18 de julho de 2020

As emas do Palácio da Alvorada

Por Clênio Sierra de Alcântara


Foto: Ichiro Guerra
Enquanto isso, no verde gramado do Palácio da Alvorada, duas emas assintomáticas do coronavírus dialogam:
- Martinha, você sabe o que é AI-5?
- Eu não; eu nasci em 1995 e nunca ouvi falar nesse troço.
- Ôxe, pois eu nasci em 2001 e sei muito bem o que é...
- Sabe, é? Problema seu


Aposto com qualquer um que, se pudessem, os militares das Forças Armadas jamais teriam posto fim à ditadura que eles implantaram neste país nos idos de março de 1964 e permaneceriam ad infinitum no comando da nação, porque, a mim me parece, é muito próprio desses oficiais de alta patente mandar e comandar, ter poder e controle e acreditar que somente e apenas estando em suas mãos, o Brasil teria realmente jeito, como se isso fosse a grande missão que eles teriam e têm a cumprir. Talvez isso seja algo inerente a eles que os cursos preparatórios e de formação só fazem acentuar; é um gosto e um apego por vezes desmedido ao poder e ao mando; é o juntar a fome com a vontade de comer.

Acompanhando o desgoverno do senhor Jair Bolsonaro nós temos visto o modo como, a convite do presidente – quer dizer, eu suponho que tenha sido a convite –, generais e coronéis e outros mais foram ocupando espaços como ministros e em funções outras dentro da estrutura governamental, nem sempre com a competência e com o preparo que determinados cargos exigem, como se vê no Ministério da Saúde ocupado por mais de uma dezena de militares.

O episódio recente e ainda quente que provocou um atrito entre civis e militares foi uma fala do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que disse, no sábado passado, criticando a condução do desgoverno no combate à pandemia do coronavírus, que o Exército se associou a um genocídio, considerando a atuação de militares no Ministério da Saúde. Eis uma parte de sua declaração: “Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a um genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”. E isso foi o suficiente – e considerando que o ambiente em Brasília tem sido só e apenas esse, de briguinhas, como num playground, dane-se o progresso do país – para o tempo fechar Planalto Central. E por quê?

O fator primordial neste evento é o óbvio ululante: militares, de modo geral, e oficiais das Forças Armadas, em particular, não são de admitir que erram e falham, acostumados que estão a não ser contestados e a não ouvirem ponderações.

A mim me causa espécie que os diligentes integrantes das Forças Armadas, que tanto apego têm ao poder e às liturgias que o cerca, se mostrem como inquestionáveis, intocáveis e irretocáveis, neste caso específico. E pode ser assim? Claro que não. E ainda mais quando se considera que eles resolveram tomar parte e integrar o desgoverno de um sujeito inepto, como o é o senhor Jair Messias Bolsonaro, que resiste e insiste e persiste em querer dirigir um país real como se fosse uma realidade distópica, sob pitacos dos filhos dele e que reúne numa só pessoa a boçalidade, a prepotência, a estupidez, a grosseria, desconfio que algum nível de esquizofrenia e um apreço e um apetite desmedido e incontrolável pelo mando e alguma coisa mais que impregnou-se nele desde o tempo de sua passagem pela caserna, tempo esse em que ele era um oficial contestador e, por isso, malquisto pelos seus superiores hierárquicos; comportamento esse que acabaria por afastá-lo do Exército, por indisciplina.

O que eu vejo nessa, digamos, “guerrinha” entre representantes das Forças Armadas e o ministro Gilmar Mendes, é um embate infrutífero, uma cortina de fumaça para desviar o olhar dos brasileiros, por assim dizer, da realidade do país frente a todos os males – mortes, desemprego, medo, incerteza e por aí vai – causados e/ou agravados pela pandemia. O que o senhor Gilmar Mendes disse foi uma constatação coletiva, de quem observa e vê claramente o rumo que tomaram os desmandos do presidente da República; desmandos aos quais, inegavelmente, militares das Forças Armadas estão ligados, porque estão ocupando diversos setores do desgoverno, além de ministérios do primeiro escalão.

