23 de outubro de 2021

Personas urbanas (27)

Por Sierra


Eu quero gozar no seu céu,

pode ser no seu inferno.

Viver a divina comédia humana

onde nada é eterno.

                                            Divina comédia humana. Belchior

 

 

Deixem-me ir para o inferno em paz. Eu costumo dizer que todas as pessoas têm o direito de professar suas crenças; por outro lado, sempre e sempre enfatizo que professar é muitíssimo diferente de querer impor. Para mim, poucas coisas são tão abusivas e inoportunas que a ação de quem quer que alguém compulsoriamente acredite e tome para si a sua fé religiosa e/ou a sua crença no sobrenatural, algo que necessariamente não precisa estar vinculado a uma religião.

A ideia errônea de que uma crença e/ou religião é superior e/ou verdadeira e/ou melhor do que outra está no cerne de muitos conflitos ao redor do mundo. A tomada de crenças espirituais como meios de controle social e como normas-padrão de conduta, que são levadas por ditos líderes espirituais, têm, até hoje, provocado genocídios e perseguições intermináveis, práticas de completa submissão das mulheres e discursos de ódio e de intolerância contra os homossexuais, por exemplo.

Desde tempos imemoriais a crença no sobrenatural pôs-se na vida dos seres humanos de modo imperativo. E muitos foram os que se valeram e se valem de tais crenças para fazer delas instrumentos de dominação, alcance de riqueza, plataforma de governo e motivo para promover um permanente clima de beligerância e de discórdia enquanto tenta fazer com que os seus cultuados deuses e entidades e seres superiores e profetas reinem soberanos sobre tudo e sobre todos.

Por que uma determinada crença espiritual deve ser tomada como uma determinação para a promoção da intolerância? Por que justificar com uma determinada religiosidade um comportamento de inadequação pessoal e muito particular e com ele perseguir quem não compartilha de nossa visão e entendimento do mundo? Por que essa insistência de muitos para fazer de crenças espirituais cavalos-de-batalha para manter segmentos das sociedades em constantes atritos uns com os outros? Por que as mulheres que são, no mais das vezes, tão massacradas e/ou subjugadas por algumas crenças religiosas e por normas de conduta derivadas e/ou motivadas por tais crenças continuam dando cartaz e seguindo líderes espirituais que só as enxergam como cidadãos de segunda classe e máquinas de procriação?

Conheço pessoas que fazem de suas crenças religiosas um meio de alcance de algum conforto para debelar medos e inseguranças, dotando sua espiritualidade e/ou fazendo da espiritualidade um mecanismo de força, uma mola propulsora para fazê-las seguir confiantes e esperançosas na vida de agora e numa outra que elas acreditam existir para além desta. Normalmente tais pessoas vivem suas espiritualidades muito particularmente e sem se disporem a atacar e a desancar e a maldizer e a julgar a quem não segue os ritos e nem compartilha de suas crenças, compreendendo, eu imagino, que a espiritualidade e/ou a ausência dela, que repousa em todo e qualquer indivíduo, dota todos e cada um de nós de um conjunto de valores e de certezas e de motivações para estar e seguir no mundo, sem que isso signifique ou venha a significar que fulano, beltrano e sicrano, que pensam diferente de mim e que creem em coisas nas quais eu não acredito têm de ser perseguidos e vistos como um mal para a sociedade em que vivem.

Também conheço e vejo por aí pessoas que fazem de suas religiosidades meios de ganho de vida e armas para promover um permanente clima de beligerância e de divisão social, querendo a todo custo e de todas as maneiras fazer prevalecer suas visões de mundo eivadas de interpretações particulares dos escritos ditos sagrados que norteiam as suas crenças no sobrenatural.

Tenho verdadeiro horror a essa gente que, por exemplo, desde a descoberta do Brasil, se põe a “catequizar”, a “evangelizar” os índios, levando doenças para as aldeias e destruindo culturas ancestrais sob o argumento de que estão empenhadas em “salvar almas”. São esses mesmos espécimes altruístas e ditos disseminadores de um amor e de uma salvação divinos que não hesitam em promover autos de fé queimando terreiros de religiões de matriz africana, chutando e destruindo imagens sacras, lançando bombas e/ou se explodindo para matar o maior número de “infiéis” que for possível e massacrando e confinando minorias religiosas em guetos.

Não creio no sobrenatural. E isso não é só algo libertador para mim como também é um ato de coragem num mundo em que a todo instante se evocam e se divulgam planos de poder baseados em pretendidas teocracias com todas as implicações de que isso resulta, como a intolerância, os massacres e as guerras. Sou um descrente no sobrenatural que aprecia demais a chamada arte sacra. Encantam-me deveras as representações dos santos do cristianismo católico, as suas igrejas monumentais e as pinturas nos tetos dos templos; fascinam-me as esculturas e desenhos dos deuses gregos, hindus e egípcios; impressionam-me a arquitetura religiosa dos muçulmanos e a concepção de como seriam os orixás, só para ficar nesses exemplos.

Várias situações e estilos de vida e padrões comportamentais e crenças não se encaixam na minha ideia de ampla liberdade, inclusive e principalmente, em minha liberdade de pensamento. De modo que, para mim, ter filhos, por exemplo, é estar disposto a abdicar dessa ampla liberdade, porque filho é um fardo para o resto da vida; da mesma forma filiar-se a um partido político ou acreditar no sobrenatural é, para mim, abrir mão da ampla liberdade de ser e de existir, algo que, em absoluto, eu não quero para a minha vida, porque eu não quero me ver preso a nada. Mudei e mudo de opinião, mas não negociei e nem negocio a minha liberdade.

Religião, crença e fé no sobrenatural são coisas que compreendo serem de foro íntimo e não mecanismos e instrumentos de dominação social. Daí por que eu repudio completa e inteiramente quem lança mão de tais elementos para a promoção da discórdia, da intolerância, da perseguição e da carnificina em nome de deuses, como se estivessem a praticar imolações. É justamente esta a natureza dos fundamentalistas religiosos: eles praticam toda a sorte de maldades dizendo que agem assim porque é assim que tem de ser para afastar os supostos demônios e inimigos que querem estabelecer o caos. Alicerçados em muitos interesses, inclusive, econômicos, os fundamentalistas religiosos continuarão sendo uma ameaça e um perigo potencial para a humanidade, embora eles permaneçam dizendo que tudo o que fazem e querem é salvá-la.


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