22 de fevereiro de 2020

Revirando as vísceras dos lobos em pele de cordeiro


Por Clênio Sierra de Alcântara



Foto: Internet
Paul Gauguin vem sendo atacado por diversos críticos pelo seu passado de perversão sexual vivido no Taiti. A noção ingênua de que pessoas de vida pública têm de ser corretíssimas provoca de tempos em tempos episódios de execração como o que está acometendo o pintor francês por esses dias



Por mais que o cotidiano, por mais que a realidade sempre e sempre fique a nos demonstrar que não existem vidas perfeitas e que somos seres falhos e muitas vezes contraditórios e paradoxais, ainda há quem insista em acreditar que não é bem assim, que existem, sim seres humanos completamente íntegros e corretos, sem falhas éticas e morais, verdadeiros baluartes da perfeição e da correção. Bom, se existem pessoas assim, eu nunca conheci uma sequer.


Sob a luz do politicamente correto e daquilo que alguns até chamam de avanços civilizatórios inquestionáveis, ao lado de revisionismos de todo tipo, inclusive, histórico, certos setores das sociedades por este mundo afora, passaram a promover uma, digamos, malhação de Judas, sendo Judas, neste caso, todo e qualquer intelectual, todo e qualquer artista, todo e qualquer político, toda e qualquer pessoa pública, enfim, que, em que pese o fato de terem realizado alguma façanha, feito uma obra relevante ou algo que o valha, também foi capaz de cometer alguma atrocidade, de apoiar determinadas ideias condenáveis e praticar algum ato abusivo e/ou abominável. Dessa forma o tal personagem é colocado numa espécie de balança da moralidade; e todas as suas façanhas e todas as suas obras passam a ser reavaliadas, como se fosse possível separar o gênio de pés de barro da obra que ele deixou.


Mas não se pense que tais personagens e seus legados só se tornam objetos de reavaliação dessa espécie de tribunal inquisitorial depois que falecem, como é o caso do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903), que tem sido atacado ferozmente por críticos  que o condenam pelo fato de ele ter se relacionado sexualmente com adolescentes no período em que viveu no Taiti e que é justamente a época em que ele produziu as suas telas mais conhecidas e celebradas. Já o antropólogo, historiador, sociólogo e escritor – fundamentalmente escritor, como ele preferia ser chamado – pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) conheceu as garras duras e afiadas do patrulhamento – e num tempo em que não se usava a expressão "politicamente correto" – ainda em vida; não se admitia que um intelectual de sua estatura apoiasse de alguma forma o ditador português António de Oliveira Salazar e, anos depois, repetisse a dose dando apoio aos generais que estabeleceram uma ditadura militar no Brasil em 1964. Por esses dois episódios o autor de Casa-grande & senzala foi durante muito tempo um autor defenestrado do meio acadêmico brasileiro.


Continuando nessa perspectiva de encontrar os, digamos, podres de pessoas até então tidas como admiráveis e verdadeiros gênios, os politicamentecorretistas acharam pouco essa devassidão e trataram também de, por iniciativa própria e considerando as obras que caíram em domínio público, de, vejam só, reescrever trechos considerados inaceitáveis para os dias de hoje, como foi/está se fazendo com Monteiro Lobato (1882-1948), uma das glórias da literatura nacional, “expurgando” seus textos de expressões consideradas racistas e aviltantes para com os negros, em particular contra a personagem Tia Anastácia. Quer dizer então que, ainda que numa obra de ficção, um autor não pode escrever algo que ele não necessariamente acredite e defenda, mas que ponha ali para registrar o que ouve ao seu redor, como marca do pensamento social em vigor na época em que escreveu a obra? Quer dizer então que daqui a algum tempo, com exceção de pesquisadores, o público leitor geral ficará sem saber qual era de fato o texto original do autor?


Todas as barreiras discursivas e intelectuais que se ergueram contra Gilberto Freyre, por exemplo – e não podemos nos esquecer que ainda pesa sobre ele, coitado, o famigerado mito da “democracia racial”, algo imperdoável pelo Movimento Negro -, caíram por terra por uma questão muito simples e evidente: como ignorar e fazer de conta que não existiam um autor e uma obra tidos como fundamentais para se entender a natureza sociológica fundante deste país e o entendimento do brasileiro como tal?


Ainda há pouco o Judas, o saco de pancadas intelectual da vez foi o escritor austríaco Peter Handke, por ele ser um defensor empedernido daquele que foi denominado de “Carniceiro dos Bálcãs”, o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, e ainda assim ter sido laureado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2019.


Parece que desde sempre vigorou na História da humanidade um ingênuo senso comum que apregoa que as pessoas públicas de um modo geral são e/ou deveriam ser uma espécie de gente imaculada, sem defeitos, desvios de conduta e de qualquer outra coisa que pudesse manchar a sua reputação. E é por isso, é em razão dessa concepção pueril da natureza humana que se promovem ataques contra indivíduos que são aquilo que são e que, portanto, não se encaixam nos escaninhos nos quais insistem em colocá-los.


Como intelectual, como escritor, como artista, eu permaneço obstinado a não abrir mão de minhas convicções para me enquadrar num, digamos, padrão aceitável e/ou admirável de comportamento. E não tenho disposição alguma para apagar os supostos desvios de conduta e/ou ofensas e preconceitos ou algo parecido com isso que porventura eu tenha registrado em meus escritos. O tempo por vezes nos permite que, por iniciativa própria, reconsideremos pensamentos, atitudes, posturas e crenças. De minha parte, eu não vou reescrever o que já foi dito por mim e nem me proponho a apagar o meu passado a fim de posar como alguém que nunca cometeu falhas e é puro, correto, bom e perfeito, algo que, eu não tenho a mínima dúvida, eu não sou.


No dia mesmo em que escrevi este artigo eu assisti ao filme Alice através do espelho, do diretor James Bobin, baseado na narrativa homônima de Lewis Carrol (1832-1898), o britânico autor do igualmente cultuado livro Alice no País das Maravilhas sobre quem pesa a suspeita de que era pedófilo. No citado filme, uma das frases mais repetidas é “Ninguém consegue mudar o passado”. Ao ouvi-la lembrei de uma outra que considero lapidar e que é de autoria do admirável escritor Mario de Andrade (1893-1945), a quem muitos não perdoam pelo fato de ele nunca ter assumido a sua homossexualidade. Eis o dito marioandradeano: “O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”. E que assim seja.

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