6 de maio de 2023

Muito mais que o sumo dos cajus de Aracaju

Por Sierra


Fotos: Arquivo do Autor
Catedral Metropolitana, um dos atrativos arquitetônicos da capital sergipana





No princípio era só a planície


Sabe-se que as primeiras tentativas de conquista das terras que constituiriam o territorialmente pequeno estado de Sergipe ocorreram durante o governo de Luiz de Brito de Almeida, em 1575. Os objetivos da conquista eram vários, sendo o principal combater o comércio clandestino que se processava entre os índios e os franceses que navegavam pelas barras dos rios Sergipe, Irapiranga ou Vazabarris e o Real.

Antes mesmo de a Coroa Portuguesa partir para tal empreendimento, membros da Companhia de Jesus já haviam se lançado nessa jornada, tendo se destacado nessa ação pioneira a propalada grande obra conduzida pelo padre Gaspar Lourenço, considerado o maior responsável pela condução de promover a pacificação dos nativos naquela região. O jesuíta Lourenço esforçou-se sobremaneira na tarefa, fundando várias missões de catequese sem, contudo, conseguir ir além das margens do Vazabarris. Se, inicialmente, esse padre gozava de apreço entre os gentios, não demorou para que eles começassem a resistir e a agir contrários à catequização, de modo que acabou sendo malograda essa primeira tentativa de conquista do território sergipano. Uma nova ação foi iniciada a partir de 1590, quando Cristóvão de Barros governava a Bahia. As colunas desse governante enfrentaram com valentia o temível cacique Serigy e o seu irmão Siriry, e também os irmãos Japaratuba e Pacatuba. Serigy morava na área onde seria erguida a futura capital sergipana.







Apesar de inúmeras modificações nos prédios na área de ocupação mais antiga da capital, são inúmeras as edificações que guardam a fisionomia dos tempos de sua construção





É importante destacar que data do ano de 1590 a fundação da cidade de São Cristóvão junto à foz do Rio Sergipe, local onde não permaneceu por muito tempo, sendo, por motivo de segurança, mudada para o outeiro de Santo Antônio, na margem direita do Rio Poxim, ainda em território do atual município de Aracaju. Anos depois, São Cristóvão foi transferida em definitivo para terras às margens do Rio Paramopama. São Cristóvão foi a primeira capital de Sergipe.

A zona praieira de Aracaju estava incluída entre os terrenos que foram doados em sesmaria, por volta de 1602, a Pero Gonçalves.

Existe uma notícia histórica dando conta de que, em 1669, havia uma aldeia chamada de Santo Antônio do Aracaju, cujo capitão era o indígena João Mulato. Já no século XVIII, por volta de 1757, Aracaju estava incluída entre os mais importantes sítios da freguesia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Tomar do Cotinguiba. Dá-se como certo que o arraial de Santo Antônio do Aracaju foi formado a partir da capelinha que ali foi erigida. A obra Corografia brasílica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brasil, do padre Manuel Aires de Casal, que foi publicada pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1817, nos conta que em fins de 1806 existia um homem chamado Cristóvão de Mendonça que dizia ter cento e vinte oito anos de idade e ainda exercitava o ofício de oleiro “na Aldeia do Aracaju” junto à foz do Rio Cotinguiba (Manuel Aires de Casal. Corografia brasílica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1976, p. 252). É sabido que a parte central da região aracajuana era, por esse tempo, conhecida por Olaria, porque, é de se pensar, existiam olarias na área.

O verbete referente à Aracaju contido no volume XIX da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no Rio de Janeiro, em 1959, ao qual estou recorrendo para compor grande parte desta narrativa, nos diz que os “fatos históricos” da maior importância e ligados estreitamente à evolução política do município datam de 1855 para cá. Vejamos por quê.

Desde o Período Colonial as terras sergipanas dependiam de pequenas embarcações, como canoas e saveiros, porque, como não havia um porto próximo ao mar, o comércio se dava através delas, que podiam subir os rios para apanhar mercadorias em lugares distantes da faixa litorânea e, depois, repassá-las para os navios. A título de comparação, o próprio arraial de Santo Antônio do Aracaju ficava a cerca de 1.300 km do mar. Essa dificuldade de escoamento dos produtos foi se acentuando ao longo dos séculos à medida que ocorria o desenvolvimento dos navios, o que significou também o aumento dos seus calados, que impediu que as embarcações continuassem a chegar a lugares como Capivaras, São Cristóvão, Estância, Itaporanga, Pedreiras, Maruim, Laranjeiras e Porto das Redes, localidades que ganharam relevo por causa da importância comercial que mantinham. Junto com o desenvolvimento naval, outros elementos se somaram para que pouco a pouco aqueles territórios perdessem alguma relevância: a transferência da capital, a abertura e expansão de rodovias e a chegada da estrada de ferro.