Na República Antidemocrática Bolsonariana, o seu chefe-supremo impôs uma matriz e um escudo militar e autoritário de modo que ele encarnasse a intimidação e, por conseguinte, a não contestação e o não confronto. O que se vê por aí é um desgoverno que, em essência, foi e está sendo um desastre no trato com a pandemia; e que, para posar de lobo mau arrependido, fala em liberação de um auxílio emergencial – e não nos esqueçamos que o seu valor foi estabelecido por uma pressão do Congresso Nacional e não por iniciativa do Executivo -, como se isso fosse uma panaceia para a dura realidade socioeconômica que este país já vinha enfrentando bem antes de o coronavírus chegar por aqui; e como se esse tal auxílio encobrisse a conduta reprovável e infame do líder de uma nação que constantemente pregou o fim do isolamento social; que se recusou irresponsavelmente a usar máscara que, afinal, segundo ele, “é coisa de veado”; que incentivou que repórteres fossem agredidos e hospitais fossem invadidos; que disseminou fake news; que participou de atos inconstitucionais e antidemocráticos – se não me falha a memória, alguns dos ministros militares o acompanhavam na rampa do Palácio do Planalto numa dessas ocasiões - ; que mais de uma vez revelou desprezo e desconsideração e falta de compaixão para com a memória das muitas vidas que o coronavírus ceifou; que incentivou a população a recorrer a um medicamento que até a Organização Mundial da Saúde desaprova para o tratamento da covid-19; e outros arroubos de natureza autoritária e comportamentos incompatíveis com a função que ele ocupa. Sem esquecermos do fato gravíssimo de que esse desgoverno que aí está não se interessou, até o presente momento, em pôr no Ministério da Saúde um ministro de verdade, desde que o último, talvez por dever de consciência, pediu para sair, há dois meses, um desgoverno que caminha para a metade de sua vigência sem ter conseguido até agora emplacar alguém realmente competente para dirigir o Ministério da Educação e implementar projetos eficazes para o setor e não pirotecnias que não servem para nada.

Resumindo, os briosos militares das Forças Armadas adentraram e ocuparam estrategicamente postos num desgoverno pantanoso e querem, como temos visto, posar de exceção num cenário de desastre, parecendo, por conveniência, não compreenderem que o simples fato de fazerem parte, por vontade própria e não por dever de ofício, como é o caso dos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, de um desgoverno desse já tira muitos créditos deles, porque de antemão se entende que quem se associa a que quem não presta, no mínimo, compartilha de sua ideologia e de seus propósitos.

Talvez o escopo destas minhas reflexões e o meu raciocínio sobre o embate envolvendo o ministro Gilmar Mendes e as Forças Armadas sejam um tanto quantos simplistas demais. O fato é que, a mim me parece que, se não o todo, grande parte do alto oficialato das Forças Armadas acredita piamente que não pode sequer ser criticada, porque é como se eles estivessem o tempo todo a nos querer dizer e a nos lembrar: “Olhem, não mexam conosco, porque vocês sabem do que nós somos capazes de fazer”. É como se eles recorressem ao fantasma da Ditadura Militar para constantemente nos assombrar. Não, não é “ditadura militar” a denominação que eles costumam usar para se referirem ao longo e tenebroso período de vinte e um anos em que os militares comandaram este país. Revolução, contragolpe, golpe, seja a denominação que eles queiram usar, não tira do ocorrido o fato de que foi implantado por eles, no Brasil, um estado de exceção que, se valendo de um propalado discurso de defesa da democracia de uma ameaça comunista, cassou direitos políticos, censurou o que estava ao seu alcance, instituiu a tortura como instrumento de investigação e deu cabo da vida de dezenas e dezenas de indivíduos.

