27 de junho de 2020

O Éden infernal do Messias de Brasília

Por Clênio Sierra de Alcântara

Acho o Brasil infecto [...] O Brasil não tem atmosfera mental;
não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos
muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos.

Trecho de uma carta de Carlos Drummond de Andrade para Mario de Andrade, escrita em Belo Horizonte e com data de 22 de novembro de 1924

Que Brasil este! Como é difícil amá-lo! Entreguei os pontos: seja o que Deus quiser. 

Trecho de uma carta de Manuel Bandeira para Gilberto Freyre, escrita no Rio de Janeiro e com data de 8 de setembro de 1961



Imagem: Internet
O autoritarismo, a irresponsabilidade e a inaptidão do senhor Jair Bolsonaro estão a cada dia que passa nos rebaixando e diminuindo um pouco mais como povo e nação. O paraíso artificial, o pretenso Éden criado pelo conservadorismo do Messias que ocupa o Palácio do Planalto é um desolador, tumultuado e caótico inferno



Somente em sociedades muito mal-educadas e desprovidas de senso de responsabilidade coletiva e de luta pelo bem comum, como a brasileira, por anos a fio nascem, vicejam e grassam como pragas certo tipo de político, como o senhor Jair Bolsonaro, que faz do logro peça de campanha eleitoral e do autoritarismo e da ignorância as suas maiores virtudes.

Desde que teve início o desgoverno do atual presidente deste malfadado país, os que têm olhos para bem ver e ouvidos para bem ouvir vêm assistindo a sucessivas demonstrações de desprezo pelas instituições democráticas, de incivilidade, de estupidez, de indiferença e de crueldade praticadas contra os cidadãos e protagonizadas não somente pelo mandatário da nação, como também por alguns dos combativos colaboradores recrutados a dedo por Vossa Excelência.

Estamos atravessando um período desgraçadamente terrível, tendo de lutar em duas frentes: contra um inimigo invisível – pelo menos a olho nu – e morta, que é o coronavírus; e contra a postura de um presidente irresponsável, maligno, nefasto e saudoso dos tempos da Ditadura Militar, que só consegue agregar maciçamente indivíduos que compartilham de sua visão algo arcaica e nada libertária, embasada num patriotismo autoritário, hipócrita, estúpido e covarde. Estava certo Millôr Fernandes ao rever a máxima do inglês Samuel Johnson, para quem “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, e dizer que, “No Brasil, é o primeiro”.

Como justificativa de sua malignidade, o senhor Jair Bolsonaro afirma que o seu comportamento e, por extensão, o das suas hostes, se deve ao fato de ele evocar e personificar o pensamento conservador de toda uma multidão de brasileiros que andara em falta neste país devido principalmente à persistência de uma doutrinação esquerdista. Então quer dizer que ser conservador é defender que as pessoas se exponham a um vírus letal porque morrer algum dia todo mundo vai? Quer dizer que ser conservador é manter-se indiferente à dor e à tristeza de todos aqueles que perderam parentes e amigos para o coronavírus? Quer dizer que ser conservador é incentivar que os seus apoiadores invadam hospitais para verificar se tem mesmo gente doente dentro deles e não é mentira de governadores e prefeitos? Quer dizer que ser conservador é estimular ataques a profissionais da imprensa que eu elejo como inimigos do meu desgoverno? Quer dizer que ser conservador é participar de protestos que insultam e pedem o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal? Quer dizer que ser conservador é atacar figuras e governos ditatoriais de esquerda e, ao mesmo tempo, louvar governantes autoritários de direita? Quer dizer que ser conservador é fazer da ameaça e da intimidação instrumento de convencimento? Quer dizer que ser conservador é ficar cego às delinquências praticadas pelos seus filhos? Quer dizer que ser conservador é associar-se a quem faz da crença religiosa prática de enriquecimento pessoal? Quer dizer, por fim, que ser conservador é discursar entremeando um versículo bíblico com um sonoro e cabeludo palavrão?

Muito embora fique o tempo todo posando de defensor da moral e dos bons costumes e dos valores inquebrantáveis da família, o senhor Jair Bolsonaro tem filhos de três casamentos; e, pelo que se vê por aí, não soube passar tais valores para todos eles. E, quanto à moral e aos bons costumes, basta dizer que, alguém que se refere a mulheres e a homossexuais como ele faz, pode entender de coisas variadas, como planejar a explosão de sistemas de abastecimento de água e difundir notícias falsas, mas, de civilidade, não.
O senhor Jair Bolsonaro quer se ter e se apresentar como símbolo de um novo tempo, sem se dar conta de que, na verdade, ele representa o retrocesso e o atraso, porque, o autoritarismo, o mando, o “eu posso tudo”, o “cale a boca” e o “você sabe com quem está falando?” são características de uma postura e de um gosto pelo poder que estão entranhadas desde sempre em nossa sociedade e que, em essência, não significam avanço nenhum, muito pelo contrário; elas representam a continuidade de uma estrutura arcaica de governança – e eu diria até que de controle social – que está alicerçada na pessoa do dono do poder que manda e desmanda e que faz e desfaz ao gosto e ao capricho dele, que se comporta como se ele estivesse acima de tudo e de todos e ele próprio fosse a encarnação do Estado e da lei.