Ao assumir o governo da então Província, Inácio Joaquim Barbosa se posicionou disposto a atingir um propósito: promover a prosperidade de Sergipe compreendendo que, para tanto, teria que promover a melhoria do escoamento do que era produzido ali. Estava claro que a falta de portos convenientemente localizados e os custos de cargas e descargas realizadas em condições precárias oneravam pesadamente as mercadorias.












Inácio Joaquim Barbosa não perdeu tempo. A partir de novembro de 1854 foram transferidas para a zona costeira, próximo à foz do Rio Sergipe, a Alfândega e a Mesa de Rendas Provinciais; e foi criada uma Agência do Correio e uma Subdelegacia Policial. Eram indícios de que um porto estava para ser instalado finalmente à beira-mar.

Um fato curioso foi que, em meio a tais mudanças, em 2 de março de 1855, uma instituição que nada tinha a ver com a função portuária do lugar, a Assembleia Legislativa da Província, abriu suas sessões numa das poucas e modestas casas que eram encontradas naquela praia. A  Assembleia recebeu o projeto que elevava o povoado de Santo Antônio do Aracaju à categoria de cidade e transferia para ele a capital da Província. Diz-se que, dada a grandiosidade do projeto ou o seu imprevisto, as sessões que o discutiram foram muito arrastadas. Supõe-se que a, digamos, falta de entusiasmo dos deputados quanto àquela matéria se devia ao fato de que eles não botavam fé que numa área desolada de praias, como as de Aracaju, pudesse florescer uma cidade.

Contudo, a pauta foi discutida e o tal projeto foi sancionado em 17 de março de 1855 – Resolução nº 413 -, constituindo um dos atos de mais profunda repercussão na vida sergipana, uma verdadeira subversão política, econômica e social, uma vez que mexeu numa estrutura socioeconômica secular: deslocou para o norte o centro de gravidade da política local; alterou o intercâmbio de mercadorias, fazendo declinar núcleos então florescentes; e fez criar uma “cidade livre”, livre porque não tinha mais compromissos com a terra e seus senhores. Do desenvolvimento da nova cidade surgiu o prestígio de outro elemento: o comerciante.












Leiamos o que vai dito na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros a propósito de tal mudança:

O fator geográfico na fundação de Aracaju foi preponderante. O porto foi a bandeira desfraldada pelos adeptos da ideia de mudança da Capital. Aracaju possuía “um ancoradouro vasto, profundo e abrigado”, dizia o próprio presidente Barbosa. A capital foi arrastada pelo porto; “província pequena e pobre, Sergipe não se podia dar ao luxo de gozar uma capital e um porto marítimo, separadamente, nem ser, então, esta a mentalidade dominante”.

Geograficamente, Aracaju derrotou a velha São Cristóvão, situada no fundo do Paramopama, mal acessível até às menores embarcações, construída no topo de um estreito contraforte, rodeada de encostas íngremes terminando em vales estreitos e que não poderia oferecer as mesmas facilidades de expansão que a planície de Aracaju.

Geograficamente, Aracaju derrotou Estância, Laranjeiras, Maruim e Porto das Redes, que se tornavam cada vez mais distantes do mar, à medida que aumentava o porte dos navios (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1959, p. 219-220).

O estabelecimento do povoado de Santo Antônio do Aracaju como cidade não significou uma grande mudança em termos estruturais nas décadas que se seguiram à aprovação daquele projeto em 1855. Apontam-se como os responsáveis pelo acanhamento que marcou a capital durante o período monárquico a falta de recursos de sua Câmara Municipal e um Governo Provincial desinteressado no assunto.


Perguntei a este senhor por que ele retirava toda a parte verde dos cocos; ele me disse que assim os cocos gelavam mais rápido com o gelo na caixa de isopor. A gente aprende até morrer, como alguém já disse





Até onde eu sei, não existe documento, descritivo ou cartográfico, que forneça ao pesquisador uma visão detalhada da topografia da região aracajuana na época da mudança. Eu ainda não as examinei, mas sei que existem ou existiam umas plantas antigas levantadas pelo engenheiro Francisco Pereira da Silva em 1856 e 1857, que, segundo a descrição que eu li, dão uma ideia do progresso da cidade, mas sem dispor de uma legenda que acompanhe tais plantas. Ainda segundo tal descrição, os trabalhos de Pereira da Silva deixam ver que na nascente cidade além das grandes zonas inundadas, existiam inúmeros pequenos lagos e brejos.