Enquanto alguns membros das Forças Armadas posam de heróis e de benfeitores da nação com relação ao período da Ditadura Militar (1964-1985) e minimizam os males que praticaram dando suas versões dos acontecimentos, o que eles têm todo o direito de fazer, porque, afinal, como diria o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a verdade não pode ser sufocada, e a História é uma grande colcha de retalhos de versões de fatos, outros se esforçam para fazer de conta que o acontecimento é um fato consumado que deve ser esquecido. Em entrevista a mais recente edição da revista Veja, o general de brigada e comandante interino do Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello, deu esta declaração estapafúrdia e vergonhosa e afrontosa e desrespeitosa, sobretudo para as famílias que até hoje não fazem sequer ideia onde foram lançados os corpos dos seus entes queridos que os agentes da ditadura deram fim: “Nasci em 1963, não sei nem o que é AI-5, nunca estudei para descobrir o que é. A história que julgue. Isso é passado, acabou”. Eu, Clênio Sierra de Alcântara, nasci em 1974, ou seja, onze anos após o preparadíssimo general de brigada Eduardo Pazuello e sei o que foi o Ato Institucional Nº 5 (AI-5) e os males que ele causou a toda a sociedade e não apenas aos subversivos e aos comunistas que os nobres militares diziam unicamente querer combater. O malabarismo retórico que o ministro interino da Saúde fez na mencionada entrevista intentando retirar a responsabilidade e os tantos maus exemplos dados até agora pelo senhor presidente Jair Bolsonaro no trato com a realidade da pandemia e a afirmação de que ele não sabe o que foi o AI-5 – e se realmente não sabe, ainda dá tempo de saber – são provas incontestes de que, como eu já disse outras vezes, não são somente os ladrões do dinheiro público que provocam o completo atraso deste país.

O sociólogo Gilberto Freyre que, em várias ocasiões teceu louvores às Forças Armadas e foi um dos apoiadores de primeira hora do golpe de 1964, disse, no primeiro aniversário da Gloriosa, que não tinha faltado às Forças Armadas a “consciência de lhes caber um papel superiormente político, acima dos partidos e das ideologias, em dias extremamente críticos para as relações intranacionais”. De acordo ainda com o autor de Nação e Exército (1949) e O Recife e a Revolução de 1964 (1964), as Forças Armadas sempre marcaram presença na vida política nacional do Brasil de forma “excepcionalíssima”, em dias de crise, em momentos de insegurança ou de perigo para as instituições nacionais; “E nunca para se imporem aos demais elementos da população como uma força autocrática; nunca para imporem a essa população um napoleão (sic) caboclo, válido apenas pela sua condição militar; nunca, com qualquer aspecto realmente militarista” (Gilberto Freyre. Forças Armadas e outras forças: novas considerações sobre as relações entre as Forças Armadas e as demais forças de segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira. Recife: Imprensa Oficial, 1965. Por ordem de citação: p. 26 e 4). Admirado e muito querido mestre Gilberto Freyre, acredito que o senhor, na verdade, quis dizer como deveria ser e/ou esperava que fosse, e não descrevendo o que e como realmente eram e/ou estavam sendo as Forças Armadas naqueles dias e antes.

As verdades são sempre incômodas, como revela a tempestade que uma fala do ministro Gilmar Mendes provocou no céu de brigadeiro das Forças Armadas. Os valentes e intrépidos oficiais das ditas Forças Armadas se sentiram feridos em seus brios e em seus peitos estufados e repletos de medalhas e condecorações pelo que disse aquele membro do STF. Eles estão até hoje se dizendo incomodados com o episódio; e, como tem ocorrido ultimamente, eles fizeram uma representação junto à Procuradoria-geral da República, recorrendo à Lei de Segurança Nacional, um monstrengo legal não por acaso da época da Ditadura Militar, para enquadrar o ministro Gilmar Mendes. Recordemos outros casos: um jornalista publicou uma charge considerada ofensiva ao senhor Jair Bolsonaro – eu duvido que uma pessoa da estirpe desse sujeito possa se sentir ofendida com alguma coisa, mas tudo bem – e o ministro da Justiça e da Segurança Pública, André Mendonça, divulgou que iria enquadrá-lo na tal Lei da Segurança Nacional; um colunista do jornal Folha de S. Paulo escreveu que torcia pela morte do mandatário da nação e, de novo, o senhor André Mendonça veio com essa Lei de Segurança Nacional. Será que em algum momento o vigilante ministro irá enquadrar também o presidente da República pelo tanto que o dito-cujo já fez de ruim contra a população e contra a ordem democrática?

