Por Clênio Sierra de Alcântara
Fotos: Arquivo do Autor Calçadas largas e desobstruídas deveriam ser um imperativo e não exceções nas cidades, principalmente naquelas onde imperam trânsitos caóticos |
No clássico estudo sobre
Urbanismo que é Morte e vida de grandes cidades, a norte-americana Jane Jacobs
teceu uma série de comentários a respeito das ruas e das calçadas no capítulo
inicial da primeira parte de sua obra, que é intitulado “Os usos das calçadas:
segurança”. Sim, a autora constrói a sua narrativa com ênfase na questão da
violência e do medo que, segundo ela, rondam a cidade; mas o leitor pode
encontrar ali considerações que também dizem respeito à mobilidade e à
caminhabilidade, que são os fundamentos deste meu artigo. Jane Jacobs destaca,
para começo de conversa, que as ruas de um centro urbano servem a vários fins
além de comportar veículos; e que as calçadas – a parte das ruas que cabe aos
pedestres – também servem a muitos fins além de abrigar pedestres. De acordo
com a visão urbanística que ela imprime ao seu texto, “As ruas e suas calçadas,
principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais” (Jane
Jacobs. Morte e vida de grandes cidades. Trad. Carlos S. Mendes Rosa. 1ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 29).
Tomando a conceituação dada
por Jane Jacobs às ruas e às calçadas, que é o seu caráter de serem vitais para
as cidades, eu quero discorrer aqui para você leitor, o que eu considero uma
grande mudança de paradigma que, iniciada no ano passado, está dando cara nova
a quilômetros de calçadas em alguns bairros da capital pernambucana com o
chamado Programa Calçada Legal, que está sendo executado pela Autarquia de
Urbanização do Recife (URB), órgão da Prefeitura Municipal do Recife.
Quando eu digo mudança de
paradigma, estou lançando os olhos para o passado de desleixo e de descaso para
com a preservação e manutenção das calçadas, por um lado, enquanto, de outro,
mantinha-se de maneira obstinada uma política de intervenção urbanística no
Recife que era quase toda ela voltada para a abertura, alargamento, sinalização
e melhoria de ruas e avenidas visando unicamente a circulação de veículos
automotivos e, recentemente, de bicicletas. Ou seja, numa cidade na qual 70% de
sua população faz uso de transporte público de passageiros e circula a pé em
boa parte de seus deslocamentos, e que é, desde 2016, a terceira capital do
país - só perde para São Paulo e Rio de
Janeiro – onde há mais registro de morte de pedestres, as sucessivas
administrações municipais vinham, pelo menos desde a década de 1940, fazendo de
grandes espaços do tecido citadino, canteiros de obras destinados a promover
unicamente a boa circulação dos automóveis. Dito isso, o Programa Calçada Legal
chega num momento em que, em âmbito nacional, talvez como nunca antes em nossa
história urbana, são discutidos não somente os desafios da promoção de uma
efetiva e eficiente mobilidade em cidades cada vez mais inchadas e populosas,
como também meios que possibilitem o uso racional dos combustíveis fósseis ou
mesmo a sua substituição pela eletricidade – a sacada da preservação ambiental
entrou para valer na ordem do dia - e a diversificação dos meios de transporte,
e, por fim, o entendimento, ainda que tardio, de que milhares, milhões de
pessoas circulam a todo momento pelas
cidades a pé e, para tanto, elas precisam igualmente de seu quinhão de chão por
onde possam caminhar com segurança e sem o risco de caírem em buracos,
tropeçarem em obstáculos ou serem atropeladas pelos carros e pelas motocicletas.
Há muitos anos eu circulo em
longas caminhadas por ruas do Recife, principalmente em seus bairros centrais;
e, como bom observador do estado geral das calçadas, sei que pedestres e
caminhantes como eu - e eu fico a pensar o quanto que devem penar os
cadeirantes e as pessoas que possuem outras limitações de locomoção – enfrentam
para percorrer certos trechos de algumas ruas. Sim, eu sei também que, de
acordo com a legislação municipal recifense a manutenção e conservação das
calçadas dos imóveis particulares cabem aos seus proprietários. Mas o fato é
que o poder público não tem conseguido fazer com que essas pessoas consertem
e/ou reconstruam as calçadas de seus prédios, de modo que o que se vê, aqui e
ali, são verdadeiras crateras que dificultam sobremaneira o ir e vir do
caminhante.
Nesta e na imagem seguinte, calçadas da Rua Gervásio Pires |
Flagrante na Rua da União: observem a ocupação da calçada , que já é estreita, com poste, fiteiro e barraca. E ainda tem essas motos para atrapalhar o pedestre |
Outro flagrante na Rua da União: calçadas deterioradas são obstáculos para qualquer caminhante e ainda mais para cadeirantes e pessoas que possuam outro tipo de dificuldade de locomoção |
Rua do Riachuelo: esta calçada esburacada fica por trás da Faculdade de Direito do Recife |
Nesta e nas imagens seguintes, flagrantes da Rua do Hospício, onde, além de buracos nas calçadas, veem-se vários fiteiros tomando conta de certos trechos dela |
Não são apenas as calçadas
deterioradas que por si só atrapalham os deslocamentos que se faz a pé. Igualmente
geram dificuldades de locomoção a falta de rampas para cadeirantes; a obstrução
com barracas, fiteiros, cadeiras de bares, placas de sinalização, postes e
comércio informal; e o estreitamento por vezes excessivo de algumas calçadas
que obriga o indivíduo a pegar a pista e arriscar-se a ser atropelado.
A ação de reconstrução de
calçadas que por ora está sendo levada a cabo pela Prefeitura do Recife, como eu
venho acompanhando, já transformou passagens em ruas como a do Riachuelo, do
Príncipe e Gervásio Pires e na Av. Rui Barbosa. Sem contar que o grande projeto
de revitalização da Av. Conde da Boa Vista, um dos corredores mais emblemáticos
da capital, também está disponibilizando passeios mais largos para o
transeunte.
Flagrantes de obras na Av. Conde da Boa Vista: calçadas recuperadas e ganho de espaço para o pedestre |
Em A imagem da cidade (Trad.
Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 123), o
também norte-americano Kevin Lynch analisa vários aspectos do universo urbano de modo muito didático,
entre os quais, o sistema viário, onde reinam os automóveis; e em dado momento
ele sentencia algo que parece ser tão óbvio mas que, ainda assim, é ignorado
talvez de maneira proposital pelos nossos prefeitos: “A cidade não é construída
para uma pessoa, mas para um grande número delas, todas com grande diversidade
de formação, temperamento, ocupação e classe social”. Sob esse prisma, ao
promover a reconstrução de calçadas, a Prefeitura do Recife está conferindo ao
pedestre uma dignidade que ele nunca deveria perder.
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