6 de novembro de 2021

Preservação patrimonial, música e sol poente: tardezinha no Hotel Globo

 Por Sierra

 

Fotos: Arquivo do Autor
 Léo Meira e Marcos Rosa deram o tom na tardezinha do Hotel Globo


Ocupar, bem ocupar, melhor dizendo, um prédio histórico é, a meu ver, uma das melhores maneiras de preservá-lo e de mantê-lo como memória viva dentro da memória do lugar em que ele foi construído. Edificações, em geral, e edificações classificadas como históricas, em particular, não são apenas referências de localização no espaço de uma cidade; elas constituem uma espécie de marco temporal, digamos assim; elas são marcos temporais, registros edificados do passado que inescapavelmente passam a fazer parte não só da memória urbana da cidade, mas também da nossa memória afetiva.


O Hotel Globo: patrimônio histórico restaurado, vivo e muito frequentado na capital paraibana













Quem acompanha o que eu escrevo sabe que eu sou um crítico contumaz do estado de abandono e de degradação em que há anos se encontra o Varadouro, o lugar de nascimento da capital da Paraíba, onde se encontram as edificações mais antigas daquela cidade. É sempre com pesar que eu revejo prédios abandonados em logradouros bastante significativos como as ruas Barão do Triunfo e da Areia; e no chamado Centro, nas ruas Visconde de Pelotas e Duque de Caxias, por exemplo, mas não só nessas artérias. A mim me parece que na capital paraibana há anos tem faltado um senso de efetivo comprometimento para com a preservação do seu patrimônio histórico edificado. É necessário que as ações como a iniciativa pública que foi aplicada na revitalização de prédios na Rua João Suassuna e a iniciativa privada que recuperou um sobrado na Rua da Areia, sejam replicadas o quanto antes. É preciso que o poder público obrigue de alguma forma os proprietários dos imóveis abandonados a recuperá-los e revitalizá-los. As políticas do deixa-cair e do bota-abaixo não podem continuar imperando numa cidade que figura entre as mais antigas do país.


Contraste: o Hotel Globo bem preservado e as ruínas em suas cercanias







Como eu vinha dizendo lá no começo, ocupar bem um prédio histórico é uma das melhores maneiras de preservá-lo como memória viva do lugar em que ele foi erguido. A partir do momento em que disponibilizo recursos para restaurar e revitalizar uma edificação de valor histórico e lhe confiro uma destinação que vai além da simples, por assim dizer, condição de objeto para ser admirado e fotografado, eu destino a ela um status muito maior do que esse; ao atribuir à edificação um uso que a insira no cotidiano socioeconômico e/ou sociocultural de uma comunidade, eu acredito que, muito possivelmente, ela passará a despertar no seio dessa comunidade, no mínimo, um sentimento de pertencimento à sua existência, bem como um compromisso para com a sua preservação, porque eu continuo ardorosamente defendendo que monumentos históricos podem receber de nós o mesmo carinho, proteção e cuidado que destinamos à nossa morada, porque, de alguma forma, eles também dizem de nós, uma vez que estão ligados aos nossos antepassados.


O público começando a chegar para prestigiar o evento











Quando tratamos de restauração e preservação de edificações históricas nós devemos fundamentalmente ter a compreensão de que restaurar e preservar um edifício não é algo que unicamente se destina a manter um atrativo para turista ver. Não, a ação de preservação, conservação e salvaguarda do patrimônio edificado, patrimônio esse que é prenhe tanto de significados materiais propriamente ditos como imateriais, dizendo respeito a usos, representações, simbolismos e interações que cotidianamente são mantidos  para com ele e/ou no entorno dele deve, no meu entender, inseri-lo prioritariamente no cotidiano local, porque é a comunidade do lugar, do bairro e da cidade onde ele existe que de alguma forma tem mais contato com ele e tem e/ou deveria ter interesse em preservá-lo. A destinação como objeto turístico, digamos assim, é a consequência disso. Edificação histórica é - assim eu continuo pensando - parte integrante do cotidiano da comunidade local e não apenas coisa destinada ao trade turístico.









Felizmente, muito felizmente, nem tudo é ruína e abandono e descaso no centro histórico de João Pessoa, capital da Paraíba. Na sexta-feira da semana retrasada, dia 22 de outubro, eu fui prestigiar um projeto que em anos passados tinha outro nome e que atualmente é denominado de Sol Maior; e que tem lugar na área externa do Hotel Globo, situado num dos pontos que eu considero mais graciosos de toda a área mais antiga da cidade, que é o pátio da Igreja de São Frei Pedro Gonçalves.


O sol indo acordar as gentes do outro lado do mundo foi outro espetáculo naquela tardezinha


















Eu já escrevi sobre o Hotel Globo, que passou por uma ação de restauro não faz muito tempo; e, para mim, enxergá-lo em toda a sua inteireza revitalizado só reforça o meu entendimento de que a preservação do patrimônio histórico deve figurar como um compromisso não somente do poder público, bem como de toda a sociedade, porque tais edificações são testemunhos de nossa História. Sim é um tremendo contraste o estado de cuidado em que se encontra o Hotel Globo como o que vemos quando miramos suas cercanias na direção do Rio Sanhauá, onde pululam prédios em ruínas – mesmo ao lado do hotel, no Pátio de São Pedro, há muitos anos uma edificação abandonada permanece fazendo feia figura no local.