Como o assunto do momento são os militares que infestaram o desgoverno da República Antidemocrática Bolsonariana, o que tem sido discutido por aí é uma questão, a meu ver, bizantina. Análises avaliam como se fosse diferente ter um militar da ativa ou da reserva cumprindo expediente na Esplanada dos Ministérios. Senhores e senhoras, na ativa ou na reserva o indivíduo vai continuar sendo militar.

Diz-se por aí, também, que de alguma forma o Exército não pode ser de todo ligado à incompetência do Ministério da Saúde porque o general Eduardo Pazuello não é um ministro de fato. Ora, essa, é responsável sim, porque ele é um ministro, ainda que interino; é ele quem manda no tal ministério para o qual foi escalado; e onde, ainda por cima, ganha mais dinheiro do que os dois ministros que lhe antecederam, porque ele junta o salário de militar com o da pasta que assumiu.

Apontar o dedo e rebater a crítica muito pertinente feita pelo ministro Gilmar Mendes é um exercício que não vai levar a nada, algo que eles, os militares, sabem muito bem. Não há autocrítica da parte deles; pelo contrário, a um apego desmedido ao poder. Segundo me consta, são mais de seis mil militares, ativos e da reserva, alojados no desgoverno do asinino senhor Jair Bolsonaro. O poder e o mando são inebriantes para essa gente, além dos ganhos financeiros, claro. Sabendo como isso funciona, o presidente de tudo fez e vem fazendo para beneficiar os milicos e, assim, garantir que, custe o que custar, eles continuarão apoiando tudo o que Vossa Excelência fizer. Os militares de alta patente foram muito beneficiados na reforma da Previdência e receberam aumento de salário num desgoverno que só fala em falta de recursos e em contenção de gastos. O apoio incondicional dos militares das Forças Armadas a esse maligno presidente não é de graça; e somos todos nós que estamos a pagar a conta dessa desgraça. Portanto, é pura balela e embuste esse discursinho de soberania nacional, defesa da ordem, patriotismo ou algo que o valha. Trata-se só e somente só de conveniências pecuniárias e de defesa dos próprios interesses e do próprio quinhão. Muito mais até do que os membros do Judiciário, os militares das Forças Armadas, ao que parece, se veem como algo além da condição de funcionários público que eles são.

Os militares das Forças Armadas e do Exército, em particular, jamais admitirão que muito bem fariam ao país se eles se limitassem a comandar o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, que é o que lhes cabe nesta República por ora tão vilipendiada.

A prepotência do senhor Jair Bolsonaro, mancomunada e em conluio com a sua incompetência e o com o seu autoritarismo, mostrou até agora os males que é capaz de fazer. O país cravou hoje a marca de 78.097 mortos vitimados pelo coronavírus e os brasileiros têm na presidência da República uma criatura que em absoluto não se responsabiliza por nada que diga respeito aos horrores letais da pandemia.

A esta altura dos acontecimentos as Forças Armadas e o Exército, principalmente, que tantos admiram e louvam, já estão e muito com suas imagens manchadas por terem se associado ao desgoverno de um sujeito incompetente, irascível, hipócrita e inimigo da democracia. Ainda assim, o Exército deveria sentir vergonha e vir a público pedir desculpas à nação, a todos os brasileiros por compartilhar de ideais tão grotescos e infames como os que são pregados e defendidos pelo senhor Jair Bolsonaro, o que é bastante lamentável, para dizer o mínimo. Decerto que 78.097 mortos por uma doença não é mesmo um genocídio, senhores generais, mas é uma quantidade considerável de vidas perdidas.

E as emas do Palácio da Alvorada, Sierra? Ah, sim. Eu esqueci o que era que eu ia dizer a respeito delas... Espera aí, eu lembrei: acredito que as emas sejam os únicos animais irracionais de Brasília que são indiferentes ao traste do presidente da República, porque os demais o adoram. Deve ser porque, como diz o adágio popular, as emas comem tudo, mas não mastigam nada.

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