Por Sierra
Nascido, criado e ainda
morando no subúrbio ao longo de 49 anos de existência, eu posso dizer que sei
muito bem o que é ser e estar na condição de uma quase invisibilidade social
não apenas individualmente, mas enquanto parte constituinte de um extrato
social.
Morar nos subúrbios
significa estar longe – e não só geograficamente – dos centros de decisões
governamentais que impactam positivamente o dia a dia da população; significa
que as políticas públicas destinadas a melhorar e/ou tornar menos duro o
cotidiano das pessoas que habitam tais lugares demoram a chegar e/ou chegam
como que incompletas; significa conviver com esgotos correndo a céu aberto;
significa sofrer com um sistema de abastecimento de água precário; significa
penar com um transporte público de passageiros que parece desconhecer que são
seres humanos que ele está servindo; significa ser apontado como um laboratório
onde germina a criminalidade; significa, enfim, estar à margem no sentido mais
cortante e incisivo que essa palavra possa conter.
Durante muitos anos a
convivência com a precariedade existencial fazia com que eu enxergasse tudo
aquilo como um fato consumado, como um retrato que não se pode mais alterar o
que foi captado pela câmera. Eu me via no meio da exclusão social amargando uma
realidade que me punha para ir comprar carvão, porque não tínhamos botijão de
gás; mudar constantemente de moradia, porque minha mãe, solteira e assalariada,
não conseguia sempre pagar o aluguel; comer não o que queria mas o que se podia
ter na mesa; estudar em escolar nas quais às vezes faltavam professores para
uma ou mais disciplina...
Quando eu era um garoto eu
sabia que não vivia bem, porque as privações todas escancaravam isso; não havia
como fazer de conta que elas não existiam e nem estavam ali, porque elas
existiam e estavam ali e pesavam muito e nos penalizavam muito. Eu sabia de
tudo isso, de todo esse padecer, de todo esse sobreviver, mas não compreendia
por que é que tinha de ser daquele jeito. No decorrer da adolescência o
entendimento do mundo começou a tomar volume; e eu fui dizendo a mim mesmo que,
caso eu não tratasse de tentar de alguma maneira escapar daquela realidade, eu
iria acabar tendo um destino ruim, como tiveram alguns conhecidos meus que
largaram a escola e enveredaram pelo mundo do crime.
Num país tão
socioeconomicamente desigual e excludente, à primeira vista as desigualdades
sociais atingem da mesma forma todos os cidadãos das classes baixas, tenham
eles a cor de pele que tiverem. Mas não é bem assim. Considerando que o maior
contingente da população brasileira é composto por negros e pardos e que são os
negros e os pardos que ocupam majoritariamente os subúrbios e a base da
pirâmide social da economia, não há como negar que são esses dois grupos que
pagam o mais alto preço dessa exclusão; e aos negros é destinado uma versão
piorada dessa realidade: são negros os que mais morrem vítimas de operações policiais;
são negros os que mais são vítimas dos terríveis e desumanos casos de racismo;
e são negros os que normalmente são preteridos para ocupar tais e tais cargos e
funções.
Hoje este país celebra os
135 anos da abolição da escravatura. E, transcorridos 135 anos da assinatura da
chamada Lei Áurea que, ao menos na lei, acabou com a escravização de negros, o
que foi que efetivamente a dita abolição ainda não conseguiu abolir neste país?
É inegável que ao longo de todo esse tempo alguma melhora houve na condição
social dos negros no Brasil – e o estabelecimento de cotas para uma série de
acessos da população negra a instituições, como universidades públicas, dizem
muito dessa proposta de mudança que tantos enxergam como uma espécie de
compensação pelos estragos que o regime escravocrata causou a ela -, mas
permanecem em voga, como se fossem reflexos inalteráveis do período da
escravidão, desumanidades, como a vigência de trabalhos análogos aos de
escravos; a prisão e o assassinato em massa de negros; a ausência de negros em
certas posições de mando, comando e poder; e os casos explícitos e violentos de
ações de cunho racista e preconceituoso contra indivíduos negros.
Normalmente pessimista na
avaliação de vários aspectos da nossa condição humana e do trato que nós
mantemos uns com os outros, com o meio ambiente e com quase tudo que nos
envolve, eu sou otimista no que diz respeito à elevação do papel do negro como
protagonista dentro de nossa sociedade. Acredito mesmo que caberá aos negros e
aos pardos deste país a direção de um tempo novo, porque eu percebo que, entre
avanços e recuos, nós estamos mais avançando do que retrocedendo.
Aos que demonizam a chamada “democracia racial”, que teria sido proposta por Gilberto Freyre, eu prefiro mil vezes mil me apegar a essa ideia a manter na ordem do dia um discurso de animosidade e beligerância que, eu não duvido, não resolverá as desigualdades sociais que assolam, sobretudo, negros e pardos. Lutar por melhorias e dignidade, sim. Tomar o outro, os brancos, como inimigos, não.
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