1 de fevereiro de 2020

O pior papel da carreira de Regina Duarte

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Divulgação/Rede Globo
Depois de encarnar personagens memoráveis como a Viúva Porcina, da novela Roque Santeiro, eis que a atriz Regina Duarte, com toda a sua experiência, escolheu nesta altura de sua vida desempenhar aquele que desde já se assegura como sendo o seu pior papel. Brasília, ela verá, não é uma fantasia e nem um estúdio do Projac


Dentro das esferas política e ideológica, via de regra, costuma-se olhar de soslaio para todo e qualquer artista que se manifeste como simpatizante e/ou militante das hostes direitistas. Isso porque sendo a arte, em tese, fruto e expressão da liberdade humana por excelência, não se compreende e/ou não se aceita que um artista de fato possa militar sob uma ordem política constituída que historicamente sempre ou quase sempre se empenha em pôr amarras e cercear as manifestações artísticas por temer, sobretudo, o seu caráter transgressor e contestador, fundamento esse tomado como elemento perigosíssimo em regimes ditos conservadores e/ou autoritários que se esforçam diuturna e por vezes violenta e covardemente para impor suas visões limitadas de mundo. Sob regimes dessa natureza a arte como expressão máxima da liberdade não é aceita porque é tomada não somente como opositora mas também e principalmente como ameaça ao status quo. Daí por que, se valendo de restrições de toda ordem – quando não perseguições sem disfarce algum -, tais mandatários tratam de sufocar, enfraquecer, deturpar, atacar e mesmo eliminar esses artistas “esquerdistas”, desde logo apresentados como “inimigos do povo” e dos valores morais, religiosos e da família.

Acontece que ser de direita, de esquerda ou de qualquer outro terreno ideológico e político não é apenas uma condição de liberdade de escolha; é, acredito, uma condição de liberdade de existência. As posições que assumimos frente à vida, tomando-nos como elementos constituintes de uma grande ordem social, eu acredito que tenham, todas elas, um arcabouço político no sentido de que somos por natureza seres políticos, uma vez que, tomados por consciência de ser e de estar, costumamos, de alguma forma, discutir, planejar e construir o papel que queremos desempenhar dentro da sociedade ao longo de toda nossa vida.

Considerando a manifestação que anos atrás ela fez contra a possível chegada  do líder do Partido dos Trabalhadores ao Palácio do Planalto e o apoio que ela passou a dar ao então candidato e atual presidente da República Jair Bolsonaro, não foi para mim uma surpresa o fato de a atriz Regina Duarte ter aceitado, nesta semana, assumir a chefia da Secretaria da Cultura. Surpresa não me causou, como eu disse; o que me tomou foi um misto de desencanto e de lamento ao constatar que, muito mais do que defender um sujeito da estirpe desse senhor Jair Bolsonaro, a talentosa Regina Duarte aceitou tomar parte num governo declaradamente inimigo da liberdade de expressão, em geral, e artística e de imprensa, em particular, e, ainda por cima, misógino, homofóbico, desrespeitador, sem bagagem cultural, autoritário e mentecapto.

Apesar de seu enorme talento e carisma, duvido que a atriz Regina Duarte teria alcançado a fama e a condição de ser uma das principais estrelas da teledramaturgia nacional que alcançou, se ela não fosse há décadas uma contratada da Rede Globo, onde protagonizou produções e encarnou personagens para mim muito marcantes, como a Viúva Porcina, da novela Roque Santeiro, e a Raquel de Vale tudo, só para ficar em duas de suas memoráveis atuações. Pois também sabendo que o senhor Jair Bolsonaro é um ferrenho e obstinado opositor da Rede Globo, à qual já ameaçou até de cancelar sua concessão como canal de TV, Regina Duarte se meteu num governo desse quilate, o que me levou a crer que ela desprezou completamente a história vitoriosa que ela vivenciou na emissora da família Marinho e esqueceu que ela é uma artista, essencialmente uma grande artista.

Admiro muitíssimo quem tem coragem de dar a cara à tapa. Na minha memória afetiva Viúva Porcina e Raquel continuarão guardadas e sendo louvadas. Respeito a escolha feita pela senhora Regina Duarte, mas desde já torço para que ela caia em si e se dê conta de que, apesar do enredo algo novelesco desse governo que mistura tragicomédia com porções descomunais de vilania e perversidade, Jair Bolsonaro, seus filhos e seguidores e Brasília não são elementos de nenhuma dramaturgia; são, isso sim, personagens e cenário de uma realidade doentia, retrógrada, selvagem, estúpida e covarde. Penso, Regina Duarte, que, mesmo com toda a sua experiência artística – frise-se isso, artística -, a senhora escolheu representar nesta altura de sua vida, aquele que, eu não tenho dúvida, será seguramente o seu pior papel. Que lástima!

Atenção, Regina! Gravando.

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