30 de maio de 2020

O ódio nos tempos do coronavírus ou The inferno is aqui

Por Clênio Sierra de Alcântara


Não percamos de vista os fatos e nem o novelo de lã do desenrolar dessa construção autoritária repleta de labirintos para que nela não venhamos a nos perder, porque nos calar e nos render seria de algum modo compactuar com tudo isso que está aí


I

Esta semana, em Brasília, não começou diferente de outras marcadas pela pandemia do coronavírus. No domingo, mais uma vez, um bando de delinquentes e irresponsáveis que conta com o apoio do senhor presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, ocupou a Praça dos Três Poderes destilando o ódio que ele nutre contra a democracia, os adversários do seu chefe-supremo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional.

Desta feita, o diferencial do início da semana com relação às outras destes tempos pandêmicos, foi que militares de altas patentes, depois de notas e pronunciamentos em que diziam defender os fundamentos democráticos, resolveram dizer qual é realmente a deles nesse cenário de crise política desencadeada pelo senhor Jair Bolsonaro, um presidente que quer governar um país como quem toca uma boiada nos currais de uma fazenda. Eu não sou gado. Você, que me lê agora, é?

Contrariando a tão decantada por eles defesa dos “princípios constitucionais”, os militares elevaram o tom de seus discursos, que vinham em uma linha moderada e contida. Eu, sinceramente, não esperava deles algo diferente dessa postura, considerando o andar da carruagem, em que generais permanecem alojados em ministérios de um desgoverno que praticamente todos os dias fustiga a democracia e incentiva os cidadãos a romperem e ignorarem um isolamento social que é uma medida recomendada para conter a contaminação por um vírus letal.

A reação autoritária veio no encalço de um episódio envolvendo o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que declarara, em nota emitida no último dia 22, que, caso o STF apreendesse o telefone celular do presidente da República na investigação que está em curso sobre uma suposta interferência do chefe-supremo da República Antidemocrática Bolsonariana na Polícia Federal (PF), isso traria “consequências imprevisíveis” para o país.

Intitulada “Solidariedade ao general Augusto Heleno Ribeiro Pereira”, a carta dos oficiais da reserva do Exército não mede palavras para defender o companheiro de farda que é subordinado a um ex-capitão que até atentado terrorista planejou enquanto este na ativa. Diz ela que, com raríssimas exceções, o noticiário é “tendencioso, desonesto, mentiroso e canalha” – penso que Seu Jair merece os mesmos qualificativos -; os ministros do STF cometem arbitrariedades que “beiram a ilegalidade e a desonestidade”, inclusive, esse ministro que “sequer [logrou] aprovação em concurso de juiz de primeira instância – eles se referem aqui a Dias Toffoli -; mencionam o caso de Adélio Bispo, que não teve, segundo a carta, computador e celular apreendidos por conta “de uma canetada sem fundamentação jurídica”; diz que um “ladrão, corrupto e condenado” está solto e passeando pela Europa – este, no caso, é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva -; aventam a possibilidade de a crise institucional resultar em uma “guerra civil” – ora, mas o senhor Jair Bolsonaro disse que está armando a população para isso, naquela maldita e inesquecível reunião ministerial do dia 22 de abril, Dia do Canalha -; e encerram a carta datada de 23 de maio dizendo que, embora estejam na reserva, seus compromissos com a defesa das instituições, da honra, da lei e da ordem do país “não tem prazo de validade” (“Militares falam em ‘guerra civil’, apoiam Heleno e atacam STF”. In Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/politica/militares-falam-em-guerra-civil-apoiam-heleno-e-atacam-stf/. Publicado em 24 de maio de 2020. Acessado em 24 de maio de 2020).

Quem leu o clássico A revolução dos bichos, de George Orwell, compreende perfeitamente a dimensão do caráter de regimes políticos autoritários tanto de direita como de esquerda. Na narrativa do escritor inglês, em que pese o discurso de igualdade professado pelos líderes, alguns dos animais estabelecem que uns entre eles “são mais iguais do que outros”. E é justamente neste ponto que eu quero me deter para comentar a nota do general e a carta de “solidariedade” ao chefe do GSI.

