Aposto com qualquer um que,
se pudessem, os militares das Forças Armadas jamais teriam posto fim à ditadura
que eles implantaram neste país nos idos de março de 1964 e permaneceriam ad infinitum no comando da nação, porque,
a mim me parece, é muito próprio desses oficiais de alta patente mandar e
comandar, ter poder e controle e acreditar que somente e apenas estando em suas
mãos, o Brasil teria realmente jeito, como se isso fosse a grande missão que
eles teriam e têm a cumprir. Talvez isso seja algo inerente a eles que os
cursos preparatórios e de formação só fazem acentuar; é um gosto e um apego por
vezes desmedido ao poder e ao mando; é o juntar a fome com a vontade de comer.
Acompanhando o desgoverno do
senhor Jair Bolsonaro nós temos visto o modo como, a convite do presidente –
quer dizer, eu suponho que tenha sido a convite –, generais e coronéis e outros
mais foram ocupando espaços como ministros e em funções outras dentro da
estrutura governamental, nem sempre com a competência e com o preparo que
determinados cargos exigem, como se vê no Ministério da Saúde ocupado por mais
de uma dezena de militares.
O episódio recente e ainda
quente que provocou um atrito entre civis e militares foi uma fala do ministro
Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que disse, no sábado passado,
criticando a condução do desgoverno no combate à pandemia do coronavírus, que o
Exército se associou a um genocídio, considerando a atuação de militares no
Ministério da Saúde. Eis uma parte de sua declaração: “Isso é péssimo para a
imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o
Exército está se associando a um genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a
isso”. E isso foi o suficiente – e considerando que o ambiente em Brasília tem
sido só e apenas esse, de briguinhas, como num playground, dane-se o progresso do país – para o tempo fechar
Planalto Central. E por quê?
O fator primordial neste
evento é o óbvio ululante: militares, de modo geral, e oficiais das Forças
Armadas, em particular, não são de admitir que erram e falham, acostumados que
estão a não ser contestados e a não ouvirem ponderações.
A mim me causa espécie que os
diligentes integrantes das Forças Armadas, que tanto apego têm ao poder e às
liturgias que o cerca, se mostrem como inquestionáveis, intocáveis e
irretocáveis, neste caso específico. E pode ser assim? Claro que não. E ainda
mais quando se considera que eles resolveram tomar parte e integrar o
desgoverno de um sujeito inepto, como o é o senhor Jair Messias Bolsonaro, que
resiste e insiste e persiste em querer dirigir um país real como se fosse uma
realidade distópica, sob pitacos dos filhos dele e que reúne numa só pessoa a
boçalidade, a prepotência, a estupidez, a grosseria, desconfio que algum nível
de esquizofrenia e um apreço e um apetite desmedido e incontrolável pelo mando
e alguma coisa mais que impregnou-se nele desde o tempo de sua passagem pela
caserna, tempo esse em que ele era um oficial contestador e, por isso,
malquisto pelos seus superiores hierárquicos; comportamento esse que acabaria
por afastá-lo do Exército, por indisciplina.
O que eu vejo nessa,
digamos, “guerrinha” entre representantes das Forças Armadas e o ministro
Gilmar Mendes, é um embate infrutífero, uma cortina de fumaça para desviar o
olhar dos brasileiros, por assim dizer, da realidade do país frente a todos os
males – mortes, desemprego, medo, incerteza e por aí vai – causados e/ou
agravados pela pandemia. O que o senhor Gilmar Mendes disse foi uma constatação
coletiva, de quem observa e vê claramente o rumo que tomaram os desmandos do
presidente da República; desmandos aos quais, inegavelmente, militares das
Forças Armadas estão ligados, porque estão ocupando diversos setores do
desgoverno, além de ministérios do primeiro escalão.