Foi, portanto, sobre um terreno em grande parte plano e repleto de lama e água, que, ainda no século XIX, foi concebida a ideia de uma cidade planejada como capital da província sergipana, iniciativa essa que acompanhava, como já insinuei, os anseios de uma aristocracia de perfil muito mais urbano do que rural, que, ao se estabelecer e se fixar no espaço citadino desejava vê-lo o quanto antes dotado de melhoramentos de toda ordem, como iluminação das ruas, serviços de água e esgoto, expansão dos transportes, etc. Não é demais afirmar que, a exemplo do que se via em outras capitais brasileiras, as elites entendiam que o progresso e a modernização das cidades simbolizavam o alto grau de desenvolvimento e de civilização do qual um povo poderia desfrutar. Deste modo, já naquele momento, em Sergipe, a transformação ou, dito de outro modo, o planejamento da nova cidade não deixa de ser o princípio de toda a negação e até repulsa do conceito e da forma dos territórios urbanos estabelecidos pelos portugueses durante o Período Colonial – a partir de dado momento também no Período Imperial -, que se verificaria e se acentuaria nas principais cidades do país principalmente no último quartel do Oitocentos e nas primeiras décadas do Novecentos.












A concepção da cidade


Coube ao engenheiro Sebastião José Brasileiro Pirro a tarefa de planejar a nova urbe. Contrapondo ao desenho irregular dos sítios urbanos do Período Colonial, Sebastião José planejou um tecido citadino com rigidez geométrica, prendendo-o nas malhas de um traçado em xadrez. E em que consistia o plano desse engenheiro? Era um simples plano de alinhamento: dentro de um quadrado de 540 braças de lado estavam traçados quarteirões iguais, de forma quadrada, com 55 braças de lado, separados por ruas de 60 palmos de largura.

Por mais que queiramos enxergar tal plano, hoje, como algo preso ao rigor geométrico, apontando ainda perda de espaço nos quarteirões, as complicações para a circulação, a inadaptabilidade à topografia dos terrenos e a monotonia e falta de beleza e caráter que ele imprime à cidade, não se pode deixar de considerar que tal traçado em tabuleiro de xadrez era um imperativo do seu tempo, dominado “por tendências urbanísticas muito inclinadas a um uso exagerado das linhas retas, nos planos das novas cidades ou na remodelação e regularização das existentes”, conforme foi registrado na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (Op. cit. p. 223). Era uma concepção urbanística propagada largamente pelos norte-americanos desde o início do século XIX.

De acordo com essa narrativa, dada a pressa com que Inácio Joaquim Barbosa queria ver o projeto pronto para não dar cabimento aos seus contrários, o engenheiro Sebastião Pirro não teve tempo de fazer um levantamento completo e preciso do local onde a nova cidade seria erguida; ele não pôde elaborar um plano mais bem adaptado às características físicas do terreno, que facilitasse as posteriores obras de abertura das ruas, “proporcionando melhor aspecto à cidade”, evitando a recorrência a aterros e facilitando os serviços de drenagem. Como vai dito nas páginas da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, um dos resultados disso foi que, por exemplo, a Rua Itabaianinha ficou a sofrer com inundações frequentes. O traçado em xadrez era limitador:

A única alteração que sofreu o Plano Pirro foi imposta pelo próprio Presidente Barbosa ao curvar a reta da Rua da Frente à suprema necessidade de incentivar as edificações na cidade. A reta de Pirro estaria, para sempre, em chocante contraste com a ampla curva que faz o rio em frente à cidade e o seu ponto final, ao sul, ficaria distante mais de 200 metros da praia. Foi uma sorte a lembrança do Presidente. Em vez de uma reta fria e inflexível, sem perspectiva, ganhou a cidade uma bela avenida acompanhando o rio Sergipe e que pode ser admirada, em toda a sua extensão, de qualquer de seus pontos (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit., p. 224).

Apesar de só ter havido apenas uma modificação no plano urbanístico de Sebastião Pirro, outras sugestões de alteração foram feitas; e uma delas veio direto do Ministério do Império, sob a forma de um plano geral, com recomendações praticamente forçando sua adoção, segundo as palavras do autor do verbete enciclopédico. Tal sugestão foi examinada por uma comissão formada pelo coronel José Xavier Garcia de Almeida, o já então major Sebastião Almeida e o capitão Francisco Pereira da Silva. O parecer da comissão foi apresentado em 17 de março de 1857; e o tal plano geral foi rejeitado inteiramente, dado que, aceitá-lo significaria pôr abaixo mais de setenta casas já construídas e inúmeras outras em construção. De acordo com o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, o projeto elaborado na Corte tinha as mesmas características do plano que estava sendo executado; a diferença era que ele trazia indicada a localização dos edifícios públicos.


A Igreja de São Salvador se destaca no burburinho do centro comercial










Ainda em 1857 um alemão chamado Adolfo Henrique Droge, que andava pelas terras sergipanas à procura de carvão de pedra, ofereceu também sugestões ao plano da nova cidade. Desta vez apenas o capitão Francisco Pereira da Silva incumbiu-se de examinar a sugestão apresentada; e devolveu os papéis porque eles não estavam acompanhados de memórias e nem tinham escala.

Deste modo, os técnicos provinciais foram rejeitando as sugestões que iam chegando sem quererem nem ao menos tomar conhecimento de algo bom que elas porventura contivessem.