Ora, o general Augusto Heleno emitiu uma nota em defesa do seu chefe-supremo como se o presidente da República fosse um cidadão mais igual do que os outros e que estivesse acima do bem e do mal e não submetido às leis às quais todo e qualquer cidadão deste país está. O terrorismo que o senhor Augusto Heleno destacou é da mesma natureza do que era sustentado pelos seguidores do senhor Luiz Inácio Lula da Silva, quando de sua iminente prisão. Ainda falando das hostes do Partido dos Trabalhadores (PT), um dos espantos daquela reunião do Dia do Canalha, foi o completo silêncio do general Hamilton Mourão aos arroubos autoritários do senhor Jair Bolsonaro, que chegou até a falar em armar a população para uma “guerra civil”, como eu já disse, quando se sabe que ele, Hamilton Mourão, costumava repreender as tentações autoritárias dos petistas; e, não nos esqueçamos também disso, ainda durante o governo de Michel Temer, ele chegou a defender uma intervenção militar no país.

Voltando à carta, quem a lê integralmente verá que nela, em trecho algum, são mencionados os vários crimes, desatinos, absurdos e irresponsabilidades que o atual mandatário da nação vem praticando. Será que se o senhor Augusto Heleno fosse um civil, os militares teriam defendido publicamente o chefe do GSI? O que eu claramente enxergo nessas movimentações e pronunciamentos é que a cegueira voluntária e/ou seletiva dos inúmeros oficiais que assinaram a citada carta é uma propensão à defesa dos seus próprios interesses; e que, para tanto, vale até apontar apenas para as delinquências e/ou supostas delinquências, ilegalidades e canalhices praticadas por aqueles que eles consideram como inimigos da ordem que está estabelecida; e isso, francamente, não é pensar no bem comum e menos ainda no bem e na defesa de toda a nação, de toda a pátria.

II

Quando não recorrem à violência feroz e imediata para expelirem o ódio desmedido que lhes move, os bolsonaristas agem recorrendo a conta-gotas e à intimidação.

Na segunda-feira, o senhor Jair Bolsonaro se convidou para ir à Procuradoria-geral da República (PGR) para, segundo ele, apenas cumprimentar o subprocurador-geral Carlos Alberto Vilhena, que assumiu o cargo de procurador federal dos Direitos do Cidadão. Na ocasião o nobre presidente da República teve um encontro com Augusto Aras, o chefe da PGR, a quem cabe decidir se o denuncia ou não  por interferência na Polícia Federal.

É claro que a ida do senhor Jair Bolsonaro à PGR foi lida pela oposição e por todos os que, como eu, acompanham o desgoverno como uma intimidação. E, após o encontro, o mandatário divulgou uma nota na qual propôs harmonia entre os poderes e pediu o arquivamento da investigação em curso contra ele. É muita cara de pau. Na nota, o Messias que é Messias, mas não faz milagres e sim uma estupidez e uma arbitrariedade atrás da outra e que, no dia anterior, estava junto a seus apoiadores defendendo ataques ao STF e ao Congresso Nacional e o fim do isolamento social, teve o descaramento de dizer isto: “Mantenho-me fiel à proteção e à defesa irrestritas do povo brasileiro, especialmente os mais humildes e aos que mais precisam” (Ingrid Soares. “Bolsonaro pede arquivamento de inquérito contra ele”: ‘Acusações levianas’”. In Correio Braziliense: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/05/25/interna_politica,858175/bolsonaro-pede-arquivamento-de-inquerito-contra-ele-acusacoes-levian.shtml. Publicado em 25 de maio de 2020. Acessado em 25 de maio de 2020).

Ainda no capítulo ódio e intimidação aos contrários ao desgoverno da República Antidemocrática Bolsonariana, também na mesma segunda-feira em que o asinino senhor Jair Bolsonaro quis, através de uma nota, posar de civilizado, tolerante e defensor da democracia, a Folha de S. Paulo e o Grupo Globo decidiram que, enquanto lá, na Tribuna do Escracho e do Deboche, não forem estabelecidos protocolos que confiram segurança para seus repórteres – na verdade, os ataques são destinados a toda a imprensa não vendida e/ou cooptada -, que sofrem constantemente agressões que partem tanto do presidente como dos seus apoiadores, não farão a cobertura jornalística naquele reduto da animalidade – estas palavras são minhas, que fique bem claro.

