Por Clênio Sierra de
Alcântara
Considero o descaso com que
uma parcela significativa da população brasileira trata o seu patrimônio
histórico edificado como um dos mais contundentes sintomas do nosso atraso
social e civilizatório. Todas as vezes em que eu vejo uma edificação dessa
natureza relegada à indiferença e à ruína, isso me diz muito da pequenez e do
atraso da educação brasileira de um modo geral. Somos, infelizmente, uma nação
de inveterados cultores da ignorância e, por consequência, do desrespeito e da
falta de cuidado para com o patrimônio que nos rodeia. Cultivamos com um
empenho espantoso um desmedido desprezo para com os testemunhos da nossa
História como se a História fosse motivo de vergonha e a materialidade, que diz
desse passado, fosse sinônimo de atraso e de impedimento para a instalação do
progresso.
Eu tinha nove, dez anos de
idade quando eu comecei a conhecer o Recife levado pelas mãos de minha mãe que,
na época, trabalhava como comerciária na Rua Duque de Caxias, no bairro de
Santo Antônio. A loja na qual ela exercia sua atividade para o nosso sustento
tinha os fundos voltados para a Praça 1817, popularmente conhecida como Praça
Dezessete, na qual se encontra a imponente Igreja do Divino Espírito Santo. Recordo
que nas andanças de exploração das vizinhanças da loja, eu percorria os
arredores do templo católico e o via ainda sem o tanto de estabelecimentos
comerciais que atualmente o ladeia. Era ainda um tempo em que o edifício
histórico gozava de certa liberdade de existir, por assim dizer.
Quem hoje passa pela Igreja
do Divino Espírito Santo dá de cara com um quadro horrendo de ocupação de sua
lateral voltada para a Rua Imperador Dom Pedro II. São vários bares e pontos de jogo do bicho, além de um estabelecimento que disponibiliza, entre outros, serviços de cópias xerográficas, que tomaram
conta do espaço e tiraram a visão, melhor dizendo, cobriram a parede e algumas janelas do edifício
eclesiástico, transformando o cenário do entorno da igreja num completo e
lamentável espanta turistas e visitantes. Como foi que o poder público, a
Prefeitura do Recife e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) permitiram que a ocupação da área tomasse tal proporção e nada fizeram
para impedi-la? Por que tolerar e permitir que aqueles estabelecimentos
continuem ali emasculando o monumento histórico e deteriorando a paisagem
urbana?
Vista da lateral do edifício eclesiástico voltada para a Rua Imperador Pedro II: a ocupação do espaço é um claro exemplo de que os monumento históricos não são efetivamente protegidos neste país |
Tempo houve em que a área
dos fundos da igreja, que é voltada para a Av. Nossa Senhora do Carmo, também
apresentava ocupações irregulares que, felizmente e para o bem e a integridade
da edificação, foram removidas. E por que não se faz o mesmo com as construções
que estão há muitos anos ocupando toda a lateral do prédio? Por que é que não
se procura remover os estabelecimentos comerciais dali para que a Igreja do
Divino Espírito Santo possa ser contemplada em toda a sua inteireza?
O quadro que se observa ali
não é só feio e degradante, é, a meu ver, deveras desrespeitoso para com uma
edificação que, além de ser um monumento histórico, é um templo religioso. Para
mim é estarrecedor constatar que, como se já não fosse triste e vergonhoso o
fato de boa parte do acervo do patrimônio edificado deste país se encontrar
em vias de sumir da paisagem, dado o grau de deterioração em que os imóveis
estão, realidades como a que ataca a Igreja do Divino Espírito Santo ocorram a
olhos vistos e assim permaneçam por anos e anos, como é o caso, sem que se tome
qualquer providência para coibi-las, parecendo até que o poder público e as
instituições competentes, inclusive a Arquidiocese de Olinda e Recife, estão em conluio com toda essa gente que maldiz,
vandaliza, maltrata, arruína e destrói o patrimônio histórico, artístico e
cultural desta nação.
Quem leu a narrativa contida
no livro Velhas igrejas e subúrbios
históricos (Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1961, p. 31-37), do
Flávio Guerra, tomou conhecimento de que a Igreja do Divino Espírito Santo, na
verdade, tratara-se, primitivamente, de um templo calvinista francês que o
general-governador Francisco do Rêgo Barreto, em 1654, doara aos jesuítas que,
trinta e dois anos depois e após erguerem um grande edifício para o seu colégio
contíguo a ela, iniciaram uma ampla reforma na igreja; o leitor também ficou
sabendo que no decorrer dos anos o templo, com a expulsão dos jesuítas dos
territórios portugueses, em 1759, sofreu vários episódios de desrespeito ao seu
caráter religioso – durante o movimento revolucionário de 1817, por exemplo, o
recinto do santuário serviu como estábulo – e atravessou períodos de abandono. Nos
dias atuais, como foi dito, é uma ocupação monstruosa e de muitos anos de
estabelecimentos comerciais que vem deformando a área e tirando dos olhos do
grande público parte expressiva da edificação.
Ao mesmo tempo em que
deformam e agridem a paisagem urbana e contribuem para a desvalorização do
patrimônio histórico, os estabelecimentos comerciais instalados ao lado da
Igreja do Divino Espírito Santo do Recife reafirmam a crença de muitos que
lutam pela preservação do patrimônio nacional, de que é muito forte no seio da
sociedade brasileira o desrespeito para com os testemunhos materiais da nossa
História. O império e a força do novo são enormes e insaciáveis entre nós; e é
ele que tem feito com que ruínas e mais ruínas se acumulem por este país afora.
Não faz muito tempo uma ação enérgica e eficiente conseguiu remover as barraquinhas que ladeavam a Igreja de Nossa Senhora do Livramento, abrindo espaço para os pedestres e dando maior visibilidade ao templo que fica a cerca de trezentos metros da Igreja do Divino Espírito Santo. A pergunta que fica é: estão esperando o que para fazer nesta o que fizeram naquela?
Em vista de todos os
cenários de ruína e decadência que eu venho acompanhando em muitos lugares
aonde tenho ido, eu acredito e falo para os empedernidos inimigos do patrimônio
histórico edificado que não adianta apagar os vestígios materiais do passado
intencionando com isso fazer com que ele deixe de existir, porque, em verdade,
em verdade eu lhes digo, o passado é a única eternidade que existe; e a
História jamais deixará de ser contada, mesmo que seja uma História de
lamentações, perdas e ausências.
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