12 de outubro de 2019

Sobre ler e escrever e compartilhar conhecimentos e aprendizados

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Arquivo do Autor
Edizia Rodrigues e Vanessa Morgana: professoras comprometidas com a formação de seus alunos e exemplos de que a educação pública deste país possui mestres com excelência profissional



Uma recordação

Em alguma medida eu sempre fui um entusiasta da educação, mesmo quando eu não tinha plena consciência disso. Digo isso, porque, ainda criança, num tempo em que eu não tinha quem me vigiasse e cuidasse integralmente de mim, porque éramos somente eu e minha mãe em casa e ela, que era mãe solteira e batalhava muito para me criar, trabalhava fora, em outra cidade e não em Abreu e Lima, onde morávamos. Deste modo eu bem que poderia deixar de ir às aulas, mas jamais eu fiz isso, porque eu sabia desde ali que a escola era algo muito importante para mim e para minha mãe, que se esforçava para comprar meu material escolar bem como a farda, que eu sempre gostei de usar; e não só farda, mas também sapatos, porque eu considerava desrespeitoso e inadequado ir à escola de chinelo ou sandália. E, como eu compreendia que passar de ano era um imperativo de quem se dedicava realmente aos estudos, foi com um imenso pesar que eu recebi o boletim com as notas finais no qual constava que eu fora reprovado em Matemática e, por isso, teria de repetir a antiga 6ª série. Recordo que eu chorei bastante naquela tarde de 1986; e que eu fiquei envergonhado demais por haver desapontado a minha mãe. Nunca eu vou esquecer isso.



Praça Ten Sebastião Carieli da Silva, em São Lourenço da Mata, cenário onde aconteceu o V Picnic Litemático: a participação de alunos, pais de alunos e da comunidade escolar corroboraram uma iniciativa que vem dando certo há cinco anos e que já se consolidou no calendário da Escola Estadual Dr. Leôncio Gomes de Araújo




Ludicidade e conhecimento juntos num evento fundamentalmente pensado para promover a educação




Estudei toda a vida em escolas e universidade públicas; e isso diz muito de certas deficiências que eu tive em minha formação e do meu conhecimento do sistema público de ensino. Quando eu tentei ingressar na universidade e, posteriormente, já frequentando as aulas na faculdade, foi que eu me dei conta da precariedade do ensino que me fora ofertado; e do quão me fizeram falta os conteúdos que não me foram ensinados nos períodos em que não havia professores para ministrar aulas de uma disciplina e outra, de modo que eu e os meus colegas do então chamado 2º Grau chegávamos a ficar meses sem acesso a matérias como Química e Física, porque não existiam professores suficientes na Escola Polivalente de Abreu de Lima.











As imagens que eu guardei dos meus derradeiros anos ali não são nada animadoras, pelo contrário, elas até certo ponto me revoltam, porque eu sei que havia muitos talentos naquela escola e eles de alguma forma se perderam pelo caminho, porque a precariedade do sistema público de ensino, que então vigorava, não proporcionou àquelas pessoas, entre as quais eu me incluía, oportunidades concretas de enxergar o conhecimento como um instrumento de efetiva transformação social, uma vez que a elas, a nós, era negado até o que estava programado nos currículos das disciplinas; ou seja, passávamos de ano sem ter aprendido o que era necessário aprender.













Oficina de Lettering








O convite

Desde o ano passado eu vinha sendo sondado por um companheiro de trabalho, meu amigo Jadiel Santos, para participar de um projeto que a sua esposa Edizia Rodrigues, professora de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino, começou a realizar em 2015, na cidade de São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do Recife, onde fica a Escola  Estadual Dr. Leôncio Gomes de Araújo, unidade de ensino na qual ela leciona. Pois bem, ao nos encontrarmos pessoalmente num Chá de fraldas promovido por um casal de amigos que temos em comum, o convite foi oficialmente feito, digamos assim, e eu de pronto o aceitei.