III

Na terça-feira o senhor Jair Bolsonaro só faltou soltar fogos de artifício e dar pulos de alegria em razão da deflagração da Operação Placebo, que a Polícia Federal iniciou, no Rio de Janeiro, para apurar esquemas fraudulentos em compras de equipamentos e insumos hospitalares e tantos outros itens nas ações de combate ao coronavírus. O motivo da indisfarçável satisfação do presidente – ele chegou a parabenizar a PF – foi porque o governador daquele estado, Wilson Witzel, que já foi seu aliado, há meses passou a ser visto como um inimigo. Visivelmente transtornado, Witzel fez um pronunciamento no qual disse que estava sendo vítima de perseguição por parte de um presidente que ele ajudou a eleger e que pretende ser o próximo ditador da América Latina mantendo um governo abertamente fascista (“’Interferência anunciada pelo presidente está oficializada’, diz Witzel”. In UOL Notícias: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/26/witzel-nota-operacao-pf.htm. Publicado em 26 de maio de 2020. Acessado em 26 de maio de 2020).

Talvez Wilson Witzel venha a ser revelado como um novo Sérgio Cabral do Rio de Janeiro e responda, como o ex-governador já condenado a centenas de anos de prisão, pela prática de diversos crimes. É esperar para ver até aonde irão as investigações. Em que pese uma possível interferência do clã Bolsonaro na deflagração das ações de busca e apreensão da PF no Rio de Janeiro, as suspeitas de prática de crimes envolvendo Wilson Witzel devem ser indiscutivelmente investigadas.

Nesse momento – e não é de hoje – o Rio de Janeiro, estado e capital, amarga a sina de se ver como um lugar que vive submerso na sujeira da corrupção, da roubalheira e da criminalidade desenfreada. Traficantes e milicianos, que constituem o poder paralelo ao institucional, são a face mais gritante e cruel de uma realidade aterradora. Fluminenses e cariocas têm de conviver com um cotidiano de muitas balas e vidas perdidas; de opressão e achaques perpetrados pelos foras da lei; com um governador que não conseguiu entregar os hospitais de campanha planejados para o enfrentamento da pandemia; e com um prefeito em sua capital, o senhor Marcelo Crivella, que é uma nulidade reconhecida e que não nega a malignidade do pântano onde foi gestado como bispo. Triste sina essa do Rio de Janeiro.

Os tantos risos e a tanta alegria, os “bravos!” e os “muito bem!” que o senhor Jair Bolsonaro e os seus comparsas compartilharam com tamanha euforia na terça-feira, em virtude da Operação Placebo, deram lugar aos achincalhes e ataques aos inimigos do desgoverno que, no Manual do Combatente Bolsonarista, são principalmente o STF e o Congresso Nacional, como todos nós sabemos, quando, ao raiar da quarta-feira, seguindo determinação do ministro essetefiano Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito que apura a disseminação de fake news, discursos de ódio e quejandos e ataques às instituições e à ordem democráticas nas redes sociais, policiais federais saíram em diligências para fazer buscas e apreensões em endereços ligados a deputados bolsonaristas, blogueiros e figurões apoiadores do desgoverno da República Antidemocrática Bolsonariana, como o nefasto ex-deputado federal Roberto Jefferson e o empresário Luciano Hang. Não fosse pela seriedade da medida, quem iria rir agora seria eu dessa gente autoritária, hipócrita, estúpida e covarde (Valdo Cruz. “Operação da PF pode cortar financiamento de grupos bolsonaristas e preocupa aliados do presidente”. In G1 https://g1.globo.com/politica/blog/valdo-cruz/post/2020/05/27/operacao-da-pf-pode-cortar-financiamento-de-grupos-bolsonaristas-e-preocupa-aliados-do-presidente.ghtml. Publicado em 27 de maio de 2020. Publicado em 27 de maio de 2020).

