15 de fevereiro de 2020

Urbanização de tragédia

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Douglas Magno
Belo Horizonte foi uma das cidades que mais sofreu com as chuvas deste verão ainda em curso. Relevo acidentado e urbanização caótica na maior parte do município são alguns dos ingredientes que fazem com que a capital mineira, a exemplo de tantas outras deste país, percam vidas e mais vidas em épocas de temporais. As tragédias se repetem anualmente sem que se busque solucionar os problemas que as provocam



As chuvas de janeiro e de fevereiro que caíram sobre a Região Sudeste do Brasil, neste ano, novamente expuseram o grau de debilidade que impregna o tipo de urbanização que predomina nos quatro cantos deste país. Entra ano e sai ano e os quadros de enchentes, inundações e deslizamentos de morros e encostas provocam revolta, lamento e resignação.

Num país que se orgulha de ser a pátria-mãe de arquitetos e urbanistas do porte de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, comumente e irresponsavelmente é cultivado um urbanismo e por extensão uma urbanização marcada pelo desarranjo, pelo mau planejamento e pela ocupação desordenada dos terrenos.

À primeira vista as chuvas fortes vitimam mais aquelas pessoas que moram nas chamadas áreas de risco; contudo, basta acompanhar o noticiário com atenção para constatar que, na verdade, mesmo as áreas centrais de nossas cidades mais ricas, São Paulo e Rio de Janeiro, sofrem as consequências de uma urbanização pautada não só pelo fechar os olhos para as construções irregulares e para a falta de uma política habitacional efetiva voltada para a porção mais necessitada da sociedade, mas também por ações governamentais que fizeram um uso, eu diria, irresponsável do solo urbano.

E como isso se dá? Ora, de modo muito simples; e recorrendo, no mais das vezes, a ditas soluções que chegam até a ser celebradas pela população em geral e que acabam se revelando provocadores e agravadores dos males desencadeados pelos temporais. Eis um exemplo clássico que é facilmente verificado em bairros de São Paulo e de Belo Horizonte: sob as grossas camadas de concreto que foram utilizadas para pavimentar ruas, rodovias e passeios públicos, correm os chamados “rios invisíveis”, cursos de água que quando não são de todo encobertos têm como escoadouros canais normalmente estreitos; desse modo, quando a chuva forte vem, esses cursos de água estreitados e/ou encobertos não comportam o volume de água – nem de água e nem do lixo que irresponsável e mal-educadamente é descartado em tudo quanto é lugar – que recebem e logo transbordam, provocando alagamentos e inundações que transformam as cidades num verdadeiro caos; e deixando atrás cenas de desespero, angústia e impotência, sem falar, dos casos de mortes.

As cidades brasileiras, de um modo geral, padecem daquilo que eu chamo de “urbanização de tragédia”, que consiste em promover e conservar uma ideia e um projeto de urbe no qual impera um não entendimento e/ou uma não compreensão do seu passado e do seu presente com vistas a prepará-la para o futuro em âmbito macro, amplo e não apenas estritamente pensando apenas em adequá-la para receber mais e mais carros em suas ruas e avenidas, algo que talvez seja a maior e a pior chaga da urbanização predominante nestas plagas. Vendo o que eu vejo nos lugares aonde eu vou, a impressão que eu tenho é de que os prefeitos não se mostram muito preocupados nem em promover uma política que diminua as desigualdades sociais de maneira que não leve a população carente a ocupar áreas de morros e encostas e beiras de rio e nem a conceber um plano consciente de cidade que obedeça a lei de uso e ocupação do solo do município; o que mais eu vejo por aí são burgomestres ocupados com planejamentos e diretrizes fundamentalmente voltados para uma melhor circulação de veículos automotivos; para a maioria dos administradores de nossas cidades, acredito, o futuro delas se resume à promoção da mobilidade urbana. Não deveria ser assim, porque as necessidades de um centro urbano são muitos e em certa medida deveras complexos para que se dê prioridade somente ao tráfego de automóveis.

A meu ver tão terrível e lamentável quanto as cenas de casas desabando e corpos sendo resgatados pelos bombeiros é a perenidade do descaso e o ignorar as lições que as tragédias rotineiras nos dão. Parece que somos um país fadado a um perpétuo subdesenvolvimento.

No Brasil as tragédias comumente não são fatalidades e nem obras do infortúnio: elas são diariamente planejadas.

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