Lá vem o trem



Cheguei ao Hotel Globo às 15h45. Os músicos Marcos Rosa e Léo Meira, atrações daquela tardezinha, estavam fazendo a passagem do som. Enquanto o público ia chegando eu aproveitei para fazer uns registros fotográficos e trocar figurinhas com Douglas de Oliveira, um jovem músico de 20 anos que está fazendo o curso de Música na Universidade Federal da Paraíba. Apreciador de jazz, Douglas me falou que é um frequentador assíduo dos eventos musicais que ocorrem no Hotel Globo e em outros pontos da cidade. Na sua avaliação o Projeto Sol Maior é muito interessante, “Porque dá oportunidade de muita gente conhecer artistas que estão aqui em João Pessoa, mas que ainda não tiveram oportunidade de se lançar ou de se divulgar, e a artistas já consagrados”. Perguntei-lhe como ele via o Hotel Globo dentro do panorama do sítio histórico e ele de pronto me disse o seguinte: “Ele é, digamos, um símbolo muito importante para a cultura daqui, tanto para a época que ele existiu, como hotel, e agora como uma representação das coisas que a gente teve e das coisas que a gente ainda está buscando ter, que é colocar pra fora a cultura que a gente tem”. E quanto à preservação dos edifícios que existem no entorno do Hotel Globo? “Apesar de ser uma coisa importante pra cá, né? eu acho que eles ainda não têm o devido valor. O Hotel Globo ainda tem uma preservação porque é usado para promover algo, mas os outros locais que o pessoal não encontra uma utilidade, entre aspas, não têm a oportunidade que o Hotel [Globo] tem de continuar [existindo]”, ele completou.


Douglas de Oliveira: música como uma das essências da vida





As pessoas foram chegando e ocupando o jardim; e a música começou a nos embalar à medida que o sol ia se deitando no horizonte, numa lindeza danada, para ir acordar as gentes lá do outro lado do mundo. Meus olhos e meus ouvidos ficaram atentos a uma porção de coisas: ao vai e vem dos trens que por ali passaram; a umas cabras com sinetes pendurados em seus pescoços; a uma fumaça que vinha do quintal de um dos prédios em ruínas; às performances dos muito talentosos músicos; à variedade do público que foi até ali prestigiar o evento; a uma fotógrafa amadora que atendia pelo apelido de Lelê à qual eu pedi que me registrasse; a uma garotinha que passava de braço em braço e que era uma graça; e à atmosfera de paz que tomou por inteiro aquele lugar enquanto a música ia como que num acalanto nos embalando e a noite caía sobre nós.















Eu num autorretrato










Eu num registro feito pela Lelê



É claro que como historiador que defende as políticas de preservação do patrimônio histórico edificado eu gostaria de ver o Hotel Globo abrigando em algum ou em  alguns dos seus cômodos parte do mobiliário da época em que o prédio funcionou como um estabelecimento de hospedagem, o que iria lhe conferir um caráter museal nos contando histórias de outro tempo. Contudo, eu devo reconhecer que não é pouca coisa o que a Prefeitura Municipal de João Pessoa tem feito como ação de salvaguarda e preservação do Hotel Globo promovendo o Projeto Sol Maior e destinando o espaço também para outros eventos, como lançamentos de livros e exposições temporárias – e eu sei que também na Casa da Pólvora, outro prédio histórico, eventos culturais vêm ocorrendo com boa presença de público, porque eu também já estive lá num dia de grande movimento.


Coisa mais linda: o futuro se faz agora








Não acredito que todas as pessoas que foram até o Hotel Globo naquela tarde de sexta-feira carregassem consigo conceitos de preservação histórica e de educação patrimonial. No entanto, eu não posso negar que, como estudioso do assunto e como entusiasta das ações preservacionistas o que eu vi ali me encheu de uma verdadeira alegria e de uma renovada crença de que nem tudo está perdido ou em vias de se perder no centro histórico da capital paraibana; e ter ouvido um jovem de 20 anos de idade dizer que o Hotel Globo, que está ali plenamente preservado, “é um símbolo muito importante tanto para a época que ele existiu, como hotel, e agora como uma representação das coisas que a gente teve e das coisas que a gente está buscando ter”, me encorajou ainda mais a continuar na peleja, no combate e na luta pela preservação urbana e afetiva de nossas cidades detentoras de patrimônio histórico edificado, porque, quando uma edificação histórica é bem conservada e mantida de pé, recebendo pessoas e de alguma forma interagindo com elas, a História permanece viva nela e em nós.

Um comentário:

  1. Tive o prazer de conhecer esse lugar tão impar que parte do acervo histórico de João pessoa capitã da Paraíba. E alegra meu coração em saber que este lugar está sendo ocupado com eventos e o principal o povo ocupando esse espaços. É de relevância a presença de pessoas que denuncie o abandono, o descaso afim de torna público o verdadeiro estado desses casarões, como grande exemplo o historiador Clênio Sierra a quem eu externo toda a minha admiração.

    ResponderExcluir