Os ataques à operação da PF determinada por Alexandre de Moraes seguiram em marcha. E, novamente ladrando como um cão raivoso, o senhor Jair Bolsonaro que, na segunda-feira, disse em nota que respeita a liberdade de expressão – logo ele que constantemente ataca a imprensa e os repórteres e incentiva os seus amalucados seguidores a fazerem o mesmo -, declarou três dias depois que o STF estava, no inquérito da fake news, atentando contra a liberdade de expressão dos apoiadores dele, porque, no pensamento animalesco que o move, ameaçar de morte ministros do STF e propagar informações falsas que são, é bom que se diga, um desserviço à sociedade, liberdade de expressão também é isso.

No melhor estilo doidivanas do pai, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, com a costumeira empáfia, disse, numa live do blogueiro Allan dos Santos, ainda na terça-feira, que um movimento de “ruptura institucional” está prestes a acontecer neste país. (Ah, já ia me esquecendo: esse blogueiro foi alvo da operação também.) Temo que isso ocorra, porque se esses animais já vêm praticando tantos ataques a pessoas e instituições em plena democracia, eu fico imaginando o que eles seriam/serão capazes de fazer sob um estado de exceção.

Em depoimento concedido à repórter Andréia Sadi, na quinta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão, um general da reserva, disse que, embora não pudesse falar em nome de toda as Forças Armadas, descartou que esteja em curso um golpe militar: “Quem é que vai dar golpe? As Forças Armadas? Que que é isso, estamos no século 19? A turma não entendeu. O que existe hoje é um estresse permanente entre os poderes. Eu não falo pelas Forças Armadas, mas sou general da reserva, conheço as Forças Armadas: não vejo motivo algum para golpe” (Andréia Sadi. “Mourão: ‘Quem é que vai dar golpe? A turma não entendeu, não existe espaço no mundo para ações dessa natureza’”. In G1: https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2020/05/28/mourao-quem-e-que-vai-dar-golpe-a-turma-nao-entendeu-nao-existe-espaco-no-mundo-para-acoes-dessa-natureza.ghtml. Publicado em 28 de maio de 2020. Acessado em 28 de maio de 2020).

Não confio nem um pouco nesse Hamilton Mourão que, repito, já pediu intervenção militar quando da crise havida no governo de Michel Temer.

IV

As tropas enfurecidas da República Antidemocrática Bolsonariana e o seu chefe-supremo seguem firmes no propósito de promover a derrocada da Rede Globo. Enquanto o senhor Jair Bolsonaro vez e outra ameaça cancelar a concessão da emissora da família Marinho, como se ele detivesse esse poder e pudesse fazer isso sozinho com uma canetada, os seus milicianos permanecessem espalhando “notícias” nas redes sociais e atacando funcionários da Vênus Platinada sempre que podem, inclusive, fisicamente. Mas, como as estratégias desses milicianos desequilibrados estão em constante replanejamento, eles agora resolveram tentar desmoralizar o apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, que, na verdade, deixou de ter sossego desde que essa gente animalizada começou, anos atrás, a se articular para eleger a besta-fera presidente deste país.

Valendo-se de toda a perversidade de que são capazes, bolsonaristas que têm extrema dificuldade de conviver com a diferença e com a contestação aos atos de seu chefe-supremo e que são do tipo dos que comandam o famoso Gabinete do Ódio, conseguiram – pause: crê-se que foram eles; quem mais teria interesse em fazer isso? – dados pessoais do filho de Bonner, fizeram cadastro e sacaram uma parcela do auxílio emergencial de R$ 600,00. Ora, é claro que isso é uma fraude e uma grande armação para ofender o apresentador que recebe um salário robusto da empresa na qual trabalha.

