19 de dezembro de 2020

Personas urbanas (26)

Por Clênio Sierra de Alcântara

You're alright
there's nothing wrong;
self-suficience, please!
And get work.
And if you complain once more
you'll meet an army of me.
                                                 Army of me. Björk/Graham Massey




                                                                            Especialmente para Elizabete Rodrigues




Eu não quero caber em caixinha nenhuma. Não duvido que você que está lendo este texto já tenha se deparado com alguém que quis, por assim dizer, traçar o seu destino, planejar a sua vida e lhe dizer o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é ruim, como se você não tivesse um mínimo de discernimento e não soubesse fazer escolhas para você mesmo.

Observo ao meu redor como é determinada a insistência de muitos em querer nos enquadrar, nos enumerar, nos pôr cabresto, nos padronizar, enfim, em nos dominar. E quando nós não nos deixamos submeter, nos enquadrar e sobretudo nos dominar, o bombardeio só aumenta, porque não se admite que possamos ter sentimentos, gostos, vontades e quereres que sejam diferentes dos da maioria. Os dominadores, os que almejam construir um mundo no qual só existam pessoas com os comportamentos e visões de existência que eles possuem, costumam agir de modo que os “diferentes”, os “desajustados”, os “estranhos” e os “anormais” sejam vistos, quando muito, como uma espécie de seres humanos de segunda categoria. Daí por que maldizem com incansável empenho os homossexuais, os negros, os seguidores de religiões de matriz africana, os ateus, e por aí vai, porque enxergam essa gente como a escória da sociedade; e não admitem de jeito nenhum e nem em hipótese alguma que os indivíduos que compõem essa escória sejam providos dos conceitos sociais de ética, moral, respeito e honestidade.

A tática da desumanidade, o empenho em tentar desumanizar certos grupos de indivíduos da sociedade foi o que fez com que milhões e milhões de pessoas fossem lançadas nas fogueiras da Santa Inquisição, nos terríveis navios negreiros e nas câmaras de gás dos nazistas. Os dominadores lançam mão de quaisquer meios visando à desumanização, ao escanteamento e mesmo ao extermínio dos “diferentes”, dos “desajustados”, dos “estranhos” e dos “anormais”.

Eu desisti de procurar entender por que os indivíduos que se dizem cristãos, em geral se mostram tão intolerantes e sem compaixão e mantenham tanta disposição para perseguir, fazer maldade e até matar aqueles que, sob a ótica deles, não seguem os mesmos princípios que eles. É interessante notar como as pessoas que dizem só querer pregar e propagar o bem começam a aplicar essa suposta bondade ou aquilo que elas compreendem como bondade, fraternidade e amor ao próximo, atacando nossa conduta e querendo cercear a nossa liberdade de existir. Talvez disso resulte o fato de eles preferirem praticar  caridade a justiça social. Eles constantemente falam em amor ao próximo e em salvação; mas eles amam - se é que esse tipo de gente consegue realmente amar alguém - ao próximo que lhes convém, que seja e/ou pense  como eles; trata-se, portanto, de um amor seletivo; e se se pode escolher a quem amar, também se pode escolher a quem odiar. Tem gente que não suporta de maneira alguma a liberdade alheia. Dessa gente frustrada, recalcada, traumatizada e reprimida eu só quero distância.

Semanas atrás eu mantive um longo diálogo com uma pessoa que, como tantas outras, era portadora de algumas desarrumações existenciais, digamos assim. Infelizmente não são poucos os indivíduos que não têm força para romper os grilhões e nem para sair da caixinha em que os colocaram. Sim, admito e acredito que isso não se dá só por falta de coragem; também o medo entra nessa equação: medo da rejeição; medo de desapontar alguém; medo de enfrentar a manada; medo de não ser capaz; medo do desamparo; medo do preconceito; e medo de ser livre e não saber como lidar com isso.

Quando havia na minha cabeça espaço para esse tipo de pensamento e uma certa crença no sobrenatural e, principalmente, reforço isso, principalmente uma dependência financeira, por um tempo eu me permiti submeter a certos conceitos e padrões de comportamento, a certas posturas e modelos de bem viver. Mas bastou eu conseguir um emprego e ganhar o meu próprio dinheiro e me educar e me instruir para que eu pudesse começar a pensar o que é a vida, a minha vida, e a querer conduzi-la com as minhas próprias convicções e determinações, com as minhas próprias regras e definições. E isso foi a coisa mais grandiosa, satisfatória e libertadora que me aconteceu até hoje. A partir do momento em que eu comecei a pensar por mim mesmo, foi que eu me encontrei para valer; foi quando eu passei a me conhecer verdadeiramente; a me conhecer, a me reconhecer e, sobretudo, a me aceitar como eu sou e a me querer como eu sou; a me querer como eu sou e a sentir o que eu sinto. Desde esse dia Clênio Sierra de Alcântara não se deixou mais domar nem se submeter e nem ser dominado. Comigo definitivamente acabou o to be or not to be, that is the question. Acabou e ponto. Estou caminhando com os pés bem firmes no chão. A convicção e a certeza de ser o que eu sou e de pensar o que eu penso não me enobrecem e nem me depreciam; elas simplesmente me fortalecem e me revigoram para que eu possa continuar seguindo em frente sem me esconder e sem baixar a cabeça.

Os ditos cristãos, ou melhor, muitos dos que se proclamam cristãos, carregam consigo verdades muito pesadas; muito pesadas, afiadas e contundentes, mortalmente contundentes. Deixemos que eles conduzam as suas verdades. Eu não quero nenhuma delas. Repito: eu não quero nenhuma delas. Eu não quero tais verdades. Eu não quero salvação alguma. Eu quero viver pelo que os meus olhos veem, pelo o que  o meu cérebro racionaliza e pelo o que o meu coração sente.

Eu disse àquela pessoa que eu resolvi uma série de questões de minha vida – inclusive, a minha orfandade paterna, a minha identidade sexual e as pendências que eu tinha com a minha mãe, que insistia em querer estar no controle de todas as instâncias do meu viver – lá atrás, na casa dos meus vinte anos; e que não há ninguém que possa me fazer arredar o pé e abrir mão da força vital que me sustenta e de tudo o que me move.

Lendo tudo isto que está aqui alguém pode pensar que eu sou um poço de segurança, autossuficiência e valentia. Não é bem assim. Eu não sou imune ao preconceito, à indiferença e muito menos à maldade alheia. O que acontece é que eu venho há tempos atravessando uma fase de extrema paz interior; e aposto e tenho absoluta certeza de que muito dessa paz se deve a isso, a essa compreensão do que eu sou, do que eu sinto, da educação que eu me dei, do destino que eu quero para mim e da ideia de liberdade que eu construí. Penso que não pode haver paz interior e, por conseguinte, uma existência plena, quando, em vez de nossa vida, queiramos viver conforme a vida dos outros. Não suporto amarras. Eu quero ser livre até mesmo para, se for o caso, reconsiderar e reescrever o meu destino, mudar de ideia e escolher outro modo de viver. Penso que, sem que tenhamos consciência do que é a liberdade, ela não pode existir.

Dito isso, eu afirmo e reafirmo que perderão o seu tempo todos aqueles que intencionarem me pôr numa caixinha. Eu não quero caber em caixinha nenhuma; o que eu quero é a liberdade.

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