30 de outubro de 2021

Absurdos absurdos (III)

Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
 Terra de Ninguém: como se fosse a coisa mais natural do mundo, no Brasil os espaços públicos são invadidos e tudo fica por isso mesmo. Todos se acham no direito de desobedecer às leis de Uso e Ocupação do Solo e ainda reclamam da cidade desorganizada



Uma das razões do nosso atraso social, creio eu, é o desrespeito que mantemos para com o espaço público. De uma maneira ou de outra quase sempre enxergamos o espaço, a área pública como e ela fosse uma terra de ninguém, na verdade; daí por que agimos com desrespeito para com ela jogando lixo nas ruas, por exemplo; e consideramos que podemos de algum modo ocupá-la ao nosso bel-prazer, esquecendo, digo melhor, ignorando que existem regras, que existem leis, que existem limites para isso, porque o público é coletivo e ninguém pode fazer o que bem entender e quer sobre tal espaço.

Outra razão que qualifica a sociedade brasileira como sendo acentuadamente atrasada é a disposição que habitualmente temos de aceitarmos a anormalidade como uma coisa normal; o desmando, a usurpação, o desrespeito, a falta de civilidade, a falcatrua e toda uma infinidade de práticas daninhas para o bem coletivo, para o bem comum são toleradas e praticadas como algo normal; e esse modo de encarar o convívio social é que faz com que, no mais das vezes, pratiquemos esses males sem que nos tomemos como infratores, seguindo o estúpido raciocínio de que se todos ou a maioria faz isso e aquilo, eu também posso fazer porque é normal e eu não serei punido e nem cobrado por isso. Ou seja, há, em muitos de nós, uma crença na impunidade de tal grandeza que faz com que cometamos ilícitos e acreditemos e defendamos nossas ações dizendo que não agimos errado e não cometemos nenhum crime, nenhuma infração.

Considero um verdadeiro acinte, por um lado, e uma inteira e completa falta de ação, por outro, o fato de que ocupações do espaço público ocorram e o poder público seja leniente para com isso. Conheço de perto casos desse tipo de ocupação que é tão flagrantemente absurda e as autoridades responsáveis por fazer valer o ordenamento urbano nada fazem; casos que se prolongam por anos a fio e, por isso – e aos olhos de muitos -, como eu disse, caem na vala comum da “normalidade”. Entra governante e sai governante e a desordem e o caos e os absurdos absurdos aqui e ali permanecem como chagas irremovíveis em diversos espaços das cidades. E, como a maioria dos políticos brasileiros pensa em ganhos eleitorais e não propriamente no bem-estar social, eles vão protelando, fazendo de conta que não veem e empurrando com a barriga esses casos porque, segundo a autoavaliação que eles fazem, não vão mexer numa coisa dessa e se arriscar a perder votos.

Quem passa pela rodovia PE-015, no bairro de Jatobá, em Olinda, se depara, há muitos e muitos anos, com um caso que expressa com evidente vigor a nossa falta de civilidade e de respeito à ordem que, diga-se de passagem, deve valer para todo e qualquer estrato social. Ali, no trecho entre as ruas  Esquilo e Ouriço do Mar estão instaladas a Escola Estadual Aurea de Moura Cavalcanti e a Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho). O quadro é um horror: barracas de aço e construções de alvenaria, todas comerciais, ocuparam quase todo o espaço defronte à escola, deixando apenas o portão dela livre; já na área correspondente à faculdade, apenas um pequeno trecho no lado direito foi ocupado por um bar. O que fica evidenciado ali é que, com certeza, com toda certeza, a faculdade, que é particular, coibiu a ocupação e fez valer os ditames da lei; agora no espaço da escola, que é pública e cuja fachada nem pode ser vista por quem passa pela rodovia, porque ela ficou escondida atrás das construções irregulares, a coisa ganhou enorme proporção porque o espaço é público e, sendo assim, “a gente pode ocupar porque o Governo não vai fazer nada”, como ouço tantos dizerem.


