Por Clênio Sierra de
Alcântara
Por mais que o cotidiano,
por mais que a realidade sempre e sempre fique a nos demonstrar que não existem
vidas perfeitas e que somos seres falhos e muitas vezes contraditórios e
paradoxais, ainda há quem insista em acreditar que não é bem assim, que existem,
sim seres humanos completamente íntegros e corretos, sem falhas éticas e
morais, verdadeiros baluartes da perfeição e da correção. Bom, se existem
pessoas assim, eu nunca conheci uma sequer.
Sob a luz do politicamente
correto e daquilo que alguns até chamam de avanços civilizatórios
inquestionáveis, ao lado de revisionismos de todo tipo, inclusive, histórico,
certos setores das sociedades por este mundo afora, passaram a promover uma,
digamos, malhação de Judas, sendo Judas, neste caso, todo e qualquer intelectual,
todo e qualquer artista, todo e qualquer político, toda e qualquer pessoa
pública, enfim, que, em que pese o fato de terem realizado alguma façanha,
feito uma obra relevante ou algo que o valha, também foi capaz de cometer
alguma atrocidade, de apoiar determinadas ideias condenáveis e praticar algum
ato abusivo e/ou abominável. Dessa forma o tal personagem é colocado numa
espécie de balança da moralidade; e todas as suas façanhas e todas as suas
obras passam a ser reavaliadas, como se fosse possível separar o gênio de pés
de barro da obra que ele deixou.
Mas não se pense que tais
personagens e seus legados só se tornam objetos de reavaliação dessa espécie de
tribunal inquisitorial depois que falecem, como é o caso do pintor francês Paul
Gauguin (1848-1903), que tem sido atacado ferozmente por críticos que o condenam pelo fato de ele ter se
relacionado sexualmente com adolescentes no período em que viveu no Taiti e que
é justamente a época em que ele produziu as suas telas mais conhecidas e celebradas.
Já o antropólogo, historiador, sociólogo e escritor – fundamentalmente
escritor, como ele preferia ser chamado – pernambucano Gilberto Freyre
(1900-1987) conheceu as garras duras e afiadas do patrulhamento – e num tempo
em que não se usava a expressão "politicamente correto" – ainda em vida; não se
admitia que um intelectual de sua estatura apoiasse de alguma forma o ditador
português António de Oliveira Salazar e, anos depois, repetisse a dose dando
apoio aos generais que estabeleceram uma ditadura militar no Brasil em 1964.
Por esses dois episódios o autor de Casa-grande
& senzala foi durante muito tempo um autor defenestrado do meio
acadêmico brasileiro.
Continuando nessa perspectiva de encontrar os,
digamos, podres de pessoas até então tidas como admiráveis e verdadeiros
gênios, os politicamentecorretistas acharam pouco essa devassidão e trataram
também de, por iniciativa própria e considerando as obras que caíram em domínio
público, de, vejam só, reescrever trechos considerados inaceitáveis para os dias
de hoje, como foi/está se fazendo com Monteiro Lobato (1882-1948), uma
das glórias da literatura nacional, “expurgando” seus textos de expressões
consideradas racistas e aviltantes para com os negros, em particular contra a
personagem Tia Anastácia. Quer dizer então que, ainda que numa obra de ficção,
um autor não pode escrever algo que ele não necessariamente acredite e defenda,
mas que ponha ali para registrar o que ouve ao seu redor, como marca do pensamento social em vigor na época em que escreveu a obra? Quer dizer então que
daqui a algum tempo, com exceção de pesquisadores, o público leitor geral
ficará sem saber qual era de fato o texto original do autor?
Todas as barreiras
discursivas e intelectuais que se ergueram contra Gilberto Freyre, por exemplo
– e não podemos nos esquecer que ainda pesa sobre ele, coitado, o famigerado
mito da “democracia racial”, algo imperdoável pelo Movimento Negro -, caíram
por terra por uma questão muito simples e evidente: como ignorar e fazer de
conta que não existiam um autor e uma obra tidos como fundamentais para se
entender a natureza sociológica fundante deste país e o entendimento do
brasileiro como tal?
Ainda há pouco o Judas, o
saco de pancadas intelectual da vez foi o escritor austríaco Peter Handke, por
ele ser um defensor empedernido daquele que foi denominado de “Carniceiro dos
Bálcãs”, o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, e ainda assim ter sido
laureado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2019.
Parece que desde sempre
vigorou na História da humanidade um ingênuo senso comum que apregoa que as
pessoas públicas de um modo geral são e/ou deveriam ser uma espécie de gente
imaculada, sem defeitos, desvios de conduta e de qualquer outra coisa que
pudesse manchar a sua reputação. E é por isso, é em razão dessa concepção
pueril da natureza humana que se promovem ataques contra indivíduos que são
aquilo que são e que, portanto, não se encaixam nos escaninhos nos quais
insistem em colocá-los.
Como intelectual, como
escritor, como artista, eu permaneço obstinado a não abrir mão de minhas
convicções para me enquadrar num, digamos, padrão aceitável e/ou admirável de
comportamento. E não tenho disposição alguma para apagar os supostos desvios de
conduta e/ou ofensas e preconceitos ou algo parecido com isso que porventura eu
tenha registrado em meus escritos. O tempo por vezes nos permite que, por
iniciativa própria, reconsideremos pensamentos, atitudes, posturas e crenças.
De minha parte, eu não vou reescrever o que já foi dito por mim e nem me proponho a
apagar o meu passado a fim de posar como alguém que nunca cometeu falhas e é
puro, correto, bom e perfeito, algo que, eu não tenho a mínima dúvida, eu não
sou.
No dia mesmo em que escrevi
este artigo eu assisti ao filme Alice
através do espelho, do diretor James Bobin, baseado na narrativa homônima
de Lewis Carrol (1832-1898), o britânico autor do igualmente cultuado livro Alice no País das Maravilhas sobre quem
pesa a suspeita de que era pedófilo. No citado filme, uma das frases mais
repetidas é “Ninguém consegue mudar o passado”. Ao ouvi-la lembrei de uma outra
que considero lapidar e que é de autoria do admirável escritor Mario de Andrade
(1893-1945), a quem muitos não perdoam pelo fato de ele nunca ter assumido a
sua homossexualidade. Eis o dito marioandradeano: “O passado é lição para se
meditar, não para se reproduzir”. E que assim seja.
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