Fruto de uma época ainda dominada pelo pensamento sergiobuarqueano que apregoava que os portugueses estabeleceram vilas e cidades no Brasil Colônia sem uma lógica ordenada de ocupação, diferentemente do que fizeram os espanhóis em suas colônias americanas, o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros destacou que, apesar da intransigência com que os planejadores da capital de Sergipe defenderam o projeto, eles deveriam ser louvados porque, “numa época de obscurantismo urbanístico, evitaram que Aracaju descaísse para aquele ‘lírico desleixo lusitano’, que é a tortura da maioria de suas irmãs” (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit. p. 225. O pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, ao qual eu fiz menção, está contido no capítulo “O semeador e o ladrilhador” de sua obra Raízes do Brasil).








Uma planta de 1856 mostrava a cidade em seu primeiro ano de vida com uma edificação nada substanciosa, pelo contrário, rala, como sítios isolados de “povoado obscuro, sem definir alinhamentos”, ainda que o Governo Provincial tudo fizesse para incrementar a edificação da nova capital. Vale dizer que nos últimos meses do ano de 1855 uma epidemia de cólera-morbo grassou por ali e perdurou até os princípios do ano seguinte. Já uma planta de 1857 revelava um delineamento das primeiras ruas, a formação dos primeiros quarteirões e também se observava o movimento da cidade para o oeste.

Para complicar o desenvolvimento da nova urbe, havia uma séria carência de material de construção, de pedreiros e mesmo de recursos financeiros, quer do Governo Provincial, quer dos particulares. Ao lado disso, o laissez-faire construtivo desencadeou o surgimento de edificações que ameaçavam comprometer o aspecto e a regularidade do plano da capital, o que levou a Câmara Municipal a pôr em execução suas primeiras posturas, que foram aprovadas pela Resolução Provincial nº 458, de 3 de setembro de 1856, regulando a edificação e os costumes de seus habitantes. E o que é que elas estabeleciam? Vejamos: tornavam obrigatório o alinhamento dado pelos fiscais da Câmara; estabeleciam o pé-direito com no mínimo 20 palmos e medidas também para portas e janelas; mandavam caiar as frentes das casas duas vezes por ano, pelo menos; obrigavam a construção de calçadas lajeadas de 8 palmos de largura nas ruas de sessenta palmos de largura e de 10 palmos nas que tivessem cem palmos de largura.








A tais posturas seguiram-se outras, como a que delimitava um perímetro dentro do qual era vedada a cobertura feita com palha. Tudo isso era um modo de fixar um quadro para “a cidade” que deveria ser seguido por todos. Ocorreu que tais iniciativas despertaram na parcela menos abastada da população que, diz-se, era enorme, a consciência de que as inflexíveis e impositivas determinações municipais eram, por assim dizer, verdadeiros obstáculos para que indivíduos de limitados haveres pudessem possuir uma morada. E parte do povo que se sentiu excluído tomou uma decisão: atravessou o Caborge, saindo, portanto, dos limites do “quadro” da cidade. E assim foi que, para lá do Caborge, entre a estrada para Santo Antônio e o mar, indo até os mangues do Olaria e de preferência, na encosta do morro de areia que existia no início da atual Avenida João Ribeiro, foram surgindo arruamentos irregulares com casas e casebres de todos os tamanhos e formas, um labirinto de ruas e becos que desapareceria por volta de 1920, com as obras de escavação e aterro efetuadas na área. Segundo o narrador da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros essa fuga do povo para lá do Caborge “foi o primeiro fenômeno de diferenciação social que se operou em Aracaju” (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit. p. 229).

Ainda de acordo com esse prestimoso narrador, ele não teve como acompanhar em detalhes o crescimento da cidade no período que vai de 1857 a 1864, porque os arquivos que consultou não dispunham de informações. Por outro lado ele nos dá como fato marcante desse tempo o lançamento da pedra fundamental da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, que é atualmente também conhecida como Catedral Metropolitana, ocorrida na tarde do dia 21 de setembro de 1862, bem na várzea da cidade, para lá da “vala”, fato esse que abriu, diz-nos ele, “uma brecha na imaginária muralha dentro da qual a cidade tacitamente se encerrava” (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit. p. 229). A criação da praça da matriz proporcionou o crescimento da urbe para o oeste; e no entorno do templo ainda em construção, foram surgindo vários edifícios. Destaque-se que o processo de erguimento da igreja se arrastou por vários anos, tendo ela sido concluída em 1875; e que em 1869 foram construídas 89 casas em Aracaju, sendo que 44 delas espalhavam-se no entorno da matriz e nas ruas próximas a ela.











