25 de janeiro de 2020

Cenografia histórica

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Arquivo do Autor
Rua do sítio histórico de Mariana, a muito conhecida cidade mineira: a ideia de preservação que imperou aqui e alhures é a de que basta preservar a fachada para dizer que um  prédio como um todo remonta ao século tal


Em que pese o fato do meu grande interesse como pesquisador ser direcionado para os  centros urbanos antigos, na realidade, a cidade como um todo me interessa, porque a cidade não é somente o dito centro histórico, mas também, os outros espaços, os outros territórios que a compõe: os bairros afastados, as áreas de ocupação mais recente, os subúrbios esquecidos e até a zona rural que, porventura, contenha elementos que digam da história da zona urbana do município ao qual ela pertence.

Nas andanças por este país afora para conhecer algumas de nossas cidades de formação mais antiga, eu, aqui e ali, tenho me deparado com um tipo de preservação predial que se propõe a simplesmente conservar o lado de fora da construção em seus aspectos originais. Em linhas gerais, claro, o prédio está conservado, mas, e o resto dele, seus cômodos, sua configuração interna, seus detalhes interiores?

Conversando sobre essa questão com a professora universitária mineira Mônica - não guardei o sobrenome dela, infelizmente -, que eu conheci em outubro do ano passado em Diamantina, Minas Gerais, ela fez um comentário muito pertinente e com o qual eu concordei apenas parcialmente. Ela disse assim: “Seria uma crueldade, nestes tempos modernos, obrigar as pessoas a morar em casas antigas. A preservação consiste em manter o pé-direito e a fachada”.

Quando eu disse que concordei apenas parcialmente com a fala da professora Mônica foi porque, embora eu aceite que, ainda que interiormente descaracterizado um prédio antigo seja considerado um patrimônio arquitetônico, porque ele teve as suas feições externas preservadas, não concordo que tenhamos de manter um princípio de salvaguarda e de preservação do patrimônio histórico edificado que não reserve ao menos alguns exemplares dessas construções para que elas, se não de todo, sofram intervenções mínimas de modo que o máximo de sua forma antiga, os seus elementos do passado sejam preservados como testemunhos de uma dada época.

Ora, como dizer que tal e tal prédio remonta ao século XVII, por exemplo, se por dentro ele está completamente e/ou substancialmente descaracterizado? Para mim uma coisa é falar que o traçado urbano de determinado núcleo citadino que remonta à época do Brasil Colônia está preservado, algo que plantas antigas em confronto com atuais podem comprovar; e outra é falar que a cidade do respectivo traçado está inteiramente preservada quando, em realidade, não está, uma vez que, no geral, quase todos os seus edifícios sofreram intervenções interiores, como a substituição do piso de barro cru por cerâmica ou uma adequação para que fosse instalado um elevador, por exemplo.

Mais de uma vez eu me peguei surpreendido com o que considero intervenções completamente absurdas em imóveis situados em “zonas de preservação”. Em vários, em muitos deles, o visitante nem pode observar como era o madeiramento do telhado, porque foram postos forros de gesso ou de PVC, de modo que aparelhos de ar-condicionado pudessem ser instalados. Em outros, já me deparei com banheiros e com outros equipamentos que mais pareciam ser parte de edificações muito modernosas, como os shopping centers, e não de construções de dois, três séculos atrás. Por que modificar tanto?

Pensemos bem: não seria adequado que pelo menos alguns prédios – as construções religiosas e militares não contam, porque, no geral, suas integridades arquiteturais internas e externas são preservadas – situados em centros urbanos tombados preservassem integralmente seus interiores conforme a época de suas edificações? Não seria mais interessante e ricamente atrativo como produto turístico e também didático e pedagógico que conhecêssemos construções, na medida do possível, que apresentassem as feições que elas possuíam no tempo em que foram levantadas?

Não acredito que pratiquemos uma verdadeira preservação de edificações históricas quando delas subtraímos e/ou modificamos elementos estruturais. A bem da verdade, muito de nossas cidades históricas é ou não passa do que eu chamo de “cenografia histórica”. Muitos imóveis – provavelmente a maioria absoluta – que vemos em cartões-postais e em material de divulgação turística não são mais do que cenários nos quais as fachadas são, por assim dizer, as únicas coisas realmente originais que restaram deles.

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