E no que consistia o tal projeto escolar? Bem, o V Picnic Litemático, que neste ano tomou como tema o universo do escritor paulista Monteiro Lobato e foi denominado “Emília no país da gramática e da aritmética”, reuniria diversas dinâmicas que exploravam, com a participação dos alunos, conteúdos tanto das aulas de Língua Portuguesa como das de Matemática, esta ministrada pela professora Vanessa Morgana que, junto com Edizia Rodrigues, elaborou e conduziu as edições mais recentes do evento. Certo, tudo foi explicado direitinho e claramente para mim. Mas, onde é que eu entraria nisso? Edizia Rodrigues então me esclareceu que, como meta de incentivar, divulgar, promover e principalmente estimular o gosto pela leitura entre os estudantes – não apenas os da escola onde ela leciona como também de outras, porque ela divulga a realização do evento em outras unidades de ensino; além do que, tudo acontece em praça pública, o que acaba sendo um convite à participação de toda comunidade do entorno da Escola Estadual Dr. Leôncio Gomes de Araújo -, a cada edição ela convida um escritor para que ele fale para a plateia sobre o seu processo criativo, a importância da leitura em nossa vida, como conseguiu publicar suas obras, seus autores favoritos e por aí vai, de maneira que os alunos e o público em geral que compareça para prestigiar o Picnic Litemático conheçam bem de perto alguém que escreve e publica livros, desfazendo, por exemplo, a ideia que eles têm  e/ou tinham de que o escritor e a escritora são pessoas que estão muito distantes da realidade deles e que, sim, esses homens e mulheres podem ainda estar vivos: um dos alunos da Edizia chegou a indagá-la se todos os escritores já haviam morrido, vejam só.



A fila do algodão doce foi bem concorrida


Jadiel Santos, amigo de longa data




Hora de sacudir o corpo, hora da street dance: coreografia ensaiada e ampla participação dos alunos












Quem não respondeu certo levou torta na cara: aprender  também pode ser muito divertido



O tradicional Quebra panela foi substituído por um Estoura bexiga





Muito mais do que uma atividade extraclasse


Embora fosse a primeira vez que eu iria palestrar para estudantes na condição de escritor, eu me dirigi na manhã de ontem à Praça Ten Sebastião Carieli da Silva, localizada no Loteamento Bela Vista, no bairro Capibaribe, em São Lourenço da Mata, muito tranquilo e ciente tanto do papel que me caberia desempenhar ali quanto da importância do evento em si como uma rica proposta não somente de interdisciplinaridade como também de envolvimento do corpo discente em atividades que saiam das quatro paredes da sala de aula e lhes ofereçam outras oportunidades e maneiras de adquirir conhecimentos experimentando diferentes modos de interação e de aprendizado.



Atividades intercalaram saberes de Matemática e de Língua Portuguesa








Quando cheguei à praça e vi a tenda armada e o grande movimento de estudantes, eu disse a mim mesmo que eu fizera muito bem em ter aceitado o convite para participar daquela iniciativa. E à medida que eu fui sendo apresentado a algumas pessoas, como a professora Vanessa Morgana e a estudante Bianca Celerino, que se destacou numa etapa da Olimpíada de Língua Portuguesa, e fui circulando pelo ambiente, eu pude ver de pertinho o zelo e o primor com que materiais de apoio a serem utilizados nas dinâmicas foram elaborados, em alguns casos reciclando coisas como garrafas de plástico e arame, e também a proposta de dar um uso diferente do original a objetos como uma gaiola de passarinho, eu me certifiquei de que, sem sombra de dúvida, mais, muito mais do que uma atividade extraclasse, o Picnic Litemático capitaneado por Edizia Rodrigues e Vanessa Morgana era um grande acontecimento social naquela comunidade; e que, apesar de não contar com a participação efetiva de todo o corpo docente da escola onde elas lecionam, consegue o apoio primordial da gestora daquela unidade de ensino e envolve muitos dos pais dos alunos, que buscam colaborar de uma forma ou de outra fazendo, por exemplo, fantasias para os filhos – uma espevitada “boneca” Emília estava por lá – e até um creme para ser utilizado na brincadeira de perguntas e respostas chamada Torta na cara, além de lembrancinhas como lápis decorados com cabeças da Emília feitas com biscuit. Ou seja, os entraves e os desafios não têm conseguido diminuir o entusiasmo e nem o comprometimento de Edizia Rodrigues e de Vanessa Morgana para com o desenvolvimento cognitivo das crianças e dos adolescentes sobre as quais elas têm responsabilidades enquanto educadoras.






A boneca Emília deu o ar de sua graça no evento







Emília lendo um dos meus poemas que foi libertado da gaiola





Fala escritor!

No momento em que eu empunhei o microfone e comecei a falar para aquela fervilhante e inquieta plateia, me chegaram à lembrança episódios de minha vida escolar; e eu enxerguei em todos aqueles olhares que a mim eram dirigidos indagações, dúvidas, curiosidades e incertezas quanto ao futuro que eu sentira quando tive as idades daquelas pessoas.