Ocorre que nesse episódio os meliantes bolsonaristas deram um tiro de pé, porque expuseram ainda mais a falha do sistema da Dataprev para averiguar e cruzar dados dos inscritos no sistema que pleiteiam o tal auxílio financeiro. Como eu disse noutro artigo, para vergonha desse desgoverno que possa de ser a encarnação da honestidade, da moral e dos bons costumes, milhares e milhares de militares das Forças Armadas deram entrada e sacaram o auxílio. E, segundo os dados mais recentes que eu vi, o total de fraudadores – não vou usar um termo mais pesado aqui porque não precisa -, civis e militares, já passam de 160.000.

Parodiando aquela cantiga infame eu digo: ninguém segura os delinquentes do Brasil.

V

Até agora não sabemos por que cargas-d’água o senhor Jair Bolsonaro está empenhado tão firmemente em defender o ministreco da Deseducação, Abraham Weintraub, que, na reunião do Dia do Canalha, esbravejou contra meio mundo, inclusive, os povos indígenas, e disse que, por ele, deveriam prender os membros dos poderes judiciário e legislativo, começando “pelos vagabundos do STF”.

Abraham Weintraub, além de ser uma nulidade no ministério que comanda e um falastrão incorrigível – a pérola mais recente que ele lançou aos porcos que fazem parte da plateia do desgoverno do seu chefe-supremo foi, na quinta-feira, comparar a ação dos policiais federais na caça dos disseminadores de fake news e de ameaças à ordem democrática, com a chamada “Noite dos Cristais”, um episódio ocorrido na Alemanha nazista contra os judeus (“Cônsul de Israel repudia Weintraub comparar operação com Noite dos Cristais”. In: Correio Braziliense: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/05/28/interna_politica,859039/israel-repudia-weintraub-comparar-operacao-com-noite-dos-cristais.shtml. Publicado em 28 de maio de 2020. Acessado em 28 de maio de 2020) – representa, como, talvez, nenhum outro membro do corpo ministerial da República Antidemocrática Bolsonariana, a parte mais cínica, mais torpe e mais esquizofrênica de um desgoverno que quer a todo custo – atropelando leis, normas e bom senso – implantar o que seria, na visão deles, um mundo ideal, mundo esse que, eu tenho clara consciência disso, não disponibilizaria sequer um pedacinho de chão para eu existir plenamente como eu existo; e, por essa razão – e pensando não só em mim, mas no resto da sociedade que não compartilha dos ideais autocráticos dos bolsanaristas -, eu repudio veementemente esse estado de coisas que se move para ocupar todos os espaços.

Não percamos de vista os fatos e nem o novelo de lã do desenrolar dessa construção autoritária repleta de labirintos para que nela não venhamos a nos perder, porque nos calar e nos render seria de algum modo compactuar com tudo isso que está aí.

Ao lado da mobilização do presidente para blindar e defender Abraham Weintraub, o senhor Jair Bolsonaro e o seu nefasto clã vêm atacando em outras frentes. As negociações com o “centrão” continuam na ordem do dia; a militarização de setores ministeriais – daqui a pouco todo o Ministério da Saúde, por exemplo, estará ocupado por militares – é uma evidente estratégia de aliciamento das Forças Armadas, porque o presidente deve compreender que o poder é muito sedutor e que não são poucas as pessoas que parecem ter uma inclinação natural para a venalidade; bolsonaristas estão empenhadíssimos em tentar barrar um projeto de lei que pretende punir quem cria e difunde fake news – o inquérito do STF já apurou que até o Banco do Brasil estava financiando, via inserção de propaganda, canais de notícias falsas -; e o mandatário da nação vem dizendo que o procurador-feral da República, Augusto Aras, a quem cabe decidir se encaminha ou não ao STF denúncias contra ele, pode ser um dos indicados para ocupar uma vaga na Suprema Corte.

A realidade está bem clara ou você que me lê quer que eu desenhe?

VI

Os norte-americanos estão metidos no olho de um devastador furacão. Não bastasse ser o país onde o coronavírus mais contaminou e matou gente até agora, os Estados Unidos são governados por um perfeito mentecapto e, no presente momento em que escrevo este artigo, eles estão envolvidos também numa série de protestos motivados por uma chaga social que não sara naquela que é considerada a maior nação democrática do planeta: o ódio racial contra os negros.

