11 de janeiro de 2020

Personas urbanas (24)


Por Clênio Sierra de Alcântara

Agora entre os dedos
Você deixa escorrer o mel.
Se agarra a segredos e medos e ponto final.
Mas é sempre assim,
É uma regra maldita e geral.
Ou feia ou bonita,
Ninguém acredita na vida real.
                                                        Vida real. Caetano Veloso


Viver para dentro e viver para fora de si. Talvez, em igual medida, o que o viver tem de encantador e fascinante ele tenha de desafiador e angustiante. Sem sentimentalismos e nem platitudes, porque eu não sou disso, eu olho para trás, para momentos longínquos e recentes de minha vida e me congratulo por ter tido coragem de não seguir determinadamente o que indicava a bússola da satisfação, da realização e do prazer total que, de maneira geral, desde cedo uns e outros tentaram encaixar na minha mente. Ufa, é com sensação de pleno e vigoroso alívio que eu respiro fundo, abro os braços e digo que eu estou inteiramente certo – ainda que para tantos eu esteja completamente errado – em me posicionar na vida sem estar preso totalmente às amarras sociais, porque, eu aprendi, por vezes a duras penas, que é melhor, muito, muitíssimo melhor viver para fora de mim, carregando com minhas próprias forças o peso do meu corpo e dos meus anseios, livre, liberto o quanto que é possível a alguém que vive em sociedade, com suas regras e determinações possa ser, do que viver para dentro de mim, elencando angústias, computando insatisfações e contabilizando verdades que me disseram e ainda me dizem ser necessárias para o meu bem viver. Não gosto, não gosto de modo algum quando uns e outros me importunam querendo me ensinar a viver, como se eles soubessem de tudo o que vai dentro de mim.

Nada, absolutamente nada em minha vida é mais revigorante, prazeroso e satisfatório do que eu despertar de manhã cedo e ainda na cama, esteja onde eu estiver, amanheça onde eu amanhecer, e me perceber inteiro e completo, gozando de uma paz interior que faz com que os meus olhos mirem o mais adiante possível. Se eu tinha de provar alguma coisa a alguém, lamento dizer que eu decepcionei a tal criatura. Se eu precisava ter correspondido às expectativas todas que depositaram sobre mim, o que eu tenho a dizer é que eu não servia e nem sirvo para o que vislumbraram para a minha pessoa.

Tristezas? Sim, algumas, várias. Culpa? Não, culpa nenhuma. Não fui eu quem fez surgir a violência humana; não fui eu quem instituiu a escravidão; não fui eu quem criou a bomba atômica; não fui eu quem fundou as religiões; não fui eu quem acionou as câmaras de gás; não fui eu quem fraudou a licitação; não fui eu quem concebeu o estupro; não fui eu quem tirou a vida daquele rapaz por causa de um celular; não fui eu quem propôs a pena de morte; não fui eu quem assassinou aquela atriz; não fui eu quem inventou as classes sociais; não fui eu, enfim, quem fez chegar a dor, o sofrimento, a indiferença, a crueldade e a desumanidade a este mundo. E a minha compaixão, a minha solidariedade emeu companheirismo, admito, não são plenos, incondicionais e nem irrestritos: eles são e sempre hão de ser seletivos, como quase tudo que emana de mim. E por quê? Ora, porque eu olho para a vida ao meu redor e enxergo que existem sim pessoas boas e pessoas más. Não é porque eu tenho meus recalques, meus traumas, minhas frustrações e meu histórico de abandono que eu vou sair por aí esfaqueando, explodindo, atirando, queimando, espancando e contaminando as pessoas. Áspero? Grosseiro? Indelicado? Insensível? Verdade, eu também sei ser assim. E ainda bem que eu sei ser assim, caso não, eu já teria sido esmagado pela postura tida como modelar dos que se arvoram de ser justos e corretos. Eu sou imperfeito, tenho absoluta certeza disso.

Por vezes nós mesmos ou outrem fazemos/fazem de nossa vida um grande e interminável calvário. Culpa, submissão, responsabilidades demasiadas, medos, satisfações nunca saciadas, projetos sempre adiados, inadequações a uma série de coisas... O tempo em nossa existência para muitos parece se arrastar demais ou correr muito depressa, para outros, sem que, no mais das vezes, se consiga alterar essa percepção. Quem por escolha própria ou por imposição de alguém ou de circunstâncias vive apenas para dentro de si, creio que  enxerga a vida de modo muito restrito e cheio de limitações de toda ordem, o que, imagino, não deva ser nada fácil. Vivo com intensidade a minha vida dentro daquilo que eu considero como sendo intenso. Mas, ao contrário do que imagino que muitos pensam a meu respeito, eu não estou disposto a tudo. Não estou mesmo. A minha vida até aqui foi e é para mim uma imperfeição gloriosa.


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