De passagem por Sergipe, no dia 13 de maio de 1859, o alemão Robert Avé-Lallemant desembarcou do vapor Valéria de Sinimbu em Aracaju. Observador de olhar bastante curioso, ele não deixou de avaliar o caráter, por assim dizer, ainda em construção da cidade. E a nova capital, segundo ele, “Tem aspecto sumamente agradável. Tudo é bonito e novo na margem [do Rio Sergipe], embora muito provisório”. Mais adiante, nos registros que fez de sua viagem, ele anotou que a falta de água potável era o grande defeito de Aracaju. E ainda destacou o seguinte:

Outro defeito da cidade são seus arrabaldes. Permitiram à gente das classes baixas, fixadas aos poucos em Aracaju, construírem habitações ao seu modo e conforme os modelos que já tinham, sob os altos coqueiros. Vê-se assim, por trás e junto à parte bonita de Aracaju, uma horrível aglomeração de casas cinzentas, de barro, com telhados de palha de coqueiro, ranchos primitivos, como se justifica no sertão, mas que não deviam nunca ser permitidos numa nova capital recém-fundada. Aracaju perde com isso toda ilusão, embora os habitantes fuscos de seu bairro cinzento, a maior parte deles de origem índia, e até mesmo raças inteiramente puras, muitas vezes bonitos, combinem muito bem com os telhados de palha e os altos coqueiros, que sussurram por cima deles (Robert Avé-Lallemant. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe: 1859. Trad. Eduardo de Lima Castro, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. Por ordem de aparição as citações são das páginas 331 e 335).

Robert Avé-Lallemant, que registrou ainda que lhe pareceu não haver vida social para a gente civilizada do lugar – nada de concertos, teatro, cassino, etc. -, ao descrever a situação dos subúrbios não fez sequer um comentário a propósito de tal estado de coisas sob a ótica dos desníveis sociais; o alemão me deu a impressão de que, na verdade, o grande “defeito da cidade” era possuir uma parcela da população que era pobre e, por isso, recorria àquele tipo de habitação.











Dom Pedro II, o Imperador viajante, esteve em Aracaju em janeiro de 1860. Do muito que anotou em seu diário sobre o que viu no lugar, ele registrou visita a aulas de meninos, descreveu prédios em construção - obras novas no quartel e o levantamento do Palácio Provincial - e visitou "Santo Antônio do Aracaju, antiga povoação de Aracaju, num alto a 1/4 de légua, donde se goza de boa vista, vendo-se tabuleiros de salinas, que é gênero de bastante comércio neste rio" (Dom Pedro Pedro II. Viagem à costa leste [de Aracaju ao Espírito Santo - 11/1 a a 28/1/1860. Volume 5. In https://museuimperial.museus.gov.br/transcricoes-dos-diarios-de-d-pedro-ii-1840-1891/. Acesso em: 20/3/2022).










O crescimento da cidade nas últimas décadas do século XIX é um indicativo de que Aracaju se firmara como a capital sergipana. Por esse tempo teve início a sua expansão para o noroeste, muito embora, como é dito pelo narrador tantas vezes evocado aqui, nesse período o Governo da Província estivesse desinteressado no progresso da cidade. Mas quando da virada do século essa postura mudou de figura e Aracaju outra vez foi cenário de obras tanto de saneamento como de embelezamento postas em execução pelo Governo Estadual. Apesar de longa, acompanhemos esta citação da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, que dá uma ideia da movimentação havida durante a belle époque na capital sergipana:

Em 1900 se iniciava a pavimentação com pedras irregulares, sendo inaugurado, no mesmo ano, o Hospital de Santa Isabel, mantido pela Associação Aracajuana de Beneficência. Com o aparecimento, em 1908, dos primeiros “bondes de burro”, se inicia o progresso da cidade para o sul, transformando a Rua de Itabaiana em um dos mais importantes logradouros residenciais da aristocracia aracajuana. O serviço de água encanada também era inaugurado em 1908, vindo depois, em 1914, os serviços de esgotos sanitários. Aparecem em 1913 as primeiras lâmpadas elétricas e cresce cada vez mais o empenho do Governo, em preparar a Capital para os festejos do primeiro centenário da emancipação política do Estado. Novas ruas se abrem e outras são reformadas. As comunicações com o interior são melhoradas pela estrada de ferro inaugurada em 1914, e, depois, pelas estradas de rodagem.









Inicia-se neste período o zoneamento da cidade, sem qualquer imposição ou interferência do poder público, ficando caracterizada a zona de comércio e os bairros de residências abastadas, de habitações operárias e das indústrias.

A transformação corria a galope. Ocorreram os primeiros aterros de alagados para o surgimento de novos logradouros. Vários prédios públicos foram erguidos; e projetou-se um grande e suntuoso teatro, mas ele não saiu do papel. No ano de 1920 a cidade já contava com 170 logradouros. E, seis anos depois, os bondes elétricos substituíram os de burro. E o progresso urbano de Aracaju seguiu em um ritmo considerável até mais ou menos 1930, ainda contando com a ajuda substancial do Governo do Estado (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit. p. 230).


