13 de novembro de 2021

A resistência dos livros

Por Sierra

 


Foto: Arquivo do Autor
Foram tantos os livros que eu ganhei hoje que eles não couberam nesta caixa. Feliz da vida foi que eu trouxe mais pessoas dos livros para morar junto comigo



Não é raro encontrar por aí profetas e profetisas anunciando que o fim dos livros está cada dia mais próximo, dado o caráter de substituição, ou melhor, de uma verdadeira condenação ao desuso de certos objetos provocados, por exemplo, pelos chamados smartphones.  Isso é um fato incontornável, eles dizem. E é impressionante como um aparelho que está acompanhando as pessoas em praticamente todos os espaços da vida cotidiana não esteja proporcionando a elas um avanço do Quociente de Inteligência (Q.I.). Voltarei a este ponto mais adiante.

Como eu vinha dizendo os smartphones condenaram ao desuso e ao descarte numa sociedade que sempre foi afeita à obsolescência das coisas, vários objetos antes considerados indispensáveis, como o rádio, a televisão e a câmera fotográfica, só para ficarmos nesses exemplos; isso porque o tal do smartphone pode funcionar como rádio e câmera fotográfica e televisão e o escambau. Smartphones com acesso à internet são uma das maiores revoluções tecnológicas do nosso tempo: pessoas estudam pelo celular; pessoas fazem consultas médicas pelo celular; pessoas assistem a filmes, a telejornais e a tudo mais pelo celular; pessoas trabalham pelo celular; pessoas fazem transações bancárias e/ou financeiras pelo celular; enfim, o celular, o smartphone – e se sabe que ainda é considerável o número de aparelhos em uso que não são dessa categoria – é, talvez, o objeto mais desejado do mundo, porque é por causa dele e/ou através dele que, para milhões, bilhões de pessoas, a vida realmente acontece.

Como não são poucas, pelo contrário, são muitas as possibilidades de interação e atividades proporcionadas pela e/ou pelas tecnologias contidas nos smartphones, também os livros migraram para o universo virtual; os chamados e-books, os livros digitais, normalmente mais baratos do que as versões impressas, cada dia ganham mais adeptos entre os indivíduos que sempre e sempre recorreram aos livros propriamente ditos.

Confesso que por vezes me aflige a ideia de que toda a nossa memória escrita, que antes era impressa, como os jornais, as revistas e os próprios livros, passem a existir somente de forma virtual e não palpável e não manuseável. Na minha cabeça isso ainda não funciona. E tanto não funciona e tanto eu continuo andando na contramão desses avanços tecnológicos e virtuais, que eu permaneço montando minha biblioteca e considerando ela a única riqueza material que eu possuo e uma parte muito, muito especial da minha casa.

Pode ser que o que eu vou dizer agora soe para muitos como algo absolutamente exagerado, despropositado e até retrógrado, dado o fascínio imperante das mais avançadas das mais avançadas tecnologias contidas num smartphone; o fato é que os livros impressos são parte essencial da minha vida; os livros estão na base do muito que eu fiz até aqui e do que eu ando planejando para o meu viver; é uma relação de muita dependência a que eu mantenho para com os livros; e só eu sei o quanto tal relação me revigora e me anima diariamente.

Hoje mesmo eu tive uma dessas satisfações imensas que só quem é um ardoroso amante dos livros pode compreender: eu tive o privilégio de escolher e trazer para a minha biblioteca quantos livros eu quisesse entre os muitos que estavam acomodados em caixas arrumadas numa garagem, prontos para seguir para doação. E com grande ânsia e volúpia eu fui examinando as caixas à cata de autores e de assuntos do meu interesse entre os inúmeros títulos que havia ali. E assim foi que eu trouxe mais pessoas dos livros para morar junto comigo; gente como Celso Furtado, Manuel Correia de Andrade, Charles Baudelaire, Umberto Eco, Peter Eisenberg, Paulo Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade, Vamireh Chacon, Florbela Espanca e outras mais. Ah, como é maravilhosa a companhia dos bons livros!

Dias atrás eu li uma reportagem na revista Veja (Ernesto Neves e Caio Saad. “Mentes não tão brilhantes”. Veja, São Paulo, Editora Abril, edição 2758, ano 54, nº 39, 6 de outubro de 2021, p. 54-59) que descrevia levantamentos que apontavam, em que pese o aparato fascinante do mundo da tecnologia digital, um recuo do Q.I. dos seres humanos, que estariam sendo impactados, segundo o neurocientista francês Michel Desmurget, principalmente pelo excesso de tempo passado diante das telas dos mais variados aparelhos digitais, boa parte desse tempo, diga-se, empregado em interações nas chamadas redes sociais, redes sociais essas que são praticamente a razão de existir dos possuidores dos famigerados smartphones. Saliente-se que a tecnologia digital não é um mal em si; o mal está em abusar do seu uso a ponto de deixar de lado hábitos como a conversa cara a cara e a leitura de textos mais densos e/ou longos, dada a natureza por assim dizer apressada e muitíssimo ligeira das redes sociais.

Do lado de cá, no meu mundinho real, eu vou seguindo na contramão e fazendo dos livros e dos meus hábitos de escrita e de leitura o leitmotiv da minha existência.

 

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