13 de maio de 2023

Passados 135 anos, o que a Lei Áurea ainda não conseguiu abolir?

 Por Sierra



Imagem: Internet
Normalmente pessimista na avaliação de vários aspectos da nossa condição humana e do trato que nós mantemos uns com os outros, com o meio ambiente e com quase tudo que nos envolve, eu sou otimista no que diz respeito à elevação do papel do negro como protagonista dentro de nossa sociedade. Acredito mesmo que caberá aos negros e aos pardos deste país a direção de um tempo novo, porque eu percebo que, entre avanços e recuos, nós estamos mais avançando do que retrocedendo


Nascido, criado e ainda morando no subúrbio ao longo de 49 anos de existência, eu posso dizer que sei muito bem o que é ser e estar na condição de uma quase invisibilidade social não apenas individualmente, mas enquanto parte constituinte de um extrato social.

Morar nos subúrbios significa estar longe – e não só geograficamente – dos centros de decisões governamentais que impactam positivamente o dia a dia da população; significa que as políticas públicas destinadas a melhorar e/ou tornar menos duro o cotidiano das pessoas que habitam tais lugares demoram a chegar e/ou chegam como que incompletas; significa conviver com esgotos correndo a céu aberto; significa sofrer com um sistema de abastecimento de água precário; significa penar com um transporte público de passageiros que parece desconhecer que são seres humanos que ele está servindo; significa ser apontado como um laboratório onde germina a criminalidade; significa, enfim, estar à margem no sentido mais cortante e incisivo que essa palavra possa conter.

Durante muitos anos a convivência com a precariedade existencial fazia com que eu enxergasse tudo aquilo como um fato consumado, como um retrato que não se pode mais alterar o que foi captado pela câmera. Eu me via no meio da exclusão social amargando uma realidade que me punha para ir comprar carvão, porque não tínhamos botijão de gás; mudar constantemente de moradia, porque minha mãe, solteira e assalariada, não conseguia sempre pagar o aluguel; comer não o que queria mas o que se podia ter na mesa; estudar em escolar nas quais às vezes faltavam professores para uma ou mais disciplina...

Quando eu era um garoto eu sabia que não vivia bem, porque as privações todas escancaravam isso; não havia como fazer de conta que elas não existiam e nem estavam ali, porque elas existiam e estavam ali e pesavam muito e nos penalizavam muito. Eu sabia de tudo isso, de todo esse padecer, de todo esse sobreviver, mas não compreendia por que é que tinha de ser daquele jeito. No decorrer da adolescência o entendimento do mundo começou a tomar volume; e eu fui dizendo a mim mesmo que, caso eu não tratasse de tentar de alguma maneira escapar daquela realidade, eu iria acabar tendo um destino ruim, como tiveram alguns conhecidos meus que largaram a escola e enveredaram pelo mundo do crime.

Num país tão socioeconomicamente desigual e excludente, à primeira vista as desigualdades sociais atingem da mesma forma todos os cidadãos das classes baixas, tenham eles a cor de pele que tiverem. Mas não é bem assim. Considerando que o maior contingente da população brasileira é composto por negros e pardos e que são os negros e os pardos que ocupam majoritariamente os subúrbios e a base da pirâmide social da economia, não há como negar que são esses dois grupos que pagam o mais alto preço dessa exclusão; e aos negros é destinado uma versão piorada dessa realidade: são negros os que mais morrem vítimas de operações policiais; são negros os que mais são vítimas dos terríveis e desumanos casos de racismo; e são negros os que normalmente são preteridos para ocupar tais e tais cargos e funções.

Hoje este país celebra os 135 anos da abolição da escravatura. E, transcorridos 135 anos da assinatura da chamada Lei Áurea que, ao menos na lei, acabou com a escravização de negros, o que foi que efetivamente a dita abolição ainda não conseguiu abolir neste país? É inegável que ao longo de todo esse tempo alguma melhora houve na condição social dos negros no Brasil – e o estabelecimento de cotas para uma série de acessos da população negra a instituições, como universidades públicas, dizem muito dessa proposta de mudança que tantos enxergam como uma espécie de compensação pelos estragos que o regime escravocrata causou a ela -, mas permanecem em voga, como se fossem reflexos inalteráveis do período da escravidão, desumanidades, como a vigência de trabalhos análogos aos de escravos; a prisão e o assassinato em massa de negros; a ausência de negros em certas posições de mando, comando e poder; e os casos explícitos e violentos de ações de cunho racista e preconceituoso contra indivíduos negros.

Normalmente pessimista na avaliação de vários aspectos da nossa condição humana e do trato que nós mantemos uns com os outros, com o meio ambiente e com quase tudo que nos envolve, eu sou otimista no que diz respeito à elevação do papel do negro como protagonista dentro de nossa sociedade. Acredito mesmo que caberá aos negros e aos pardos deste país a direção de um tempo novo, porque eu percebo que, entre avanços e recuos, nós estamos mais avançando do que retrocedendo.

Aos que demonizam a chamada “democracia racial”, que teria sido proposta por Gilberto Freyre, eu prefiro mil vezes mil me apegar a essa ideia a manter na ordem do dia um discurso de animosidade e beligerância que, eu não duvido, não resolverá as desigualdades sociais que assolam, sobretudo, negros e pardos. Lutar por melhorias e dignidade, sim. Tomar o outro, os brancos, como inimigos, não.

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