A belle époque aracajuana nos cartões-postais


Criação surgida na Europa na segunda metade do século XIX, o cartão-postal logo se difundiu pelo resto do mundo e se converteu em artigo de colecionismo. No Brasil, oficialmente, os primeiros cartões-postais ilustrados só começaram a ser produzidos e editados por particulares após a promulgação de uma lei em 14 de novembro de 1899, que quebrou o monopólio dos Correios nesse segmento. A circulação desses postais em plena belle époque proporcionou  que cenários urbanos fossem neles retratados; e, como inúmeros colecionadores os guardaram, muitos deles chegaram até os nossos dias revelando aspectos citadinos que nos auxiliam na construção da memória urbana das capitais e de várias outras cidades brasileiras.

No belo livro que é Lembranças do Brasil: as capitais brasileiras nos cartões-postais e álbuns de lembranças, organizado por João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo, lançado pela Solaris Edições Culturais, de São Paulo, em 2004, foram reunidos vinte e dois postais retratando, em sua maioria, logradouros e edificações da capital sergipana. Num deles, vê-se a Praça Fausto Cardoso, por volta de 1910, com uma multidão em trajes elegantes no entorno de um coreto e do prédio do Atheneu Sergipense, erguido em 1870, e que seria, em 1913, transformado em um edifício de dois pavimentos que abrigaria a Câmara Municipal, e, ao fundo, avista-se a ainda, digamos, jovem e imponente Igreja Matriz que, em 1936, foi reconstruída e redecorada por iniciativa do Monsenhor Carlos Costa.


Este postal e os dois seguintes aparecem respectivamente nas páginas 156, 157 e 159 do citado livro Lembranças do Brasil


Outro bonito postal, datado de 1908, nos mostra a antiga Rua da Aurora, atual Av. Rio Branco, em um flagrante no qual são vistas em detalhes fachadas de alguns sobrados que dizem muito do estilo construtivo de então em voga na zona comercial da cidade.




Já um editado por volta de 1910 exibe a então Rua de Japaratuba, hoje Rua João Pessoa, com um casario térreo, à esquerda, bem uniforme, populares, em primeiro plano, olhando curiosos pra o retratista, e, ao fundo, a Igreja de São Salvador.





Uma cidade em expansão e transformação e o seu topônimo


À medida que o perímetro da capital sergipana vai se expandindo ao longo das primeiras décadas do século XX, observa-se que mesmo nos terrenos já ocupados vai se estabelecendo uma ideia de transformação dos espaços que inevitavelmente passa por um processo autofágico, digamos assim, como foi o caso já citado da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e do seu entorno. Isso se dá, e de modo quase que geral, porque, sob certa ótica, as cidades são vistas como organismos vivos em permanente mudança; e, no caso específico de Aracaju, a condição de cidade nova só potencializava essa dinâmica transformadora.

Uma foto aérea do final da década de 1950 – creio que ela tenha sido feita exclusivamente para figurar no já citado volume da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, que foi publicado em 1959 –, tirada a partir do rio para o continente, nos revela, por um lado, o desenho quadriculado no qual a cidade foi concebida; por outro, como a urbe ainda  apresentava um aspecto, por assim dizer, distante do processo de verticalização que nas décadas seguintes a marcaria. A paisagem captada pelo registro fotográfico é dominada por edificações térreas e por grandes espaços tomados por árvores entre elas. A Praça Fausto Cardoso, o conjunto de prédios públicos que a ela estão contíguos e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição como que se elevando no meio de uma vegetação frondosa, são alguns dos destaques dessa imagem publicada em preto e branco. Sem dúvida foi mirando esse plano urbanístico marcado por ruas em linha reta divididas em quarteirões simétricos que do alto do espantoso dirigível Graf Zeppelin, seu comandante Heckeener classificou Aracaju de “a mais bela cidade brasileira vista das alturas” e comparou-a a uma das “pitorescas e bonitas cidades europeias da margem do Reno" (Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Op. cit. p. 238).



Esta foto, que se encontra nas páginas 232 e 233 do citado volume da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, é maravilhosa. Nela podemos ver a vasta planície da cidade e o seu desenho em xadrez



Assim como ocorreu com outras capitais litorâneas do Nordeste, como o Recife e João Pessoa, o centro antigo ou, dito de outro modo, a área de ocupação mais antiga de Aracaju foi perdendo prestígio como espaço de residência à medida que foram surgindo bairros sofisticados e a praia em si deixou de ser vista apenas como local onde se passavam temporadas. No decorrer do tempo que vai dos anos da década de 1960 até os dias atuais, a ocupação da vasta planície na qual foi erguida a capital sergipana se processou de maneira intensa e desigual, revelando a transformação incessante da urbe para além do seu plano original.

