondam a cidade; mas o leitor pode encontrar ali considerações que também dizem respeito à mobilidade e à caminhabilidade, que são os fundamentos deste meu artigo. Jane Jacobs destaca, para começo de conversa, que as ruas de um centro urbano servem a vários fins além de comportar veículos; e que as calçadas – a parte das ruas que cabe aos pedestres – também servem a muitos fins além de abrigar pedestres. De acordo com a visão urbanística que ela imprime ao seu texto, “As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais” (Jane Jacobs. Morte e vida de grandes cidades. Trad. Carlos S. Mendes Rosa. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 29).


Tomando a conceituação dada por Jane Jacobs às ruas e às calçadas, que é o seu caráter de serem vitais para as cidades, eu quero discorrer aqui para você leitor, o que eu considero uma grande mudança de paradigma que, iniciada no ano passado, está dando cara nova a quilômetros de calçadas em alguns bairros da capital pernambucana com o chamado Programa Calçada Legal, que está sendo executado pela Autarquia de Urbanização do Recife (URB), órgão da Prefeitura Municipal do Recife. 






Nesta e na foto seguinte, trechos de calçadas da Av. Oliveira Lima já recuperadas





Quando eu digo mudança de paradigma, estou lançando os olhos para o passado de desleixo e de descaso para com a preservação e manutenção das calçadas, por um lado, enquanto, de outro, mantinha-se de maneira obstinada uma política de intervenção urbanística no Recife que era quase toda ela voltada para a abertura, alargamento, sinalização e melhoria de ruas e avenidas visando unicamente a circulação de veículos automotivos e, recentemente, de bicicletas. Ou seja, numa cidade na qual 70% de sua população faz uso de transporte público de passageiros e circula a pé em boa parte de seus deslocamentos, e que é, desde 2016, a terceira capital do país  - só perde para São Paulo e Rio de Janeiro – onde há mais registro de morte de pedestres, as sucessivas administrações municipais vinham, pelo menos desde a década de 1940, fazendo de grandes espaços do tecido citadino, canteiros de obras destinados a promover unicamente a boa circulação dos automóveis. Dito isso, o Programa Calçada Legal chega num momento em que, em âmbito nacional, talvez como nunca antes em nossa história urbana, são discutidos não somente os desafios da promoção de uma efetiva e eficiente mobilidade em cidades cada vez mais inchadas e populosas, como também meios que possibilitem o uso racional dos combustíveis fósseis ou mesmo a sua substituição pela eletricidade – a sacada da preservação ambiental entrou para valer na ordem do dia - e a diversificação dos meios de transporte, e, por fim, o entendimento, ainda que tardio, de que milhares, milhões de pessoas circulam a todo momento  pelas cidades a pé e, para tanto, elas precisam igualmente de seu quinhão de chão por onde possam caminhar com segurança e sem o risco de caírem em buracos, tropeçarem em obstáculos ou serem atropeladas pelos carros e pelas motocicletas.

A Rua do Príncipe nesta e nas quatro imagens seguintes:  este é um dos pontos onde a ação de recuperação das calçadas resultou num dos quadros,a meu ver,  mais agradáveis até aqui, porque, além de alargar onde foi possível fazê-lo, disponibilizou em um trecho, bancos que, à maneira de praças, convidam para um descanso











Há muitos anos eu circulo em longas caminhadas por ruas do Recife, principalmente em seus bairros centrais; e, como bom observador do estado geral das calçadas, sei que pedestres e caminhantes como eu - e eu fico a pensar o quanto que devem penar os cadeirantes e as pessoas que possuem outras limitações de locomoção – enfrentam para percorrer certos trechos de algumas ruas. Sim, eu sei também que, de acordo com a legislação municipal recifense a manutenção e conservação das calçadas dos imóveis particulares cabem aos seus proprietários. Mas o fato é que o poder público não tem conseguido fazer com que essas pessoas consertem e/ou reconstruam as calçadas de seus prédios, de modo que o que se vê, aqui e ali, são verdadeiras crateras que dificultam sobremaneira o ir e vir do caminhante.


Nesta e na imagem seguinte, calçadas da Rua Gervásio Pires




Novamente a Rua do Príncipe: a lamentar o fato de que, neste ponto, não houve o cuidado de instalar uma encanação para que essa água servida que se vê na foto não escorresse sobre a calçada. Aqui o serviço não foi bem feito






Flagrante na Rua da União: observem a ocupação da calçada , que já é estreita, com poste, fiteiro e barraca. E ainda tem essas motos para atrapalhar o pedestre


Outro flagrante na Rua da União: calçadas deterioradas são obstáculos para qualquer caminhante e ainda mais para cadeirantes e pessoas que possuam outro tipo de dificuldade de locomoção


Rua do Riachuelo: esta calçada esburacada fica por trás da Faculdade de Direito do Recife





Nesta e nas imagens seguintes, flagrantes da Rua do Hospício, onde, além de buracos nas calçadas, veem-se vários fiteiros tomando conta de certos trechos dela
















Não são apenas as calçadas deterioradas que por si só atrapalham os deslocamentos que se faz a pé. Igualmente geram dificuldades de locomoção a falta de rampas para cadeirantes; a obstrução com barracas, fiteiros, cadeiras de bares, placas de sinalização, postes e comércio informal; e o estreitamento por vezes excessivo de algumas calçadas que obriga o indivíduo a pegar a pista e arriscar-se a ser atropelado.



Rua Princesa Isabel: assim como ocorreu em outros logradouros, também aqui a Prefeitura tratou de requalificar as calçadas mas não promoveu reordenamento e/ou remoção de barracas e fiteiros, neste que é um dos pontos críticos de ocupação do espaço público









A ação de reconstrução de calçadas que por ora está sendo levada a cabo pela Prefeitura do Recife, como eu venho acompanhando, já transformou passagens em ruas como a do Riachuelo, do Príncipe e Gervásio Pires e na Av. Rui Barbosa. Sem contar que o grande projeto de revitalização da Av. Conde da Boa Vista, um dos corredores mais emblemáticos da capital, também está disponibilizando passeios mais largos para o transeunte.


Flagrantes de obras na Av. Conde da Boa Vista: calçadas recuperadas e ganho de espaço para o pedestre







Em A imagem da cidade (Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 123), o também norte-americano Kevin Lynch analisa vários aspectos do universo urbano de modo muito didático, entre os quais, o sistema viário, onde reinam os automóveis; e em dado momento ele sentencia algo que parece ser tão óbvio mas que, ainda assim, é ignorado talvez de maneira proposital pelos nossos prefeitos: “A cidade não é construída para uma pessoa, mas para um grande número delas, todas com grande diversidade de formação, temperamento, ocupação e classe social”. Sob esse prisma, ao promover a reconstrução de calçadas, a Prefeitura do Recife está conferindo ao pedestre uma dignidade que ele nunca deveria perder.

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