Na República Antidemocrática
Bolsonariana, o seu chefe-supremo impôs uma matriz e um escudo militar e
autoritário de modo que ele encarnasse a intimidação e, por conseguinte, a não
contestação e o não confronto. O que se vê por aí é um desgoverno que, em
essência, foi e está sendo um desastre no trato com a pandemia; e que, para
posar de lobo mau arrependido, fala em liberação de um auxílio emergencial – e não
nos esqueçamos que o seu valor foi estabelecido por uma pressão do Congresso
Nacional e não por iniciativa do Executivo -, como se isso fosse uma panaceia
para a dura realidade socioeconômica que este país já vinha enfrentando bem
antes de o coronavírus chegar por aqui; e como se esse tal auxílio encobrisse a
conduta reprovável e infame do líder de uma nação que constantemente pregou o
fim do isolamento social; que se recusou irresponsavelmente a usar máscara que,
afinal, segundo ele, “é coisa de veado”; que incentivou que repórteres fossem
agredidos e hospitais fossem invadidos; que disseminou fake news; que participou de atos inconstitucionais e
antidemocráticos – se não me falha a memória, alguns dos ministros militares o
acompanhavam na rampa do Palácio do Planalto numa dessas ocasiões - ; que mais
de uma vez revelou desprezo e desconsideração e falta de compaixão para com a
memória das muitas vidas que o coronavírus ceifou; que incentivou a população a
recorrer a um medicamento que até a Organização Mundial da Saúde desaprova para
o tratamento da covid-19; e outros arroubos de natureza autoritária e
comportamentos incompatíveis com a função que ele ocupa. Sem esquecermos do
fato gravíssimo de que esse desgoverno que aí está não se interessou, até o
presente momento, em pôr no Ministério da Saúde um ministro de verdade, desde
que o último, talvez por dever de consciência, pediu para sair, há dois meses,
um desgoverno que caminha para a metade de sua vigência sem ter conseguido até
agora emplacar alguém realmente competente para dirigir o Ministério da
Educação e implementar projetos eficazes para o setor e não pirotecnias que não
servem para nada.
Resumindo, os briosos
militares das Forças Armadas adentraram e ocuparam estrategicamente postos num
desgoverno pantanoso e querem, como temos visto, posar de exceção num cenário
de desastre, parecendo, por conveniência, não compreenderem que o simples fato
de fazerem parte, por vontade própria e não por dever de ofício, como é o caso
dos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, de um desgoverno desse
já tira muitos créditos deles, porque de antemão se entende que quem se associa
a que quem não presta, no mínimo, compartilha de sua ideologia e de seus
propósitos.
Talvez o escopo destas
minhas reflexões e o meu raciocínio sobre o embate envolvendo o ministro Gilmar
Mendes e as Forças Armadas sejam um tanto quantos simplistas demais. O fato é
que, a mim me parece que, se não o todo, grande parte do alto oficialato das
Forças Armadas acredita piamente que não pode sequer ser criticada, porque é
como se eles estivessem o tempo todo a nos querer dizer e a nos lembrar: “Olhem,
não mexam conosco, porque vocês sabem do que nós somos capazes de fazer”. É como
se eles recorressem ao fantasma da Ditadura Militar para constantemente nos
assombrar. Não, não é “ditadura militar” a denominação que eles costumam usar
para se referirem ao longo e tenebroso período de vinte e um anos em que os
militares comandaram este país. Revolução, contragolpe, golpe, seja a
denominação que eles queiram usar, não tira do ocorrido o fato de que foi
implantado por eles, no Brasil, um estado de exceção que, se valendo de um propalado
discurso de defesa da democracia de uma ameaça comunista, cassou direitos
políticos, censurou o que estava ao seu alcance, instituiu a tortura como
instrumento de investigação e deu cabo da vida de dezenas e dezenas de
indivíduos.