Ao que parece, alguma chavezinha foi virada na cabecinha perturbada do senhor Jair Bolsonaro desde o dia em que Fabrício Queiroz, que calha de ser seu ex-amigo e ex-assessor do seu primogênito, foi preso por policiais numa casa pertencente ao advogado de sua nobre e impoluta e honestíssima família. Digo isso porque, dela para cá, não se viram mais da parte dele arroubos autoritários e nem foram ouvidos palavrões e insultos tantos a meio mundo. Por que será isso, hein, minha gente? Que pensamentos estarão rondando a cabecinha presidencial? Sábios e analistas de plantão devem saber e/ou supor muita coisa sobre esse comportamento algo manso que o senhor presidente por ora adotou; eu é que pouco e quase nada interpreto a esse respeito.

Ter como ocupante do Palácio do Planalto um indivíduo para o qual não faz a mínima, a menor diferença que, por exemplo, tenhamos um dos mais ineficientes sistemas educacionais públicos do mundo e que o coronavírus dizime 50.000, 100.000 ou 1.000.000 de pessoas, diz muito de nossa insistência em fazer conviver de modo contínuo neste país o arcaico em larga escala com apenas laivos de modernidade e de progresso. Convivência essa que, enquanto solapa ações e tentativas efetivas de inclusão destinadas à imensa massa de excluídos da riqueza nacional, alimenta uma pequena, arrivista e voraz elite e lança ao rés do chão e à sarjeta todo e qualquer processo realmente civilizador.

Desde que eu me tornei gente, com entendimento do que está ao meu redor, eu percebo que, em termos de pacto federativo e de integração nacional, em alguma medida estivemos sempre a querer enforcar a nossa liberdade. E, quando eu digo enforcar a liberdade não estou necessária ou restritivamente me referindo apenas ao impedimento de ir e vir e de se expressar, algo que é cerceado por estados de exceção; eu me refiro também ao que considero ser ainda e/ou tão mais grave do que isso, que é o cerceamento de ser e de existir como pessoa numa realidade socioeconômica na qual os indivíduos, sem dispor de uma renda mínima que seja, existem por aí como se não fossem seres inseridos numa ordem social humana que é mantida e que gira sob o impulso do dinheiro e, sim, como parte de um ecossistema e/ou de uma primitividade que se encontra ainda no estágio dos caçadores e coletores.

Apreender a realidade tal qual ela se nos apresenta é dar de cara com um estado de coisas que é a um só tempo preocupante e desanimador. Neste país se olha para trás e não se vê um tempo bom que seja; eu, pelo menos, em toda a nossa História, não vejo um tempo bom; o que eu vejo, aqui e ali, é um emaranhado de ideais e/ou ideais e alguma porção de virtuosidade que não conseguiram nos livrar da lama que fica a prender os nossos pés, nos impedindo de caminhar carregando conosco alguma certeza de conquista no futuro; e que nos deixa prostrados num marasmo e presos à eterna utopia do país realmente grande e civilizado, liberto da miséria social, da tirania e do arrivismo reinantes nos gabinetes governamentais, que em algum momento nós iremos começar a construir.

Eu vivi durante tempo suficiente para ver a pretensão de uma mudança de paradigma e uma proposta, digamos, de redenção da massa da sociedade brasileira, que poderiam ter sido alcançadas por um governo de esquerda, serem corrompidas, despedaçadas e destruídas pelas ações e pelas atitudes de indivíduos que se deslumbraram com o alcance do poder e com o brilho sedutor do vil metal em abundância e a ascensão perturbadora, deletéria e monstruosa de um governo de direita que falsifica a ética e a moralidade aplicando no povo, essa entidade que é tão amorfa, uma dose cavalar daquilo que seus mandantes entendem que seja conservadorismo, para fazer os despossuídos e os incautos acreditarem que somente e apenas assim, nós conseguiremos empreender e/ou alcançar, algum dia, um projeto viável e eficaz de uma nação verdadeiramente próspera e menos desigual.

O autoritarismo, a irresponsabilidade e a inaptidão do senhor Jair Bolsonaro estão a cada dia que passa nos rebaixando e diminuindo um pouco mais como povo e nação. O paraíso artificial, o pretenso Éden criado pelo conservadorismo do Messias que ocupa o Palácio do Planalto é um desolador, tumultuado e caótico inferno.

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