7 de dezembro de 2019

Contrastes sociais e muitos confrontos com policiais

Por Clênio Sierra de Alcântara

À memória de João Cândido, o valente “almirante negro”, falecido há exatamente cinquenta anos, de quem a Marinha do Brasil de tudo fez para subtrair-lhe qualquer mínimo resquício de dignidade

Foto: Tuca Vieira
  Favela de Paraisópolis ao lado de um condomínio de luxo.
Contrastes e confrontos: inseridos num sistema de valores morais e éticos que nos torna reféns do consumo material desenfreado, estamos cada vez mais obcecados em unicamente atender as nossas necessidades, não importando quais sejam as necessidades do outro, porque a vida do outro não nos diz respeito. É o imperativo da lei do "ter para ser" que, não duvido, faz com que tantos de nós acreditemos que a vida de um morador de um edifício de alto padrão valha mais, muito mais do que a de um favelado


Vivemos numa sociedade que é tão covarde, tão brutal, tão preconceituosa e tão assassina, de um modo geral, e, em particular, para com os pobres e desvalidos, que não raro o desaparecimento, a morte, o assassinato de alguém, ainda mais se esse alguém não for um nosso conhecido, é tomado como um fato corriqueiro da vida e como algo que não nos diz respeito.

Sim, infelizmente, somos uma nação onde viceja, em ritmo muito acelerado, o desapreço, o desprezo e o desamor para com as necessidades do outro, para com as dores do outro, para com as aspirações do outro, enfim, para com a existência do outro. Agimos comumente ou pelos menos temos agido comumente como se fôssemos máquinas, robôs programados tão somente para sermos consumidores vorazes de tudo quanto é aparelho eletrônico, de tudo quanto é artigo de moda, de tudo quanto é volátil, fútil e pouco duradouro para que a engrenagem nunca pare de rodar e permaneçamos ininterruptamente buscando uma satisfação que nunca é saciada e que ainda por cima nos petrifica e nos insensibiliza para com a dor e o sofrimento alheio. É como se pensássemos que vivemos em redomas individuais e invioláveis e, por ser assim, o outro não pode nos afetar e, portanto, não nos interessa.

É claro que pelas imagens não dá para saber se houve desacato e desrespeito e, se houve, o tanto que os policiais militares que aparecem nos vídeos mostrados nas TV’s e na internet, batendo em homens e mulheres em festas ocorridas na madrugada do último domingo nas favelas paulistanas de Heliópolis e de Paraisópolis, foram desacatados e desrespeitados por todas aquelas pessoas que eles atacaram de várias maneiras. O que vemos claramente são policiais soltando o sarrafo e agredindo fisicamente inúmeros indivíduos, como se seguissem um protocolo rígido de ação.

Não deve ser nada fácil ser policial militar num país como este Brasil, onde as leis punitivas para infratores de toda espécie acabam sendo tomadas como estimulantes pelos delinquentes, que não hesitam em traficar drogas e em cometer estupros, assassinatos e latrocínios porque, dada a fraqueza do arcabouço legal brasileiro, o infrator, o ladrão, o assassino que, muitas vezes, porta armamentos muito mais potentes do que os dos policiais militares, não passa muito tempo atrás das grades, não paga efetivamente pelos crimes que praticou; não, ele volta para a rua com a maior cara lisa do mundo para cometer as mesmas e talvez maiores atrocidades do que as que já havia cometido. Não deve ser nada fácil ser policial militar num país de passado escravocrata e, talvez por isso, de contrastes sociais tão gigantescos, no qual vigora não só uma repelência, mas uma espécie de ódio mortal para com os despossuídos e os moradores das periferias; e caso esse despossuído, esse periférico seja negro e ainda por cima more numa favela, aí pronto, isso é praticamente uma senha para o sujeito ser agredido e/ou abatido em qualquer abordagem policial. Brancos têm sempre um qualificativo. Negros têm sempre um desqualificativo.

Favela é uma aglomeração urbana normalmente tomada como sinônimo de coisa ruim: é reduto de ladrões, é esconderijo de traficantes, é lugar da ilegalidade, é território do medo, é, enfim, a pior parte da cidade. As generalizações desse tipo não se ocupam de ver nas favelas as associações de moradores que lutam junto às Prefeituras por melhoria de infraestrutura; não reconhecem os projetos sociais empenhados em fazer o que o Estado não faz, que é conceder ao favelado a condição de cidadão; não prestigiam e nem valorizam os talentos que existem ali; e não têm conhecimento do trabalho de muitas Marias e de muitos Josés que todos os dias de alguma forma labutam para imprimir um mínimo que seja de dignidade às suas vidas e às dos seus filhos.

Eu e muito provavelmente você que está lendo este artigo não tem preparo e nunca recebeu instrução para combater ações de criminosos à mão armada, mas policiais militares com toda certeza sim, porque eles passam por um processo de formação depois de vencerem outras etapas do concurso público. Dito isso, me vêm dois questionamentos: será que os policiais militares que agiram como agiram em Heliópolis e Paraisópolis puseram em prática os ensinamentos e as ordens recebidas na caserna ou atuaram de maneira arbitrária ignorando os preceitos da lei e as regras do Regulamento Disciplinar da Corporação? Será que se trata de política pública de Estado formar policiais militares que ignorem o fato de que gente é gente em todo e qualquer estrato social e que cabe ao Estado dar proteção a todos os seus cidadãos sem fazer distinção para tanto?

Ouvi uns e outros dizerem que se aquela gente toda que foi aos bailes funk em Heliópolis e em Paraisópolis tivesse escolhido ficar em casa e não ido a festas “onde só tem traficante”, ninguém teria sido morto, pisoteado e nem espancado. Favelado não pode se divertir? Favelado não pode ter vida social? Quais são as opções de divertimento e de lazer que adolescentes e jovens adultos moradores de favela podem usufruir numa sociedade tão excludente como o é a nossa? Existem Villa Mix e Lollapalooza para pobres? Por que a Polícia Militar age como se apenas em festas da periferia pudesse encontrar drogas e armas em circulação?

Não é por acaso que a Polícia Militar brasileira é a que mais mata no mundo e também a que mais morre. Isso se dá, acredito, porque no Brasil se “instituiu” a morte em ações policiais como indicativo de pronto atendimento, de resolução de conflito e de eficiência da tropa. Se “bandido bom é bandido morto”, vamos sair por aí atirando, porque, já que quando bandido é preso, a lei não o prende direito, é melhor mesmo matá-lo. Não deve ser nada fácil ser policial militar num país com tão pouco senso de respeito à vida humana como este Brasil, onde critérios como raça, credo, orientação sexual, cor, gênero e classe social são como que um atestado para que determinados indivíduos sejam os próximos alvos de mais uma muito bem planejada ação da nobre, honrada e briosa tropa.

Eu fico imaginando o que é que se passa na cabeça de um policial militar de origem humilde que é ele próprio e/ou os seus parentes, moradores de periferia, na hora em que ele parte para o combate em ações como as que foram efetuadas em Heliópolis e  em Paraisópolis. Não deve ser nada fácil ser policial militar num país onde vigora no seio da sociedade o entendimento de que os Direitos Humanos “só existem para proteger bandidos”, o que não deixa de ser, por assim dizer, um discurso que estimula e legitima a revolta interior de uns e outros para fazer justiça com as próprias mãos.

Vivemos numa permanente guerra; e creio que isso só tende a piorar dada a baixíssima qualidade dos valores morais e éticos que cultivamos com tanto empenho. Se o inferno existe, ele deve ser um lugar povoado por uma gente igual aos habitantes deste país.


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