Enquanto alguns membros das
Forças Armadas posam de heróis e de benfeitores da nação com relação ao período
da Ditadura Militar (1964-1985) e minimizam os males que praticaram dando suas
versões dos acontecimentos, o que eles têm todo o direito de fazer, porque,
afinal, como diria o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a verdade não
pode ser sufocada, e a História é uma grande colcha de retalhos de versões de
fatos, outros se esforçam para fazer de conta que o acontecimento é um fato
consumado que deve ser esquecido. Em entrevista a mais recente edição da
revista Veja, o general de brigada e
comandante interino do Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello, deu esta
declaração estapafúrdia e vergonhosa e afrontosa e desrespeitosa, sobretudo
para as famílias que até hoje não fazem sequer ideia onde foram lançados os
corpos dos seus entes queridos que os agentes da ditadura deram fim: “Nasci em
1963, não sei nem o que é AI-5, nunca estudei para descobrir o que é. A história
que julgue. Isso é passado, acabou”. Eu, Clênio Sierra de Alcântara, nasci em
1974, ou seja, onze anos após o preparadíssimo general de brigada Eduardo
Pazuello e sei o que foi o Ato Institucional Nº 5 (AI-5) e os males que ele
causou a toda a sociedade e não apenas aos subversivos e aos comunistas que os
nobres militares diziam unicamente querer combater. O malabarismo retórico que
o ministro interino da Saúde fez na mencionada entrevista intentando retirar a
responsabilidade e os tantos maus exemplos dados até agora pelo senhor
presidente Jair Bolsonaro no trato com a realidade da pandemia e a afirmação de
que ele não sabe o que foi o AI-5 – e se realmente não sabe, ainda dá tempo de
saber – são provas incontestes de que, como eu já disse outras vezes, não são
somente os ladrões do dinheiro público que provocam o completo atraso deste
país.
O sociólogo Gilberto Freyre
que, em várias ocasiões teceu louvores às Forças Armadas e foi um dos
apoiadores de primeira hora do golpe de 1964, disse, no primeiro aniversário da
Gloriosa, que não tinha faltado às Forças Armadas a “consciência de lhes caber
um papel superiormente político, acima dos partidos e das ideologias, em dias
extremamente críticos para as relações intranacionais”. De acordo ainda com o
autor de Nação e Exército (1949) e O Recife e a Revolução de 1964 (1964),
as Forças Armadas sempre marcaram presença na vida política nacional do Brasil
de forma “excepcionalíssima”, em dias de crise, em momentos de insegurança ou
de perigo para as instituições nacionais; “E nunca para se imporem aos demais
elementos da população como uma força autocrática; nunca para imporem a essa
população um napoleão (sic) caboclo, válido apenas pela sua condição militar;
nunca, com qualquer aspecto realmente militarista” (Gilberto Freyre. Forças Armadas e outras forças: novas
considerações sobre as relações entre as Forças Armadas e as demais forças de
segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira. Recife:
Imprensa Oficial, 1965. Por ordem de citação: p. 26 e 4). Admirado e muito
querido mestre Gilberto Freyre, acredito que o senhor, na verdade, quis dizer
como deveria ser e/ou esperava que fosse, e não descrevendo o que e como
realmente eram e/ou estavam sendo as Forças Armadas naqueles dias e antes.
As verdades são sempre
incômodas, como revela a tempestade que uma fala do ministro Gilmar Mendes
provocou no céu de brigadeiro das Forças Armadas. Os valentes e intrépidos
oficiais das ditas Forças Armadas se sentiram feridos em seus brios e em seus
peitos estufados e repletos de medalhas e condecorações pelo que disse aquele
membro do STF. Eles estão até hoje se dizendo incomodados com o episódio; e,
como tem ocorrido ultimamente, eles fizeram uma representação junto à
Procuradoria-geral da República, recorrendo à Lei de Segurança Nacional, um
monstrengo legal não por acaso da época da Ditadura Militar, para enquadrar o
ministro Gilmar Mendes. Recordemos outros casos: um jornalista publicou uma
charge considerada ofensiva ao senhor Jair Bolsonaro – eu duvido que uma pessoa
da estirpe desse sujeito possa se sentir ofendida com alguma coisa, mas tudo
bem – e o ministro da Justiça e da Segurança Pública, André Mendonça, divulgou
que iria enquadrá-lo na tal Lei da Segurança Nacional; um colunista do jornal Folha de S. Paulo escreveu que torcia
pela morte do mandatário da nação e, de novo, o senhor André Mendonça veio com
essa Lei de Segurança Nacional. Será que em algum momento o vigilante ministro
irá enquadrar também o presidente da República pelo tanto que o dito-cujo já
fez de ruim contra a população e contra a ordem democrática?