De acordo com o viajante europeu Von Martius, o topônimo Aracaju é de origem tupi e significa lugar dos cajueiros (ar = nasce; caju = fruto do cajueiro). Teodoro Sampaio, por sua vez, apresentou outra significação: cajueiro dos papagaios (Ara = papagaio; caju = fruta do cajueiro). Bem, embora eu não tenha ido para lá em busca dessa fruta e nem para avistar papagaios, confesso que eu fui em busca do sumo mesmo de Aracaju.


De andanças, aproximações e encontros


Na primeira vez que eu estive em Aracaju, em outubro de 2013, eu percorri boa parte da cidade na companhia do meu então parceiro de viagem e fotógrafo Ernani Neves. Já na segunda e terceira visitas – respectivamente em dezembro de 2017 e novembro de 2019 – eu caminhei solitariamente pela capital sergipana carregando comigo uma vontade muito minha de olhar para essa cidade com olhos de quem queria mais do que conhecê-la e perscrutá-la, deixar-se de alguma maneira ser cativado por ela.











Confesso que não foi uma conquista fácil. Na minha primeira visita, Aracaju a mim me pareceu ser uma cidade sem grandes atrativos e, por isso, pouco ou quase nada convidativa para estadias prolongadas. No primeiro encontro, a bem da verdade, e, talvez, com algum enfado, eu fiz o circuito típico de um turista que não olha com bons olhos bem abertos para uma porção maior da cidade e se detém em seus espaços mais divulgados pelos informes turísticos. Sendo assim eu passeei pelo Mercado Governador Albano Franco, onde almocei no Box do Adriano e conheci João Evangelista dos Santos, o João Fumaça, que mantinha um sebo – Sebão do Fumaça – onde comercializava livros, revistas e discos de vinil.

Andei também pelo movimentado Mercado de Artesanato Thales Ferraz, onde conversei um bocadinho com Joelson Santana Cabral, que substituíra o pai João Firmino, cordelista já falecido, na banca de venda de literatura de cordel – por falar nisso, foi ali que eu comprei um volume com os ditos e chistes de Seu Lunga, que se eu dissesse que é parente meu todo mundo acreditaria. Tomei banho na Praia do Atalaia – achei a água tão escura – e caminhei na Passarela do Caranguejo, que tem uma estrutura de esportes e lazer, além de gastronomia muito boa – ah, eu visitei, também ali, o Projeto Tamar.

Atravessei o movimentado centro comercial, como a Rua João Pessoa. Fiz a barba com o Edson da Barbearia Referência. E tomei a direção da Praça Fausto Cardoso onde me pareceu que Aracaju se revelou mais vistosa para os meus olhos que, outra verdade seja dita, não são os de um mero turista, mas de um viajante, de alguém que mira certos espaços das cidades querendo enxergar neles senão as marcas de suas origens, pelo menos os traços identificadores do seu passado urbano mais remoto e/ou definidor de seu presente. Foi na Praça Fausto Cardoso, planície que abriga o Palácio do Governo e a Assembleia Legislativa, além de coretos e estátuas graciosas, e na vizinha Praça Olympio Campos, cenário da Catedral Metropolitana, que eu vi uma Aracaju orgulhosa de suas permanências e de sua memória urbana e arquitetônica, em locais de convívio social nos quais as pessoas prezam o contato com a natureza à sombra revigorante de muitas árvores.






Pertinho dali, na Rua Santa Luzia, eu adentrei no Sebo Dinossauro Universo Cultural, estabelecimento comandado por um bonachão Manoel Bonfim, ex-fotógrafo dos principais jornais sergipanos e do Jornal do Commercio, do Recife, e fã incondicional do Papa Bento XVI. Conversa boa danada. E Manoel ainda me vendeu por uma ninharia – foi uma grande gentileza da parte dele, eu não tenho dúvida – um belo livro do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão. Manoel Bonfim há de saber agora que o encontro que eu tive com ele naquela tarde foi um dos melhores suvenires que eu trouxe daquela viagem.

Passados quatro anos, eis que eu retornei a Aracaju. E desta vez eu posso dizer que mergulhei com mais demora na cidade; e não só porque nela eu me demorei mais do que na visita anterior, mas principalmente porque minhas caminhadas por suas ruas e avenidas e por áreas afastadas do centro me puseram, por assim dizer, em contato com a parte que faltara do desenho urbano e social que eu conhecera em 2013.

No caminho da rodoviária nova, onde desembarquei vindo de Salvador, até o centro da cidade, que percorri em ônibus local, o que vi foram cenários de pouca expressividade, espaços, a bem da verdade, muito parecidos com os de outras capitais nordestinas que eu conheço, porque, em geral, os arredores, os subúrbios dos grandes centros urbanos brasileiros – e não só os nordestinos – têm feições muito semelhantes; todos eles apresentam certo ar de abandono e de desordenamento.

Ao desembarcar na dita rodoviária velha eu tomei conhecimento de que a Prefeitura Municipal estava se esforçando para requalificar o entorno do terminal. No dia da minha chegada – 11 de dezembro -, inclusive, vendedores ambulantes que haviam sido retirados da área na semana anterior, tentaram comercializar no local e foram barrados.