Na última segunda-feira, em Mineápolis, no estado de Minnesota, um homem negro de 40 anos de idade, George Floyd, morreu durante uma abordagem policial feita por agentes brancos que, segundo me consta, eram, em sua maioria, brancos. A causa mortis, diz-se, foi asfixia. Daí por que vimos tantos cartazes com a frase “I can’t breathe” nos protestos que, iniciados em Mineápolis, onde prédios foram incendiados, lojas foram saqueadas e manifestantes entraram em confronto com a polícia, se espalharam por diversas cidades do país. O "I can't breathe", depois eu fiquei sabendo, foi a última fala de Floyd, dita quando ele já se encontrava dominado e tinha a sua cabeça pressionada contra o chão por um dos policiais.

Uma das frases mais emblemáticas que eu vi num desses protestos dizia: “Parem de nos matar”. Trazendo-a para o nosso cotidiano no qual a crônica policial brasileira diariamente, repito, diariamente registra o assassinato de negros – geralmente pobres ou muito pobres e moradores das periferias – e isso não nos convulsiona, não nos leva a sair em protesto, a promover manifestações, a reivindicar nas ruas por proteção e respeito e melhores e maiores oportunidades de educação e de trabalho, pode fazer crer que temos uma alma cativa e submissa; e que tomamos essa realidade brutal e discriminatória como um fato da vida. Será que nós, brasileiros, negros e pardos, somos uma gente resignada? Será que não conseguimos mais sentir dor e nem dizer o que nos fere e machuca? Será que essa questão só diz respeito a nós, negros e pardos, e não ao todo da sociedade? Será que só cabe aos movimentos negros levantar a voz e agir contra esse estado de coisas?

Os historiadores Marcelo Mac Cord e Robério Souza nos dizem que um “imaginário coletivo” forjado por telenovelas, livros didáticos e outros produtos culturais e educacionais, concebeu o 13 de maio de 1888 como o marco da mudança nas ralações de trabalho neste país que, em virtude disso, seguiria em direção à “modernidade”, ao “progresso” e à “civilização”. Com a abolição da escravatura, as elites escantearam os negros da nova ordem socioeconômica enxergando-os como “inadequados” e “incapazes” de fazer parte de um sistema no qual passaria a vigorar o trabalho livre, o que as levou a promover uma intensa imigração de europeus para substituir a mão de obra dos negros, precarizando ainda mais a subsistência deles. Segundo tais estudiosos, “Esse tipo de concepção excludente até hoje ecoa entre aqueles que tentam justificar nossas profundas desigualdades étnicas e sociais” (Marcelo Mac Cord e Robério S. Souza. “Trabalhadores livres e escravos”. In Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 411).

Sim, nós, pretos e pardos, constituímos a maioria da população deste país; mas, está nisso a explicação para sermos o principal alvo da matança? É claro que não. A própria referência histórica que eu fiz no parágrafo anterior esclarece em grande parte isso. O racismo estrutural, o ódio e o preconceito contra os negros estão na ordem do dia em muitos espaços, inclusive, dentro de instituições que deveriam em tese atuar e agir em prol de todas as pessoas, sem discriminá-las, como vai dito na Constituição. Temos como presidente da Fundação Palmares um cidadão negro, o senhor Sérgio Camargo, que miniminiza o regime escravocrata que vigorou no Brasil durante mais de trezentos anos e que abre espaço para quem trata de desancar figuras-símbolo dos movimentos que lutam pela respeitabilidade dos negros - não pensem, no entanto, que eu sou contra o chamado revisionismo histórico; acredito que os acontecimentos podem ser interpretados de várias maneiras; o que devemos observar é a fundamentação dos argumentos (“Justiça determina que Fundação Palmares retire de site artigos que atacam a figura de Zumbi”. In O Globo: https://oglobo.globo.com/cultura/justica-determina-que-fundacao-palmares-retire-de-site-artigos-que-atacam-figura-de-zumbi-24453960. Publicado em 29 de maio de 2020. Acessado em 29 de maio de 2020); temos no comando do Ministério da Educação um cavalo batizado, como diria a minha avó, que “odeia” termos como “povos indígenas” e “povo cigano” e que, a despeito de dizer que o povo brasileiro “só tem um povo” e que precisa acabar com “esse negócio de povos e privilégios”, como se falasse em igualdade, ele parece desconhecer e/ou finge não saber que a demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombolas, por exemplo, foram definidas e estabelecidas justamente não apenas para reparar perdas e injustiças praticadas contra esses povos, mas também para garantir territórios que, de outra forma, seriam de pronto ocupados pelos donos do poder que, como se sabe, são esmagadoramente brancos; e assistimos a constantes ataques desferidos por líderes de igrejas evangélicas às religiões de matriz africana e, por conseguinte, aos seus adeptos.

