24 de outubro de 2020

Vamos libertar a Igreja do Divino Espírito Santo

Por Clênio Sierra de Alcântara


Fotos: Arquivo do Autor
Faz muitos anos que a lateral da Igreja do Divino Espírito Santo está tomada por vários estabelecimentos comerciais que não apenas enfeiam o local como também tiram da vista do pedestre toda a imponência e dignidade desse monumento histórico. O que é que estão esperando para remover e realocar os comerciantes da área? Que política de preservação é essa que fecha os olhos para a pronta degradação do patrimônio histórico edificado?

Considero o descaso com que uma parcela significativa da população brasileira trata o seu patrimônio histórico edificado como um dos mais contundentes sintomas do nosso atraso social e civilizatório. Todas as vezes em que eu vejo uma edificação dessa natureza relegada à indiferença e à ruína, isso me diz muito da pequenez e do atraso da educação brasileira de um modo geral. Somos, infelizmente, uma nação de inveterados cultores da ignorância e, por consequência, do desrespeito e da falta de cuidado para com o patrimônio que nos rodeia. Cultivamos com um empenho espantoso um desmedido desprezo para com os testemunhos da nossa História como se a História fosse motivo de vergonha e a materialidade, que diz desse passado, fosse sinônimo de atraso e de impedimento para a instalação do progresso.





Eu tinha nove, dez anos de idade quando eu comecei a conhecer o Recife levado pelas mãos de minha mãe que, na época, trabalhava como comerciária na Rua Duque de Caxias, no bairro de Santo Antônio. A loja na qual ela exercia sua atividade para o nosso sustento tinha os fundos voltados para a Praça 1817, popularmente conhecida como Praça Dezessete, na qual se encontra a imponente Igreja do Divino Espírito Santo. Recordo que nas andanças de exploração das vizinhanças da loja, eu percorria os arredores do templo católico e o via ainda sem o tanto de estabelecimentos comerciais que atualmente o ladeia. Era ainda um tempo em que o edifício histórico gozava de certa liberdade de existir, por assim dizer.

Quem hoje passa pela Igreja do Divino Espírito Santo dá de cara com um quadro horrendo de ocupação de sua lateral voltada para a Rua Imperador Dom Pedro II. São vários bares  e pontos de jogo do bicho, além de um estabelecimento que disponibiliza, entre outros, serviços de cópias xerográficas, que tomaram conta do espaço e tiraram a visão, melhor dizendo, cobriram a parede e algumas janelas do edifício eclesiástico, transformando o cenário do entorno da igreja num completo e lamentável espanta turistas e visitantes. Como foi que o poder público, a Prefeitura do Recife e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) permitiram que a ocupação da área tomasse tal proporção e nada fizeram para impedi-la? Por que tolerar e permitir que aqueles estabelecimentos continuem ali emasculando o monumento histórico e deteriorando a paisagem urbana?


Vista da lateral do edifício eclesiástico voltada para a Rua Imperador Pedro II: a ocupação do espaço é um claro exemplo de que os monumento históricos não são efetivamente protegidos neste país








Tempo houve em que a área dos fundos da igreja, que é voltada para a Av. Nossa Senhora do Carmo, também apresentava ocupações irregulares que, felizmente e para o bem e a integridade da edificação, foram removidas. E por que não se faz o mesmo com as construções que estão há muitos anos ocupando toda a lateral do prédio? Por que é que não se procura remover os estabelecimentos comerciais dali para que a Igreja do Divino Espírito Santo possa ser contemplada em toda a sua inteireza?

O quadro que se observa ali não é só feio e degradante, é, a meu ver, deveras desrespeitoso para com uma edificação que, além de ser um monumento histórico, é um templo religioso. Para mim é estarrecedor constatar que, como se já não fosse triste e vergonhoso o fato de boa parte do acervo do patrimônio edificado deste país se encontrar em vias de sumir da paisagem, dado o grau de deterioração em que os imóveis estão, realidades como a que ataca a Igreja do Divino Espírito Santo ocorram a olhos vistos e assim permaneçam por anos e anos, como é o caso, sem que se tome qualquer providência para coibi-las, parecendo até que o poder público e as instituições competentes, inclusive a Arquidiocese de Olinda e Recife, estão em conluio com toda essa gente que maldiz, vandaliza, maltrata, arruína e destrói o patrimônio histórico, artístico e cultural desta nação.







Quem leu a narrativa contida no livro Velhas igrejas e subúrbios históricos (Recife: Prefeitura Municipal do Recife, 1961, p. 31-37), do Flávio Guerra, tomou conhecimento de que a Igreja do Divino Espírito Santo, na verdade, tratara-se, primitivamente, de um templo calvinista francês que o general-governador Francisco do Rêgo Barreto, em 1654, doara aos jesuítas que, trinta e dois anos depois e após erguerem um grande edifício para o seu colégio contíguo a ela, iniciaram uma ampla reforma na igreja; o leitor também ficou sabendo que no decorrer dos anos o templo, com a expulsão dos jesuítas dos territórios portugueses, em 1759, sofreu vários episódios de desrespeito ao seu caráter religioso –  durante o movimento revolucionário de 1817, por exemplo, o recinto do santuário serviu como estábulo – e atravessou períodos de abandono. Nos dias atuais, como foi dito, é uma ocupação monstruosa e de muitos anos de estabelecimentos comerciais que vem deformando a área e tirando dos olhos do grande público parte expressiva da edificação.

Ao mesmo tempo em que deformam e agridem a paisagem urbana e contribuem para a desvalorização do patrimônio histórico, os estabelecimentos comerciais instalados ao lado da Igreja do Divino Espírito Santo do Recife reafirmam a crença de muitos que lutam pela preservação do patrimônio nacional, de que é muito forte no seio da sociedade brasileira o desrespeito para com os testemunhos materiais da nossa História. O império e a força do novo são enormes e insaciáveis entre nós; e é ele que tem feito com que ruínas e mais ruínas se acumulem por este país afora.


Fundos da igreja voltados para a Av. Nossa Senhora do Carmo:  apesar da remoção dos estabelecimentos que existiam ali, o que se vê é a degradação e a pichação das paredes dando o tom ao descaso para com a integridade do monumento






Não faz muito tempo uma ação enérgica e eficiente conseguiu remover as barraquinhas que ladeavam a Igreja de Nossa Senhora do Livramento, abrindo espaço para os pedestres e dando maior visibilidade ao templo que fica a cerca de trezentos metros da Igreja do Divino Espírito Santo. A pergunta que fica é: estão esperando o que para fazer nesta o que fizeram naquela?







Em vista de todos os cenários de ruína e decadência que eu venho acompanhando em muitos lugares aonde tenho ido, eu acredito e falo para os empedernidos inimigos do patrimônio histórico edificado que não adianta apagar os vestígios materiais do passado intencionando com isso fazer com que ele deixe de existir, porque, em verdade, em verdade eu lhes digo, o passado é a única eternidade que existe; e a História jamais deixará de ser contada, mesmo que seja uma História de lamentações, perdas e ausências.

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