Hospedei-me no Grande Hotel, um hotel que já teve o seu passado de glória, porque era bem apresentável, como se nota pelo piso de taco e escadas de mármore. Tempos atrás o cantor Roberto Carlos, por exemplo, se hospedava nele. Atualmente ele é destino de viajantes que, como eu, têm pouco dinheiro no bolso e buscam estabelecimentos que cobram barato e são bem localizados. Na noite daquele dia, alojado no apartamento 201, eu fiz a seguinte anotação na minha caderneta de viagem: “Não consigo ainda – mas hei de conseguir – ver uma identidade nesta cidade”.





Fui rever o João Fumaça. E ele me fez a encomenda de um disco de frevo, qualquer um, desde que fosse do celebrado Claudionor Germano. Uma figuraça esse João Fumaça.

Determinado a desta vez andar e andar pelas ruas procurando sentir e observar mais a cidade, eu tomei a direção da Colina de Santo Antônio. Aqui e ali eu fui vendo imóveis que diziam de um passado remoto daquele pedaço da urbe.

Por um bom tempo eu me detive no adro da Igreja de Santo Antônio observando o panorama lá de cima. E estive na Praça Siqueira de Menezes, localizada por trás do templo.

Ainda naquela tarde, eu embarquei num táxi-lotação com destino ao Parque da Cidade, uma área verde enorme que abriga um zoológico e possui um teleférico. Como eu cheguei perto do horário do fechamento, só havia eu ali para embarcar no aparelho. E lá fui eu no teleférico cheio ainda de uma tristeza que cismava em se manter comigo desde o início da viagem. Esbocei sorrisos para a lente da minha câmera. Ali, sobre as árvores, era como se a vida quisesse me oferecer uma certeza que eu não conseguia entender bem como era. Talvez tenha sido um mero devaneio. Talvez.

Calculando bem, eu vi que não precisava pegar uma condução de volta para o hotel. E fui caminhando até lá, atravessando um sem-número de ruas e fazendo um e outro registro fotográfico. Era uma outra cidade que agora enchia os meus olhos.

Augusto César, que eu conhecera em Alagoas e que mora na capital sergipana, me fez ver outros recantos da cidade a bordo do seu carro, um dia antes de eu seguir viagem para outro destino.

Quase dois anos depois estava eu de novo em Aracaju: precisamente às 17:32 h do dia 18 de novembro de 2019 eu desembarquei no terminal rodoviário. Tomei um ônibus e segui para o mesmo Grande Hotel, o mesmo Grande Hotel inaugurado em 1973, o primeiro bom hotel da cidade onde, como eu já disse, Roberto Carlos costumava se hospedar e que se tornara pela segunda vez o meu refúgio – desta feita eu fiquei no quarto 412. Os meus olhos quase sempre se alegram com o que lhe é familiar. E andando pelo corredor daquele andar do hotel, eu percebi que havia ali algo que não era apenas familiar a mim, estava, a bem da verdade, já abrigado num escaninho de minhas boas lembranças.

Anoiteceu. Da janela enorme do meu quarto eu pude ver a multidão de moradores de rua que se reunira sob a marquise do Banese, o Banco do Estado de Sergipe. Na linha do horizonte a cidade se revelava contemplativa. Lá embaixo, na rua, aquelas pobres pessoas eram elas mesmas o indicativo de uma aguda desigualdade social. Imaginei que Roberto Carlos não gostaria de ver aquela cena; e que se talvez a visse, cantaria “Jesus Cristo” enquanto se aprontava para ir fazer o seu show.

Nessa minha terceira estada em Aracaju eu visitei mais uma vez o João Fumaça, que me encomendara um disco do Claudionor Germano, o seu grande ídolo: poucas vezes eu vi alguém ficar tão satisfeito ao ganhar um presente. E conheci um Museu da Gente Sergipana e também um largo com mesmo nome que alegraram os meus olhos.

A Catedral Metropolitana continuava em obras. O que é que tanto se fazia ali? Eu não sei. Deveria ser grande coisa porque estava consumindo muito tempo. Tempo e dinheiro, claro.
Augusto César me apanhou na frente do hotel. E lá fomos nós outra vez rodar pela cidade e de alguma forma saciar a nossa saudade um do outro.

Na noite em que eu saí do Cinema Vitória, numa solidão imensa e fria, eu me dei conta de que estava ali, naquelas praças e ruas que eu percorria, a identidade que eu ansiara encontrar daquela cidade: Aracaju ali persistia e resistia à indiferença e ao abandono de todos aqueles que se desencantaram com aquela concepção de cidade resumida naquele espaço de ocupação mais antiga, e se foram para outros bairros. A identidade de Aracaju estava sintetizada naquele perímetro: uma jovem capital que envelhecera antes do tempo.

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