Ou seja, se o negro era uma “mercadoria”, um “produto”, uma “coisa”, no tempo da escravidão, hoje ele é tábua de tiro ao alvo – o jovem João Pedro, um adolescente de apenas 14 anos, foi morto por um tiro de fuzil dentro da casa de seus tios, durante uma ação policial, no último dia 18, no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e se tornou mais um número de estatística -, é humilhado pelo tipo de cabelo que possui; e perseguido até mesmo pela religião que professa, porque, numa sociedade como a nossa, na qual, apesar de ser minoria, a população de brancos é a grande concentradora de renda e dominadora da riqueza e ocupante maior dos cargos de mando, vidas de negros realmente não importam e, menos ainda, se esses indivíduos compuserem, por assim dizer, o combo negro + pobre + periférico + gay + catimbozeiro.

VII

No livro de George Orwell, o porco Napoleão tinha sempre razão; e, por isso, tratava de ir modificando os mandamentos que fundamentaram a tal revolução dos bichos ao sabor de suas conveniências. Na realidade pandêmica que ora atravessamos em meio a uma crise política, o asinino Jair Bolsonaro sempre tem razão; e, por isso, esbraveja e ataca e desconsidera e demoniza e humilha e achincalha tudo e todos que se põem contra os seus arroubos autoritários e as suas ações visando proteger os delinquentes que o apoiam e o cercam.

Eram sete os mandamentos que regiam a Granja dos Bichos, como também são sete os pontos que compõem este artigo. No livro, os sete mandamentos foram resumidos em apenas um pelos animais humanizados e, mesmo assim, foi reescrito: “Todos os animais são iguais/Mas alguns animais são mais/Iguais que outros” (George Orwell. A revolução dos bichos. Trad. Heitor Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 130). Aqui, neste texto, os sete pontos podem ser resumidos nestes termos: caiam fora, humanos animalizados autoritários, hipócritas, estúpidos e covardes, porque os cidadãos de bem deste país não precisam de seres da espécie de vocês, pois, do que não presta, o Brasil já está cheio. Precisamos de paz, de ordem e de progresso que atinja e que alcance todos nós.

2 comentários:

  1. O racismo estrutural, o ódio e preconceito são estruturas que ganham força a cada dia em nosso país. Tudo isso, atrelado aos presidentes protagonista desta matéria um porco, no EUA E um gado no Brasil, cheio de ódio, racistas, fascistas, ditadores o espelho de uma policia corrupta,mal preparada, que deveriam está assegurando vidas, tiram vidas, ainda mais quando essa vida, é de um negro. Matriz preconceituosa entrelaçam com a indiferença e Dessas governos escravistas que aprisiona cada vez mais seu povo. As dondocas filhas da puta segue frias em seus salões enquanto a criadagem se limita aos afazeres e desmando de uma elite irresponsável que tiram vidas e desta vez no Brasil, foi uma criança de 05 anos que foi colocada no elevador da morte. Um outro momento foi outro preto de 14 anos assinado dentro de casa pela corrupta e despreparada policia brasileira . Para fechar esse arredio de horrores , um pai de família negro morto por policias por asfixia, método muito utilizado por esses bandidos vestido de farda. E nesse desabafo fica minha indignação.

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  2. Não existe justificativa para alimentar estes tipos de racismo, preconceito e intolerancia.

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