Esta e as dez fotos seguintes são registros feitos por Jadiel Santos.Falar para essa plateia significou muito para mim, porque eu compreendo que o conhecimento que se acumula deve ser de alguma forma compartilhado























Minha fala não foi demasiadamente longa. No roteiro mental que eu elaborara seguindo a proposta da Edizia Rodrigues, eu disse da minha origem; dos exercícios da leitura e da escrita e da enorme importância que eles têm em nossa vida independentemente da profissão que escolhamos exercer; falei do modo ao qual eu recorri para conseguir publicar os meus livros; e os estimulei a ler e a escrever dizendo que isso certamente os auxiliaria a decifrar o mundo e a entenderem a si próprios enquanto integrantes desse mundo.

O meu discurso foi acompanhado pela distribuição de exemplares de obras de minha autoria entre os alunos que tiveram melhor desempenho em cada ano – no meu tempo se dizia série.


Educador é profissão para os fortes



Vanessa e Edizia com algumas de suas alunas


Foi muito bom, meninas, ter participado desse projeto com vocês.  Muito obrigado!


Pertinho do meio-dia eu segui com Edizia Rodrigues e alguns estudantes para que eu  pudesse conhecer a Escola Estadual Dr. Leôncio Gomes de Araújo.Tem-se de vencer uma ladeira bastante íngreme para chegar a ela, caso se tome o caminho a partir da Praça Ten Sebastião Carieli da Silva ou da rua que a ladeia.

Foi com certa melancolia que eu olhei para os muros daquela escola que, a exemplo de outras unidades da rede estadual de ensino que eu conheço, localizadas em subúrbios, e por uma alegada falta de segurança  e como meio de coibir a ação de criminosos que vez por outra cometem arrombamentos e furtos nesses estabelecimentos, elas foram gradeadas ou tiveram seus muros elevados, ficando com a aparência de unidades prisionais, um paradoxo imenso, quando, como bem pregava Paulo Freire, educação deve ser tomada como prática da liberdade.



Edizia defronte à escola onde leciona: compromisso e garra definem bem o papel que ela desempenha ali




Meu sentimento de tristeza e de desapontamento só aumentava enquanto Edizia Rodrigues ia me apresentando os espaços que constituem o seu local de trabalho. Tudo o que eu vi estava limpo e bem organizado. Mas lá não existe biblioteca e sim uma sala de leitura; os alunos não dispõem de uma quadra esportiva; e o espaço que eles têm para ficar na hora do recreio é estéril e muito pequeno. Confesso que eu fiquei um pouco abatido enquanto estive naquele ambiente. E, em que pese o acanhamento do prédio da escola, a merenda que eu comi como almoço na sala dos professores enquanto conversava com a Edizia, era de muito boa qualidade: a cozinheira Vanda nos serviu arroz, feijão e frango guisado – Edizia ainda comeu carne de charque. Na refeição eu só senti falta de legumes e de verduras.


Uma louvação mais do que merecida


Mestra e discípula: Edizia Rodrigues com uma de suas aplicadas alunas,  Bianca Celerino



Todas as lições sobre educação formal eu aprendi com a maioria dos professores que eu tive e com as leituras que fiz durante muitos anos da revista Nova Escola, dos artigos de Claudio de Moura Castro e Gustavo Ioschpe e, fundamentalmente, de várias obras de mestre Paulo Freire que, apesar dos constantes ataques ao seu legado desferidos pelo atual status quo, permanecerá sendo o grande e principal farol a iluminar as discussões que se fizer sobre educação neste país.

Conversar com Edizia Rodrigues, que é educadora desde 1998 e passou a lecionar na Escola Estadual Dr. Leôncio Gomes de Araújo em 2014, me encheu de uma esperança sem par de que, apesar dos pesares, existem educadores neste país realmente comprometidos com a profissão que eles escolheram exercer. Edizia me falou de obstáculos que enfrentou e enfrenta para conseguir levar suas ideias e propostas adiante na escola; contou com orgulho do esforço e do brilhantismo de vários de seus alunos; e, cheia de si e com os olhos brilhando, ela, que é tão delicada e comedida, me disse assim: “Eu estou vivendo o meu melhor momento na educação, porque eu estou conseguindo realizar coisas que eu queria fazer”.

Hoje, dia 12 de outubro, Edizia Rodrigues está completando 45 anos de idade. Pelo que ela é, pelo que ela inspira e pela coragem, empenho e determinação que ela tem, eu sou levado a dizer e a acreditar que não é só ela que está de parabéns, mas também toda a comunidade da Escola Estadual Dr. Leôncio Gomes de Araújo que pode se vangloriar de possuir no seu corpo docente uma pessoa do nível, da capacidade, da força e do valor que Edizia Rodrigues possui. Para mim foi um grande privilégio conhecê-la e ter participado do Picnic Litemático.

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