Dá para ver que lá atrás está a Escola Estadual Aurea de Moura Cavalcanti? As invasões foram se processando ao longo de muitos anos sem que as autoridades competentes esboçassem qualquer reação contrária a esse absurdo






E ainda houve quem invadisse a área e abandonasse a construção que levantou no local




Faculdade de Ciências Humanas de Olinda: aqui, pelo menos a área da entrada da instituição não foi invadida. De qualquer forma é um contraste com o prédio público que fica bem ao lado










Outro caso de tamanha malignidade e degradação do território urbano pode ser encontrado no bairro do Pilar, defronte, imaginem, à Prefeitura da Ilha de Itamaracá. Ali, na esquina da Av. João Pessoa Guerra com a Rua Santino Alves de Sá, um portão da Escola Alberto Augusto de Morais Pradines foi, sem exagero, engolido por barracas fixas onde se comercializam lanches. Não satisfeitos em poder comercializar no local, as pessoas consideraram que tinham de construir barracas e se fixar junto ao muro da escola como se isso fosse perfeitamente legítimo e permitido.

Todo trabalho honesto é valoroso e digno. Mas é honesto ocupar deliberadamente um espaço que não me pertence sem obedecer à regra nenhuma alegando simplesmente que todo mundo precisa trabalhar para sobreviver? É honesto desrespeitar as leis e infringir condutas que valem e/ou deveriam valer para todos? Alguém já pensou em acordar um dia e se deparar com o muro e/ou a frente de sua casa ocupados por alguém seja para que fim for? Não seria um inteiro e completo absurdo? Será que de pronto não partiríamos para tomar satisfações e tratar de tirar logo o invasor dali? E por que que não se considera um absurdo quando isso ocorre, por exemplo, nos casos relatados aqui?


Acreditem, entre a barraca amarela e a azul está um portão de entrada da Escola Alberto Augusto de Morais Pradines, na Ilha de Itamaracá, cidade de poucos habitantes onde imperam os mais absurdos absurdos flagrantes de desordenamento urbano e ocupação indevida do espaço público. Como pode ser isso, gente? Como se admite que algo dessa natureza continue acontecendo? As leis que ordenam uma cidade, afinal de contas, servem para quê?



Olha o portão aí






As demais barracas que ocupam o muro da escola



Em primeiro plano as barracas; e, lá no fundo, à esquerda, a Câmara Municipal, e, à direita, a Prefeitura da Ilha de Itamaracá. A foto não registrou, mas ao lado da Câmara estão instaladas vários bares e um pequeno restaurante. Na Ilha de Itamaracá, ao que parece, tudo o que for de irregular na ocupação e no uso do solo e no ordenamento urbano é permitido



Eu poderia enumerar neste artigo vários e vários casos dessa natureza envolvendo apenas unidades escolares porque eu tenho um olhar atento a esse tipo de desordenamento urbano; escolhi descrever e citar aqueles dois porque, a meu ver, eles simbolizam o que eu vinha dizendo no início dessa narrativa, do desprezo e do desrespeito que nós temos para com os espaços públicos; e se isso é decorrente de nosso baixo nível moral e fundamentalmente educacional – e eu não duvido que seja -, os dois exemplos citados evidenciam, também, o elevadíssimo grau de desprezo e de desrespeito que mantemos para com a instituição escolar neste país, o que, de resto, resvala para toda a nossa indigência e para todos os absurdos absurdos que, como vírus incapacitantes e como ervas daninhas proliferam incessantemente nos quatro cantos desta nação.

Um comentário:

  1. A ocupação desordenada em nosso país e uma patologia social que muita das vezes, quem ocupa esse lugares públicos, 90 por cento das vezes são pessoas que já possuem imóveis e essa ocupação tem se transformado em uma verdadeira industria com objetivo apenas de lucrar. Enquanto isso, as autorudades cruzam os braços , enquanto a marginalidade cercam de forma desordenadas esses espaços.

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