Como o assunto do momento
são os militares que infestaram o desgoverno da República Antidemocrática
Bolsonariana, o que tem sido discutido por aí é uma questão, a meu ver,
bizantina. Análises avaliam como se fosse diferente ter um militar da ativa ou
da reserva cumprindo expediente na Esplanada dos Ministérios. Senhores e
senhoras, na ativa ou na reserva o indivíduo vai continuar sendo militar.
Diz-se por aí, também, que
de alguma forma o Exército não pode ser de todo ligado à incompetência do
Ministério da Saúde porque o general Eduardo Pazuello não é um ministro de
fato. Ora, essa, é responsável sim, porque ele é um ministro, ainda que
interino; é ele quem manda no tal ministério para o qual foi escalado; e onde,
ainda por cima, ganha mais dinheiro do que os dois ministros que lhe
antecederam, porque ele junta o salário de militar com o da pasta que assumiu.
Apontar o dedo e rebater a
crítica muito pertinente feita pelo ministro Gilmar Mendes é um exercício que
não vai levar a nada, algo que eles, os militares, sabem muito bem. Não há
autocrítica da parte deles; pelo contrário, a um apego desmedido ao poder. Segundo
me consta, são mais de seis mil militares, ativos e da reserva, alojados no desgoverno do asinino senhor Jair
Bolsonaro. O poder e o mando são inebriantes para essa gente, além dos ganhos financeiros,
claro. Sabendo como isso funciona, o presidente de tudo fez e vem fazendo para beneficiar os milicos e, assim, garantir que, custe o que custar, eles continuarão apoiando tudo o que Vossa Excelência fizer. Os militares de alta patente foram muito beneficiados na reforma da Previdência e receberam aumento de salário num desgoverno que só fala em falta de recursos e em contenção de gastos. O apoio incondicional dos militares das Forças Armadas a esse maligno presidente não é de graça; e somos todos nós que estamos a pagar a conta dessa desgraça. Portanto, é pura balela e embuste esse discursinho de soberania nacional, defesa da ordem, patriotismo ou algo que o valha. Trata-se só e somente só de conveniências pecuniárias e de defesa dos próprios interesses e do próprio quinhão. Muito mais até do que os membros do Judiciário, os militares das Forças Armadas, ao que parece, se veem como algo além da condição de funcionários público que eles são.
Os militares das Forças
Armadas e do Exército, em particular, jamais admitirão que muito bem fariam ao
país se eles se limitassem a comandar o Exército, a Marinha e a Aeronáutica,
que é o que lhes cabe nesta República por ora tão vilipendiada.
A prepotência do senhor Jair
Bolsonaro, mancomunada e em conluio com a sua incompetência e o com o seu
autoritarismo, mostrou até agora os males que é capaz de fazer. O país cravou
hoje a marca de 78.097 mortos vitimados pelo coronavírus e os brasileiros têm
na presidência da República uma criatura que em absoluto não se responsabiliza
por nada que diga respeito aos horrores letais da pandemia.
A esta altura dos
acontecimentos as Forças Armadas e o Exército, principalmente, que tantos
admiram e louvam, já estão e muito com suas imagens manchadas por terem se
associado ao desgoverno de um sujeito incompetente, irascível, hipócrita e
inimigo da democracia. Ainda assim, o Exército deveria sentir vergonha e vir a
público pedir desculpas à nação, a todos os brasileiros por compartilhar de
ideais tão grotescos e infames como os que são pregados e defendidos pelo
senhor Jair Bolsonaro, o que é bastante lamentável, para dizer o mínimo. Decerto
que 78.097 mortos por uma doença não é mesmo um genocídio, senhores generais,
mas é uma quantidade considerável de vidas perdidas.
E as emas do Palácio da Alvorada,
Sierra? Ah, sim. Eu esqueci o que era que eu ia dizer a respeito delas...
Espera aí, eu lembrei: acredito que as emas sejam os únicos animais irracionais
de Brasília que são indiferentes ao traste do presidente da República, porque
os demais o adoram. Deve ser porque, como diz o adágio popular, as emas comem
tudo, mas não mastigam nada.
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